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ComCiência
On-line version ISSN 1519-7654
ComCiência no.158 Campinas May 2014
REPORTAGEM
Regulamentar, talvez. Impedir, nunca mais. será?
Cristiane Delfina
"O Brasil está na vanguarda dessa legislação, porque somos o primeiro país do mundo a ter uma lei que consolida a internet como espaço livre e democrático, o que é essencial para a participação social, para a inovação e, principalmente, para o exercício da cidadania". Essa foi a fala da presidente Dilma Rousseff durante seu programa Café com a Presidenta no dia 28 de abril, comentando o recém sancionado Marco Civil da internet no Brasil, ou a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014, que tem como três pilares principais de democratização do ambiente virtual brasileiro a neutralidade, a privacidade e a liberdade de expressão, assuntos que também estão em pauta há alguns anos entre os governantes de outros países.
A internet é um canal de comunicação mundial e foco de diferentes discussões em cada parte do mundo. Enquanto em algumas democracias, hoje, se discute como "controlar" o acesso, em muitos lugares ainda é recente a liberdade para a utilização da rede. Mas o fato é que essa liberdade não é uma concessão dos governos, é uma conquista dos usuários que, supostamente, já não se pode mais impedir. Será?
Segundo dados da International Telecommunication Union (ITU), a agência de tecnologias de informação das Nações Unidas, em 2013 o número de usuários de internet no mundo estava em torno de 2 bilhões e 749 milhões de pessoas. Desse total, 958 milhões são provenientes dos chamados países desenvolvidos (designação com função estatística que utiliza valores econômicos e IDH como base) e o restante de países "sub-desenvolvidos" e "emergentes", com diferentes organizações sociais e políticas, como China e Brasil.
Em um artigo apresentado em 2013 no evento "China and the New Internet World, International Communication Association (ICA) Preconference", Gillian Bolsover, William H. Dutton, Ginette Law, do Oxford Internet Institute, da Universidade de Oxford, na Inglaterra, e Soumitra Dutta, da Cornell University, dos Estados Unidos, classificam os usuários de internet no mundo em Old Internet World, referindo-se aos Estados Unidos, Europa Ocidental e países ricos da Ásia (os que primeiro tiveram acesso à world wide web), e New Internet World, tratando de outros países asiáticos, africanos e do hemisfério sul. Os autores caracterizam os usuários de países economicamente emergentes, como o Brasil, com comportamentos mais criativos e interativos no que se refere à criação de conteúdo e uso de redes sociais, mas confirmam que tanto os antigos quanto os novos usuários buscam valores como a liberdade de expressão e a privacidade. A pesquisa que deu origem ao artigo foi realizada em 2010 e 2012, e teve cerca de 11.225 participantes de mais de 60 países. O objetivo era identificar se o comportamento dos usuários teria mais relação com valores culturais, políticos e demográficos ou com a época em que cada país começou a acessar a rede.
A primeira década do século XXI foi a que demonstrou o crescimento mais acelerado de usuários no mundo, graças a maiores investimentos (principalmente dos países emergentes) em tecnologia, destacadamente a partir de 2006, com um boom de usuários na China. A pesquisa da Cornell e da Oxford revela, ainda, que além do gigante asiático, o Brasil, o México e o Egito também aumentaram muito sua população de usuários na década passada. No Brasil, o crescimento econômico ajudou. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), entre 2005 e 2011, o número total de usuários aumentou 143,8% no país. Em 2011, 46,5% da população brasileira possuía acesso à internet. O acesso já chegava a mais da metade da população no Sul (50,1%), no Centro-Oeste (53,1%) e no Sudeste (54,2%). Os estados com maior percentual da população com acesso à internet eram Distrito Federal (71,1%), São Paulo (59,5%) e Rio de Janeiro (54,4%) e os que tinham menos acesso eram Pará (30,7%), Piauí (24,2%) e Maranhão (24,1%). A pesquisa também demonstrou que a maioria dos usuários era jovem na faixa de 15 a 17 anos, o acesso chegava a 74,1% do total, e na de 18 ou 19 anos de idade, chega a 71,8% e de alta escolaridade entre os que têm 15 anos de estudo ou mais, 90,2% tinha acesso. Atualmente, de acordo com o Ibope Media de 2013, já temos cerca de 105,5 milhões de usuários de internet.
No caso do Egito, o aumento de usuários e o perfil de atuantes nas redes sociais se refletiu na revolução que derrubou o governo ditatorial em 2011, pois grande parte da comunicação e organização da gigantesca manifestação de 25 de janeiro ocorreu online, sem falar nas motivações para tal: em matéria publicada na revista de jornalismo independente Fórum Semanal, em 2012, Adriana Delorenzo e Renato Rovai relembram que uma das comunidades que convocou a manifestação era a "We are all Khaled Said" (Somos todos Khaled Said). "Aos 28 anos, no dia 6 de junho de 2010, Khaled foi brutalmente assassinado pela polícia do Egito por ser suspeito de divulgar na internet vídeos de violência policial".
