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ComCiência
versión On-line ISSN 1519-7654
ComCiência no.161 Campinas set. 2014
REPORTAGEM
O excesso de medicação em uma sociedade que precisa ser feliz
Cassiana Purcino Perez; Juliana Passos
A indústria farmacêutica nunca vendeu tanto no Brasil. Em balanço divulgado na primeira semana de setembro a Associação dos Laboratórios Farmacêuticos Nacionais registrou a superioridade das fabricantes nacionais diante das estrangeiras. As companhias brasileiras registraram faturamento de R$15,7 bilhões entre janeiro e junho de 2014, ou 51% do montante comercializado. O uso de antidepressivos e reguladores de humor está entre os cinco principais responsáveis por essa alta. Uma projeção do instituto de pesquisa IMS Health aponta que em 2017 o Brasil será o quarto país que mais consome remédios no mundo. Entre 2007 e 2012 a posição brasileira subiu da décima posição para a sexta.
Um dos grandes crescimentos é a comercialização da ritalina. Em tese defendida em maio na Faculdade de Medicina da Universidade Estadual do Rio Janeiro a psicóloga Denise Barros constatou um aumento de 775% no consumo na última década. A venda de antidepressivos e estabilizadores do humor cresceu 48% no Brasil entre 2008 e 2011 de acordo com o último relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O maior consumo de remédios é considerado pelo psicanalista e pesquisador da Universidade de São Paulo Christian Dunker um ponto comum na comparação com o soma, droga descrita no livro Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, administrada em doses diárias para manter as pessoas dóceis e felizes. “Ele era livremente autoadministrado, o que combina com a tendência crescente da medicalização por não especialistas, por não psiquiatras e sem grande regulação pelo Estado. Por outro lado, ao contrário da soma, os antidepressivos não produzem uma sensação positiva de prazer, apenas tiram um tanto significativo da dor de existir, como uma espécie de acolchoamento permanente para os choques e desencontros da vida”, diz.
Na visão da pesquisadora em política da indústria farmacêutica na Universidade de British Columbia, Barbara Mintzes, parte do crescimento excessivo do uso de antidepressivos está sendo redefinido pelo marketing. A pesquisadora exemplifica mostrando chamadas publicitárias de remédios para a reposição de testosterona que utilizam sensações genéricas e fazem apelo a estereótipos de gênero, como “Não se sente mais o homem que costumava ser? Você pode estar com baixos níveis de testosterona”. “Se as mulheres estão em desvantagem econômica no local de trabalho ou se sentem inábeis para lidar com uma relação infeliz ou abusiva, a resposta será uma pílula? A linguagem das propagandas reforça a ideia de que não é normal estar triste em resposta a algo que acontece na vida pessoal”, diz. E completa: “O problema com o marketing e com as recomendações clínicas e guias médicos financiados pela indústria farmacêutica é que eles redefinem o que é normal, a tristeza é vista como uma condição de 'depressão', em contraposição à falta de atenção com o indivíduo para avaliar se está triste ou estressado em resposta a algo que aconteceu em sua vida, ou se há um grave distúrbio depressivo”, diz.
Os neurotransmissores e a depressão
De acordo com pesquisa recente realizada pelo instituto britânico Ipsos Mori, em média, 77% das pessoas ao redor do mundo dizem-se felizes. Este sentimento positivo, perseguido por todos, provém de construções sociais e tem significados diversos para diferentes culturas e mesmo para cada indivíduo. Fisiologicamente, a felicidade é consensualmente descrita como um estado da mente produzido pela liberação do neurotransmissor dopamina no cérebro, em resposta a um prazer físico ou a uma situação positiva. Levados até uma região específica (o córtex pré-frontal), onde são decodificados, os impulsos elétricos desencadeados pela liberação da dopamina transformam-se em sensação de bem-estar. Curiosamente, o professor de neurociências e ciências biológicas da Universidade de Stanford, Robert Sapolsky concluiu que “a dopamina não tem a ver com o prazer, tem a ver com a antecipação do prazer”. Em um estudo conduzido com macacos, mostrou que a liberação de dopamina no cérebro ocorre ainda antes do momento feliz, quando sabemos que a recompensa prazerosa virá após o cumprimento de uma tarefa.
Nos quadros depressivos, o cérebro apresenta alterações no metabolismo de alguns neurotransmissores, entre eles a própria dopamina, a serotonina e a noradrenalina. Visto por muito tempo como a causa da depressão, o desequilíbrio dos neurotransmissores no cérebro são, na verdade, consequência da doença e uma das características fisiológicas que a diferencia da tristeza ocasional.
“A maioria dos quadros psiquiátricos é caracterizada por alterações quantitativas de fenômenos psíquicos normais”, explica o psiquiatra Adriano Segal, coordenador do Ambulatório de Obesidade e Síndrome Metabólica do Serviço de Endocrinologia do Hospital das Clínicas da USP. Assim, a felicidade diante de situações positivas e a tristeza em resposta às situações adversas são emoções adequadas e esperadas. “A inadequação ou a intensidade exagerada de uma reação em relação a uma situação específica ou ainda a presença de um estado psíquico independente do meio, a maior parte do tempo, seriam indicativos de patologia”, completa Segal.
