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ComCiência
On-line version ISSN 1519-7654
ComCiência no.164 Campinas Dec. 2014
ARTIGO
Enrico Fermi: de Roma a Estolcomo, passando por São Paulo e Rio de Janeiro
Francisco Caruso; Adílio Jorge Marques
Enrico Fermi nasceu em Roma no dia 29 de setembro de 1901. Desde cedo, Fermi demonstrou um enorme talento para a matemática, ao qual se somou um tino especial para a física experimental e um talento também para a física teórica. A ele não se aplicava a distinção, cada vez mais marcante, entre físico teórico e físico experimental. Fermi era capaz de trabalhar em um torno mecânico, de desenvolver a primeira pilha atômica, de fazer um trabalho teórico sobre a estatística quântica e de descobrir os primeiros elementos transurânicos. Há um consenso nos relatos históricos que se referem às diversas atividades de Fermi, tanto na pesquisa científica, quanto na docência e nas atividades de divulgação da ciência nas quais se engajou ao longo de sua vida acadêmica: a valorização da simplicidade. A sua capacidade de obter muito com pouco. Talvez o exemplo mais marcante nesse sentido tenha ocorrido durante o teste da primeira bomba atômica em Alamogordo. Na ocasião, Fermi havia levado na mão um punhado de pequenos pedaços de papel, que soltou no momento da explosão, verificando em seguida a distância em que eles tinham caído com relação ao ponto de soltura. Puxando uma tabelinha do bolso, previamente elaborada, ele foi capaz de estimar, segundos depois de seu simples experimento, qual a energia dissipada pela bomba1.
Em 1927, Fermi foi aprovado para a cátedra de física teórica, recém-criada pelo físico e senador italiano Orso Mario Corbino (1876-1937), na Universidade de Roma. No meio acadêmico italiano daquela época, eram poucos os que se dedicavam a pesquisas em física moderna. Como catedrático dessa universidade, Fermi deu prosseguimento aos seus trabalhos de pesquisa, liderando o que ficou conhecido como o famoso Grupo de Roma da Via Panisperna, constituído pelos físicos italianos Edoardo Amaldi (1908-1989) e Franco Rama Dino Rasetti (1910-2001), junto com o ítalo-norte-americano Emilio Gino Segrè (1905-1989), além do químico e também italiano Oscar D'Agostino (1901-1975). Esse grupo, em 1934, realizou experiências visando à produção de novos elementos radioativos, mediante o bombardeamento do urânio (U) com nêutrons (n)2.Foram esses experimentos que levaram Fermi a ganhar o Prêmio Nobel de Física de 19383.
A guerra com a Etiópia, iniciada em outubro de 1935, a morte de Corbino, em 23 de janeiro de 1937, e o Manifesto della Razza, da ditadura de Mussolini, promulgado em 1938, fizeram com que o trabalho de Fermi na Universidade de Roma perdesse o prestígio interno e o suporte que sempre teve do governo. Por outro lado, não era difícil antever uma possível perseguição à sua mulher Laura Fermi, que era judia. Em vista disso, Fermi deixou a Itália, na ocasião em que ia a Estocolmo para receber o Prêmio Nobel de Física no dia 12 de dezembro de 1938. Logo depois de receber o prêmio, fez viagem pela Europa, principalmente à Dinamarca, e emigrou para os Estados Unidos. Fermi e família seguiram para Nova York, nos Estados Unidos, chegando ao porto dessa cidade em 2 de janeiro de 1939. Fermi permaneceria no país, onde inicialmente lecionou na Universidade de Michigan entre os anos de 1939 e 1942.
A história até aqui resumida é bem conhecida. O que não é tão conhecido é que Enrico Fermi, além de sua dedicação à pesquisa científica e de seu impressionante legado, também teve um papel decisivo no desenvolvimento da física no Brasil, embora bastante indireto. De fato, esse papel poderia ter sido infinitamente maior caso ele não tivesse declinado o convite para vir trabalhar no Brasil, que lhe foi feito, em 1934, pelo matemático e político brasileiro Theodoro Augusto Ramos (1895-1937), que era professor na Escola Politécnica de São Paulo. Ramos havia sido comissionado pelo então governador de São Paulo, Armando Salles de Oliveira (1887-1945), para chefiar a comitiva acadêmica que foi à Europa, em abril de 1934, contratar pesquisadores para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da Universidade de São Paulo (USP), criada em 12 de janeiro daquele ano, da qual Theodoro Ramos foi o primeiro diretor. A ideia dessa comitiva nasceu da sugestão dada ao governador pelo matemático e acadêmico italiano Francesco Severi (1879-1961), quando de sua estada em São Paulo, para que se criasse uma faculdade de ciências que pudesse ser desenvolvida paralelamente às escolas profissionais nos moldes das universidades italianas.
O que poucos sabem é que, no verão europeu de 1934, para cumprir uma agenda de palestras patrocinadas pelo governo italiano, Fermi visitou a América do Sul. Acompanhado de sua esposa, estiveram em Buenos Aires e Córdoba, na Argentina, em Montevidéu, no Uruguai, e, finalmente, em São Paulo e Rio de Janeiro, no Brasil, antes de retornarem à Itália. Todas as palestras foram dadas em italiano para plateias sempre muito cheias, demonstrando grande interesse pelo trabalho de Fermi. Os detalhes dessa viagem, recuperados a partir de jornais da época, foram tema de um artigo que publicamos na revista Estudos Avançados4.