No livro Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet, Manuel Castells descreve em detalhes como o mundo ajudou os cidadãos egípcios a contornar o bloqueio midiático que o governo daquele país impôs para conter a revolução, e relembra que essa movimentação também ocorreu em 2010 na Tunísia e em 2009 no Irã. Conexões discadas, rádio e roteadores alternativos foram disponibilizados para manter os cidadãos em comunicação e garantiram a persistência da organização e acompanhamento do movimento pelo mundo.
"Em primeiro de fevereiro, o acesso à internet foi restaurado no Egito. Mas por que o governo restaurou a internet quando o movimento estava em pleno vapor? A primeira razão foi contribuir, sob alguma pressão dos Estados Unidos, para um retorno à normalidade. Houve também razões econômicas. Segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o bloqueio de sete dias do acesso à internet e às telecomunicações no Egito resultou numa perda de aproximadamente 90 milhões de dólares, o que significa cerca de 18 milhões de dólares por dia, entre 3% ou 4% do PIB egípcio", escreve Castells. Além dos fatores econômicos que envolvem o turismo e as relações comerciais do país, o governo percebeu que o bloqueio se mostrou ineficaz para conter o movimento, que arrumou maneiras de contorná-lo por ele ter sido imposto muito tardiamente, quando as pessoas já estavam nas ruas.
Se no Egito o bloqueio foi tardio, há quem diga que na China, país com a maior população usuária da internet, o controle é constante. Mas há também a observação de que o estabelecimento de um sistema nacional de utilização da rede pode ser uma tendência da governança cibernética geral.
No estudo dos pesquisadores de Oxford e Cornell liderados por Gillian Bolsover, eles apontam que 70% dos usuários que responderam à pesquisa acreditam que a internet é livre. Esse percentual sobe para 80% quando considerados apenas os 24 países emergentes representados na pesquisa; e considerando apenas os Estados Unidos, chega a 92%. Ao mesmo tempo, 52,41% dos usuários chineses concordam que o governo deve monitorar o conteúdo online, e esse percentual não é muito diferente dos outros países emergentes, que somam 45,56%.
Gráficos presentes na pesquisa demonstram que a maioria dos respondentes dos países emergentes e dos líderes atuais de mercado concordam que os governos não devem censurar conteúdos políticos na internet, enquanto a maioria dos chineses se mantém neutra nesta questão. No caso da gravação do que se lê e se baixa pela rede, países como Egito, Algéria, Marrocos e Arábia Saudita não estão preocupados, mas sul-americanos, europeus, australianos, sul-africanos e árabes estão.
Em 2012, a instituição não-governamental americana Freedom House, que luta pela liberdade ao redor do mundo, publicou um relatório sobre a liberdade na internet. A pesquisa foi realizada em 47 países e exibe um mapa do mundo marcando com cores específicas os países onde o uso de internet é livre, parcialmente livre e não livre. Esse relatório de 2012 também demonstra que as restrições à navegação online cresce em muitos países, mas de forma mais velada. Dos 47 países examinados, 20 apresentaram questões relacionadas com as censuras, prisões e violência contra blogueiros e ativistas virtuais, observadas principalmente em 2011, como o Egito e a Jordânia. As restrições crescentes ao uso dos poucos internautas da Etiópia também chamou a atenção dos pesquisadores da Freedom House; e no Paquistão, punições severas são aplicadas a autores de "blasfêmias". Muitos países demonstraram aberturas no acesso, como Tunísia, Líbia e Quênia, com a diminuição das prisões e o aumento da variedade de conteúdo.
Os métodos de controle de acesso apontados no relatório incluem limitação de conectividade e infraestrutura, bloqueios, filtros e prisões de usuários. A pesquisa ressalta que em 2011 e 2012, os métodos que eram empregados somente em ambientes opressivos tornaram-se mais utilizados em outros países com relativa liberdade. Outro ponto que a pesquisa aponta é que o conteúdo propagado está sofrendo cada vez mais manipulação, na busca, muitas vezes, para desacreditar oposições e notícias verídicas, ações, segundo o relatório, antes observadas apenas na China e na Rússia e atualmente usadas em países como Bahrein, na fronteira com o Irã.
Ao comentar as 19 ações de regulamentação de uso da internet no período de 2010 a 2012 e apontar os locais onde esses processos são coercitivos à liberdade, o relatório cita a Argentina pelos entraves impostos à imprensa pela presidente Christina Kirchner.