Psiquiatra do Programa Transtornos Afetivos do Hospital das Clínicas da USP, Fernando Fernandes vê o aumento da venda de antidepressivos como um fator que mascara o grande contingente de pacientes desassistidos levando, em última instância, ao suicídio. A Organização Mundial de Saúde estima que cerca de 350 milhões de pessoas sejam afetadas pela depressão e em torno de 18% da população mundial sofrerá ao menos um episódio de depressão durante a vida. Como é a principal causa de incapacidade funcional no mundo, há uma demanda fortíssima pela contenção da doença. Os desafios para vencê-la, porém, são tão grandes quanto a necessidade de enfrentá-los: vão desde a dificuldade de diagnóstico, as controvérsias em relação ao tratamento mais adequado e até o abuso de medicamentos específicos.
“A depressão é uma doença complexa, com uma série de sintomas físicos (como alterações nos padrões de sono e apetite), afetivos (como tristeza, angústia, ansiedade, perda do prazer), e do pensamento (pessimismo, diminuição da capacidade de concentração e da velocidade do raciocínio)”, explica Fernandes. O desconhecimento desses sintomas como indicativos de um quadro patológico, associado ao preconceito em relação à doença pode atrasar o início do tratamento e, consequentemente, a melhora do paciente.
Até 2020, a OMS estima que a depressão se torne a segunda maior causa de mortes. Ao colocar esses números em seu livro O tempo e o cão, a psicanalista Maria Rita Kehl pondera que há pouco espaço para discutir o tema. “O que mais espanta, diante desses números, é que vivemos em uma sociedade que parece essencialmente antidepressiva, tanto no que se refere à promoção de estilos de vida e ideais ligados ao prazer, à alegria e ao cultivo da saúde, quanto à oferta de novos medicamentos para o combate das depressões. O mundo contemporâneo demonizou a depressão, o que só faz agravar o sofrimento dos depressivos com sentimentos de dívida ou de culpa em relação aos ideais em circulação”, relata.
Dunker ressalta que uma das dificuldades deve-se ao fato de a depressão muitas vezes ser usada como termo genérico. “Ouvimos essa neutralização em formulações como “isso é tudo psicológico”, como se o “psicológico” fosse uma substância feita apenas de força de vontade, disciplina educativa e disposição moral. No caso de suicídios a coisa é ainda mais grave porque, com raras exceções são precedidos por avisos, pedidos de ajuda e sinais claros”, diz.
Uma vez diagnosticado o problema, a forma mais adequada de tratamento passa ser o foco dos debates. Para Barbara Mintzes a terapia deveria substituir o uso de antidepressivos, os quais seriam reservados apenas para quadros severos de depressão, diferente do que ocorre atualmente. Ela cita a meta análise publicada na revista Plos One na última semana de agosto por pesquisadores da Universidade do Estado de Wayne, nos Estados Unidos, que aponta pouca diferença entre o uso do antidepressivo paroxetina (comum em inúmeros remédios) com o uso de placebo. Mintzes chama a atenção ainda para o crescente número de prescrições de antidepressivos durante a gravidez e defende que, nesses casos, seria especialmente importante pensar primeiramente em opções alternativas de tratamento, como psicoterapia ou terapia cognitiva comportamental.
Ditadura da felicidade
Em A euforia perpétua, o filósofo Pascal Bruckner faz um histórico da ideia de felicidade ao longo dos séculos. Para o autor, na Idade Clássica há uma “ostentação” da agonia, que perdurou até metade do século XX. “A igreja admite a felicidade, mas a joga para depois da vida. A ideia de progresso, a partir da Renascença, suplanta a da eternidade, o futuro se torna o refúgio da esperança, o local da reconciliação do homem com ele mesmo”, diz.
Pascal data a década de 1980 com o período em que a felicidade passou a ser obrigatória. “A partir daí uma nova estratégia, que integra o prazer em vez de exclui-lo, apaga o antagonismo entre a máquina econômica e nossas pulsões e faz destas últimas o próprio motor do desenvolvimento. Mas, sobretudo, o indivíduo ocidental se emancipou do jugo da coletividade da primeira era autoritária das democracias, tendo adquirido status pleno de autonomia. Desde então 'livre', não tem mais escolha: como os obstáculos na estrada que leva ao Éden desfizeram-se, ele está 'condenado' de alguma maneira a ser feliz ou, para dizer de outra forma, só pode culpar a si próprio se não conseguir", afirma.
Nesse contexto de busca pela felicidade, Dunker chama a atenção para a perda de statusde remédio para uso social-recreativo de algumas substâncias como cialis e viagra; fórmulas para emagrecimento; benzodiazepínicos e demais tranquilizantes e as medicações para indução de sono. “Em meio a um mundo de simulacros, conseguimos fabricar sensações de felicidade sem ter vivido tais momentos. Isso significa que posso criar 'efeitos de felicidade' sobre vidas absolutamente desinteressantes, desfavorecendo assim o trabalho, o cuidado de si e o empenho sem o qual nenhuma vida se torna relevante para si mesma, e conferindo ao ideal de felicidade a função psíquica de 'desresponsabilização' com a própria vida”, completa.