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ComCiência
On-line version ISSN 1519-7654
ComCiência no.157 Campinas Apr. 2014
ARTIGO
As Vilas da Copa
Sergio C. Trindade
A preparação da Copa do Mundo de 2014 no Brasil resultará no estabelecimento de 12 estádios de futebol e respectiva infraestrutura. Para valorizar esses ativos construídos com recursos públicos, valeria a pena considerar a criação de Vilas da Copa, verdadeiras mini-cidades permanentes oferecendo, além de ocasionais jogos de futebol, outros esportes, serviços de saúde, educação, treinamento, capacitação profissional, comércio varejista, escritórios, habitação, restauração, hotelaria, turismo, museus, teatro, música, cinema. Uma pré-condição para a viabilidade das Vilas da Copa é uma infraestrutura de mobilidade urbana eficaz. Sua implementação poderia ser guiada por prioridades acordadas pelo consenso de stakeholders relevantes, reunidos em um comitê de coordenação. Esse portfólio de iniciativas prioritárias seria gradualmente transformado em realidade pela mobilização de recursos de investimento privado e público e pela gestão adequada.
O Brasil e o futebol
Os brasileiros são um povo engenhoso e criativo que exala a "alegria de viver". Destacam-se em muitas dimensões, música, artes, literatura, ciência, engenharia e especialmente no futebol, mas vivem em uma sociedade muito desigual. Os programas de transferência de renda, que começaram no governo do presidente Cardoso e foram ampliados sob administrações subsequentes, foram um passo positivo. Juntamente com o crédito mais fácil, têm levado a um aumento do consumo e uma certa medida de inclusão social e mobilidade ascendente. Mas na ausência de fortes políticas de educação, formação, saúde, produtividade, segurança e transporte público, a maior renda familiar disponível pode ser corroída pela inflação, e por si só não provê à população um nível de bem-estar mais elevado.
Os brasileiros, em geral, não têm o hábito da leitura. Preferem a comunicação oral. Informam-se com as redes de televisão, especialmente a poderosa Rede Globo, que disseminam notícias e propagam valores e normas culturais e de comportamento por meio das telenovelas. As redes sociais associadas à internet tornaram-se um dos principais meios de comunicação e mobilização de multidões. O Brasil é a segunda maior comunidade mundial Facebook.
O futebol é o esporte universal das multidões mundiais e brasileiras. Brasileiros e, ultimamente, também as brasileiras, começam a jogar futebol quase desde o momento em que aprendem a andar. Grande número de brasileiros é "viciado" em futebol. O esporte é quase que incorporado a seus genes. Isso se reflete em suas interações sociais e comportamento. Alguns dizem que o futebol é uma religião no Brasil. Ele também desempenha um papel na política e na economia.
Muitos fãs de clubes de futebol no Brasil e em outros lugares no mundo apoiam os seus clubes pelas torcidas organizadas. Além das novelas, o futebol no Brasil é muitas vezes um assunto dominante de conversas, inclusive por meio de redes sociais. Essas interações, ocasionalmente, podem levar a confrontos físicos dentro e fora do campo de jogo, entre indivíduos e entre torcidas organizadas. Alguns destes últimos, muitas vezes maliciosamente, tornam-se violentos e com consequências lamentáveis.
O futebol é governado mundialmente pela Fifa (Fédération Internationale de Football Association), fundada em Paris em 1904. Em 1930, a primeira Copa do Mundo da Fifa foi realizada, quando o futebol já era um esporte olímpico. O Brasil é o único país que esteve presente em todas as 19 Copas do Mundo. Ganhou o troféu 5 vezes, foi vice-campeão duas vezes e ficou entre os 4 primeiros colocados em 10 Copas! O país já sediou a Copa uma vez, em 1950, quando perdeu o jogo final para o Uruguai!