Embora registrados pela Freedom House como países com liberdade de acesso e expressão, Estados Unidos e Brasil também aparecem no Relatório de Transparência do Google (que demonstra, entre outras coisas, as interrupções de acesso e as solicitações de retirada de conteúdo por parte dos governos), como os países que mais solicitaram retiradas de conteúdo entre janeiro a junho de 2013. Por aqui, inclusive mandados foram emitidos para a retirada de críticas e declarações sobre corrupção envolvendo políticos e juízes. Em alguns casos, o Google apelou para manter o conteúdo online e venceu, mas em outros, registrou o seguinte: "Recebemos um mandado eleitoral para remover uma postagem de blog que criticava um candidato e o juiz que emitiu o mandado de remoção original. Removemos uma postagem de blog do domínio blogspot.com após apelar em vão do pedido sob alegação de que o conteúdo era protegido pela liberdade de expressão de acordo com a Constituição Brasileira".
O que eu sou interessa a quem? A privacidade
Se muitos países aparecem como "áreas livres" em relatórios como o do Freedom House, em relação à liberdade de expressão, em termos de privacidade o problema ganha outra dimensão. A "vida" online pode ser controlada de diversas formas, e quando o assunto envolve economias e comércio, a circulação de informações leva à facilidade que empresas têm de conhecer a vida dos usuários, enviando propagandas para caixas de emails, ofercendo produtos baseados nos perfis de navegação dos usuários e de informações compartilhadas em redes sociais. A rede passa a sugerir o que o usuário deve receber, a partir do que ele manifesta na própria rede em termos de gosto e de hábitos de consumo, através das artimanhas do marketing digital de acompanhar o seu perfil, armazenar dados e comprar bancos de dados de outros sites.
Verificando a necessidade de se regulamentar globalmente as práticas de empresas na internet, organizações como a Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (APEC), que engloba países como Rússia, China, Austrália, Canadá, Estados Unidos, México e Chile, vêm discutindo e desenvolvendo documentos de normalização comuns de privacidade e segurança, enquanto busca evitar a criação de barreiras desnecessárias à fluidez da informação e do comércio. A organização propõe nove princípios de normatização a seus países membros: prevenção de ameaças, notificação de armazenamento de informações, limitações na coleta de informações, notificações sobre o uso das informações, opção aos usuários, integridade, segurança, acesso e responsabilidade.
A APEC trabalha com o comprometimento dos países membros de seguir os princípios e guiar, através de programas, leis próprias e documentos para serem adotados porempresas e instituições, a fim de manter a confiança e as boas relações econômicas entre todos. Nota-se que o princípio de prevenção de ameaças pressupõe o monitoramento das informações e possíveis ações sobre elas. Esse é um item que não está presente, por exemplo, nos sete princípios criados pelos Estados Unidos em 1999 e adotados também pela União Europeia em sua Diretiva de Privacidade de Dados, de 1998, mais rígida e com algumas divergências entre os próprios países do bloco no que se refere ao processamento de dados de cunho étnico, religioso, político, opção sexual e de saúde.
Já o Canadá está à frente de todos os países, com o Personal Information Protection and Electronic Documents Act (Ato de proteção de informações pessoais e documentos eletrônicos), que traz soluções tecnológicas de proteção, como a assinatura eletrônica. Em voga desde 1999, o Ato é, junto com as diretivas da União Europeia, modelo para o anteprojeto da lei brasileira de proteção de dados.
Por onde for, quero que seja rápido. A neutralidade
Nós brasileiros lidamos com diferentes velocidades de navegação, com a internet 3G e 4G, mas a tal "neutralidade" prevista no Marco Civil ainda é pouco compreendida. Ao determinar que não deve existir qualquer tipo de "discriminação" quanto a origem, destino, tecnologia ou conteúdo do dado transmitido, o que se pretende na lei brasileira é evitar realidades como a do Quênia e da Angola, em que só se acessa com boa velocidade o Facebook e o Google Free Zone, que são variações dos sites em versões "light" e sem cobrança de taxas de transferência, principalmente para o uso em aparelhos de celular. Os Estados Unidos aboliram a neutralidade aprovada em 2008, abrindo portas para a exploração de modelos de transferência de dados mais rápidas após os embates entre provedores que oferecem o canal de filmes em streaming Netflix. Por enquanto, o Netflix não repassa a negociação que fez para que os usuários tenham essa velocidade, mas o custo pode vir a integrar sua cobrança mensal.
Conforme publicado no site The Next Web, em 08 de maio de 2012, entrou em vigor na Holanda o decreto de neutralidade na rede, impedindo as empresas de cobrarem pela diferença de consumo de banda para se acessar determinados conteúdos, como vídeos. Essa decisão contraria a opção da União Europeia de não impor a neutralidade para manter a liberdade do mercado de transmissão de dados. O bloco sugere apenas a regulamentação das obrigações das empresas e dos governos para garantir o mínimo de qualidade nos serviços disponíveis, através da Universal Service Directive (Diretiva do Serviço Universal).