Todas as palestras de Fermi na Argentina foram publicadas em espanhol5. Infelizmente, não temos notícias de registros de transcrições de suas palestras no Brasil. Vindo de Buenos Aires, Fermi desembarcou em Santos, no dia 21 de agosto, e viajou de automóvel para a capital, São Paulo, onde teve "honrosa recepção da parte das autoridades consulares, representantes do governo e membros das sociedades científicas de São Paulo" (Jornal do Brasil, p. 10, 22/08/1934).
A agitada visita de Fermi ao Brasil pode ser facilmente seguida pelos jornais brasileiros da época. Segundo a Folha da Manhã, também de 22 de agosto (p. 10), Fermi hospedou-se no Esplanada Hotel. Essa matéria traz uma pequena entrevista com o físico italiano e suas impressões sobre as cidades de Santos e de São Paulo. Sua palestra havia sido anunciada, em 20 de agosto, pela edição vespertina de O Globo (p. 2), e pelo Correio de São Paulo, com o título "A constituição da matéria", na qual era esperado que ele fizesse um contraponto entre as estatísticas de Einstein e da que ele próprio havia proposto recentemente. A Folha da Manhã (p. 6), e o Correio Paulistano(p. 4), confirmam, em 21 de agosto, que essa palestra ocorreria no dia 22 de agosto, às 21h (ver também Folha da Noite, 22 de agosto, p. 4, 2ª edição), no salão nobre da sede do Instituto Histórico Geográfico em São Paulo, na Rua Benjamin Constant, 40, sob o patrocínio da USP. O clima em que essa palestra se deu é bem retratado na Folha da Manhã, de 23 de agosto (p. 4), que publica uma foto de Fermi cercado por várias pessoas com a legenda: "verdadeira multidão que encheu literalmente o amplo salão daquela entidade refluindo para seus corredores e salas".
No Rio de Janeiro, as recepções não foram menos calorosas. Tendo chegado à, então, capital do país no dia 23 de agosto de 1934, dois dias depois, o ilustre físico italiano foi recebido oficialmente na Academia Brasileira de Letras (ABL), no Petit Trianon, na qualidade de "Acadêmico da Itália", conforme relato dos principais jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo. Sua palestra, nessa ocasião, intitulada "A evolução da física no século XX", teve repercussão em matéria publicada no Jornal do Brasil (p. 27) em 28 de agosto.
Novamente, na sede da ABL, Fermi realiza sua segunda conferência, no dia 28 de agosto, sobre a "A produção artificial dos corpos radio-activos" (texto de 26 de agosto no Diário de Notícias, p. 13). O Estado de S. Paulo, datado de 29 de agosto, em matéria de capa, informa que, nessa ocasião, Enrico Fermi recebeu o diploma de membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC), sendo então saudado pelo acadêmico professor Theodoro Ramos, já como membro honorário da entidade científica de nosso país.
Em 14 de setembro, na edição matutina de O Globo (p. 2), lê-se a notícia, oriunda de Gênova, que, ao retornar de uma viagem ao Brasil e à Argentina, Fermi teria manifestado viva satisfação pela acolhida que teve na América Latina. Essa impressão foi compartilhada por Laura Fermi, para quem a viagem foi um sucesso sob vários pontos de vista, principalmente pelo interesse manifestado pelo grande público nos trabalhos de seu marido.
Embora não tenhamos muito mais informações sobre outros detalhes dessa viagem de Fermi ao Brasil, em 1934, sem dúvida ela foi importante, pois trouxe, exatamente no ano de criação da USP, o debate de assuntos de fronteira da física para nosso país, onde a pesquisa científica era ainda incipiente em várias áreas do conhecimento, em particular na física. Ao contrário de Albert Einstein, que visitou o Brasil no ano de 1925, a visita de Enrico Fermi à América do Sul ficou praticamente desconhecida dos pesquisadores e leigos. Evidencia-se, com esse caso, como a popularidade derivada dos veículos midiáticos pode repercutir, a longo prazo, na divulgação científica e no conhecimento de atos relacionados com a história da ciência no Brasil e no mundo.
Francisco Caruso é pesquisador titular do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, professor associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, professor colaborador do Programa de História da Ciência e das Técnicas e Epistemologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro da Academia Brasileira de Filosofia e da Academia Paraense de Ciências. Email: francisco.caruso@gmail.com.
Adílio Jorge Marques é professor da Universidade Federal Fluminense, membro da Academia Brasileira de Filosofia e da Academia Paraense de Ciências. Email: adiliojm@gmail.com.
Notas
1 Henrique Fleming: Enrico Fermi, Gênio e Simplicidade. Revista Brasileira de Ensino de Física v. 18, p. 274 (1996).
2 Bassalo & Caruso: Fermi. São Paulo: Livraria da Física, 2013.
3 Enrico Fermi - Nobel Lecture: Artificial Radioactivity Produced by Neutron Bombardment". Nobelprize.org. Nobel Media AB 2014. Web. 9 Dec 2014.
4 Francisco Caruso & Adílio Jorge Marques: Sobre a viagem de Enrico Fermi ao Brasil em 1934, Estudos Avançados, v. 28, p. 279 (2014).
5 Enrico Fermi: Conferencias. Faculdad de Ciencias Exactas, Fisicas y Naturales, Serie B, Publicacion 15, Buenos Aires, 1934.