O Brasil e as manifestações populares
Em junho de 2013, tumultos públicos em todo o Brasil surpreenderam governo, congresso, partidos políticos e sindicatos. As manifestações pareciam ser uma expressão espontânea de descontentamento popular com os rumos do país e começaram como um protesto contra a qualidade dos serviços públicos. As prioridades do governo foram contestadas. As multidões se queixavam de inflação, gastos excessivos e corrupção associados aos preparativos da Copa do Mundo e de recursos insuficientes para atender às necessidades públicas concretas e imediatas em transporte público, saúde e educação.
Durante as manifestações, a Copa das Confederações, torneio preparatório no ano anterior à Copa que envolve os campeões das seis regiões do mundo e o Brasil como país anfitrião, estava se realizando. O torneio foi ganho pelo Brasil. Os jogos, disputados em todo o país, foram impactados pelos tumultos. Infelizmente, a natureza espontânea das manifestações, convocadas por meio das redes sociais da internet, permitiu a penetração de arruaceiros e outros com interesses escusos, incluindo grupos de mascarados, os chamados black blocs, o que, lamentavelmente, resultou em episódios de violência gratuita. Mas as queixas que levaram às manifestações permanecem. E tumultos já começaram a surgir em 2014, infelizmente com violência letal. Isso não é um bom presságio para a Copa.
O Brasil e a Copa
Um membro sênior da comissão técnica da Seleção Brasileira, Carlos Alberto Parreira, que como treinador ganhou a Copa em 1994, para a surpresa de todos, lamentou publicamente a falta de compromisso das autoridades na preparação para a Copa de 2014. Há graves atrasos na conclusão da infraestrutura requerida pelo torneio, sete anos após o Brasil ter sido escolhido para sediar a competição! Parreira concordou que, de alguma forma, a Copa vai acontecer, mas importantemente lamentou que o Brasil perdeu uma excelente oportunidade para demonstrar ao mundo que é um país maduro e pronto para desempenhar um papel mais relevante e responsável mundialmente1.
O orçamento oficial da Copa2 é de R$ 26 bilhões (US$ 10.5 bilhões) e supostamente cobre mobilidade urbana3; infraestrutura dos estádios; portos; construção e modernização de 12 estádios de futebol; aeroportos; telecomunicações; segurança pública; turismo e instalações temporárias. O orçamento atual é suscetível de aumento devido a atrasos, orçamentos estourados, inflação e a possibilidade de corrupção. Algo como 99,4% do custo dos estádios será coberto diretamente por fundos governamentais e financiamentos de bancos públicos, como do BNDES. Fundos privados abrangerão apenas 0,6%. No curto prazo, esse programa maciço de construção criou imensas oportunidades de negócios e de emprego para trabalhadores, qualificados e não qualificados, projetos de engenharia e empreiteiras, bem como fornecedores nacionais e internacionais de mercadorias e de serviços inovadores de alto valor agregado4.
As Vilas da Copa
Mas o verdadeiro negócio da Copa do Mundo de 2014 no Brasil deveria ser o de proporcionar oportunidades de desenvolvimento sustentável às comunidades afetadas, a longo prazo, que transcendam o curto prazo do torneio. Isso pode ser alcançado se, em vez de se pensar na construção de infraestrutura física para a Copa, cujos estádios serão posteriormente pouco utilizados, fosse focalizado o estabelecimento de Vilas da Copa, sustentáveis. Essa concepção converteria os atuais desafios levantados pelo clamor público em oportunidades de desenvolvimento sustentável. As queixas públicas seriam respondidas, fazendo da infraestrutura dos estádios uma base eficaz de prestação de serviços de saúde, educação, cultura, produtividade, treinamento e serviços comerciais (hotéis, turismo, de comércio varejista, de habitação, hospedagem, escritórios) apoiada por facilidades de transporte adequadas e outras infraestruturas.
Para assegurar a sustentabilidade, em cada uma das 12 Vilas da Copa, processos de diálogos entre as partes interessadas locais (stakeholders) poderiam ser organizadas para priorizar iniciativas e ajudar a definir o foco e a configuração das diferentes propostas, assim como atrair investimentos públicos e privados para a implementação. Um dos muitos possíveis stakeholders desse processo seriam os Comitês Populares da Copa5 já existentes, que foram formados para manifestar os pontos de vista das comunidades locais afetadas pelas obras do evento.
Mas afinal, quem são os stakeholders? São grupos organizados da sociedade civil que têm interesse claramente associado à questão considerada. Por exemplo, em transporte público, são os passageiros, os empregados no serviço de transporte, as empresas de transporte, os provedores de energia (eletricidade, combustível) e o regulador da atividade transporte, em geral governo ou agência reguladora.
Evidentemente, não haverá tempo útil para implementar a transformação proposta antes da realização da Copa em junho/julho de 2014. Mas se houver suficiente vontade política, interesse amplo entre os stakeholders relevantes e apoio da mídia, seria possível demarrar o processo e implementar suas consequências ao longo dos próximos anos. Os estádios e as infrastruturas associadas já teriam supostamente sido concluídas e, portanto, as bases das Vilas da Copa já estariam prontas para construção.
Implantação das Vilas da Copa
Cada um dos estádios e seu entorno estará regido por estruturas legais que definirão sua propriedade e gestão. Seria importante clarificar desde logo a natureza dessas estruturas, algumas públicas, outras privadas, para que se possa dar início ao processo de diálogo entre as partes interessadas (stakeholders). Seja o poder público (municipal, estadual ou federal) ou privado o proprietário desses ativos, seria necessário motivá-lo em todos os níveis a considerar a proposta das Vilas da Copa. Da mesma forma, se a gestão desses ativos estiver entregue à organização pública ou privada, será preciso discutir com esses gestores a utilização desses ativos. A ideia aqui seria estimular os controladores e gestores dos ativos a tomarem a iniciativa de promover o processo de diálogos entre os stakeholders, sem impor indevidamente sua autoridade, sem desvirtuar o processo.
No caso das Vilas da Copa, de início, como em audiências públicas, mas conceitual e operacionalmente distintas, seriam convidados os interessados no desenvolvimento das Vilas. Como se trata de processo relativamente novo na sociedade brasileira, poderia se considerar a possibilidade de ajudar grupos de stakeholders, potencialmente impactados positiva ou negativamente pelas Vilas, a se organizarem de forma a participar melhor preparados e independentes no processo diante de outros grupos mais organizados.
Em cada um dos 12 sítios um comitê de coordenação, organizado pelo proprietário e/ou gestor dos ativos e composto de stakeholders privados e públicos, de amplo espectro, poderia ser estabelecido para facilitar (sem interferir) o processo de diálogo entre as partes. Por exemplo, poderiam ser consideradas organizações que representem demandas da população afetada pela Vila da Copa (saúde, educação, emprego, transportes); associações industriais e comerciais e entidades correlatas (Senai, Senac); órgãos relevantes de governo municipal, estadual e/ou federal (engajadas em saúde, educação, esportes, cultura, treinamento, transporte, comércio e indústria); entidades privadas envolvidas em saúde, educação, esportes, cultura; hotelaria; habitação; entidades financeiras interessadas em financiar empreendimentos; organização que represente trabalhadores; organização da mídia. A composição do comitê de coordenação seria específica para cada sítio. Apesar da extensão da lista enunciada, o comitê deveria ter o número mínimo de participantes, representando uma ampla gama de stakeholders e interesses, capaz de funcionar eficazmente. Nesse sentido, seria desejável considerar um ou mais facilitadores experientes para animar o processo, sem nele interferir.
A definição de prioridades ocorreria à base de critérios de seleção previamente estabelecidos, escolhidos pelo consenso das partes interessadas. Portanto, a definição e a implementação das prioridades necessitam do engajamento de todos os stakeholders relevantes. Em sua implementação, as Vilas da Copa mobilizariam recursos humanos, materiais e financeiros muito além dos orçamentos governamentais. Mobilizariam recursos da sociedade como um todo, com expressiva participação privada.
No caso das Vilas da Copa, as demandas sociais e econômicas seriam geradas por problemas e oportunidades de desenvolvimento sustentável no entorno dos estádios, e por mercados econômicos e sociais em toda parte.
A identificação dos stakeholders relevantes seria um dos primeiros passos da empreitada. A composição do elenco variaria conforme o sítio. A intensidade da demanda pelos serviços a serem ofertados pelas Vilas da Copa ajudaria a determinar a identidade dos stakeholders-chave, bem como os temas prioritários.
As linhas gerais prioritárias seriam escolhidas pelo consenso alcançado pelos primeiros diálogos entre os stakeholders membros do comitê de coordenação, com base em critérios de seleção previamente definidos. Essas linhas gerais prioritárias seriam, então, detalhadas por meio de levantamentos de informações, estudos e análises, para identificar problemas e oportunidades a serem respondidos pela implementação das Vilas da Copa. É possível que sejam levantadas inicialmente um grande número de ideias, que seriam gradativamente reduzidas, ao longo do processo, ao número que seja implementável sustentavelmente. Será preciso focalizar em um número manejável de temas e iniciativas.
Os diálogos entre stakeholders, que ocorrem no âmbito do comitê de coordenação, prosseguem e reveem as informações levantadas na etapa preliminar e confirmam ou mudam os temas e iniciativas selecionadas inicialmente. Em algumas Vilas da Copa, poderiam haver maior demanda para educação e treinamento do que em outras. Da mesma forma, serviços de saúde não seriam uniformemente demandados por todas. Capacitação a curto prazo para empregos imediatos em diversos serviços poderia ser demandada na maioria das Vilas da Copa. E assim por diante.
Aos critérios de priorização de temas e iniciativas das Vilas da Copa, previamente acordados, poderiam ser acrescentadas metodologias de convergência, atribuindo pesos aos critérios. Apenas para exemplificar, poderiam ser considerados os seguintes critérios pelo comitê de coordenação:
(i) constituir problema e/ou oportunidade para a região da Vila da Copa, para o município, para o estado ou para o país;
(ii) responder a demandas de mercados econômicos e sociais na região da Vila da Copa no município, no estado, no país ou até mesmo no exterior;
(iii) conter externalidades;
(iv) promover a inserção internacional da economia da Vila da Copa;
(v) possuir a capacidade de mobilizar recursos (humanos, materiais e financeiros), privados e públicos;
(vi) prever um tempo de maturação não excessivamente longo.
Uma vez obtido o consenso dos stakeholders em cada Vila, ter se ia estabelecido um portfólio de iniciativas prioritárias. Para a implementação do portfólio, monitorada pelo comitê de coordenação, seriam mobilizados recursos privados e públicos, em tantos ciclos de promoção de investimentos quantos necessários, ao longo do tempo. Uma vez demarrada a implementação de cada Vila da Copa, o comitê de coordenação poderia transformar-se em um comitê de gestão.
Esta abordagem global faria o negócio da Copa do Mundo no Brasil valer mais a pena. Poderia estimular outras comunidades brasileiras impactadas por obras públicas significativas. Promoveria processos decisórios participativos, onde os afetados são mais do que ouvidos. Seria emblemático de um Brasil realmente novo.
Sergio
C. Trindade é consultor internacional em negócios sustentáveis, baseado em New York.
Co-laureado do Prêmio Nobel da Paz 2007 pelo IPCC. Ex-secretário-geral adjunto
das Nações Unidas, de Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento. PhD em
engenharia química, gestão tecnológica e negócios internacionais pelo
Massachusetts Institute of Technology (MIT). strindade@alum.mit.edu
1 http://oglobo.globo.com/esportes/copa-2014/parreira-critica-organizacao-da-copa-do-mundo-foi-um-descaso-total-11410048#ixzz2sPw6WUqP
2 http://www.copa2014.gov.br/sites/default/files/131126_anexo2_resolucao_gecopa.pdf
3 http://www.estadao.com.br/noticias/esportes,obras-de-mobilidade-urbana-para-a-copa-do-mundo-estao-atrasadas,1127972,0.htm
4 http://www.coneq.org.uk/Brazil_docs11/Brazil_World_Cup2011.pdf
5 http://comitepopulario.wordpress.com