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ComCiência
On-line version ISSN 1519-7654
ComCiência no.157 Campinas Apr. 2014
ARTIGO
Por que os livros de história devem permanecer abertos para Lance Armstrong
Por Andy Miah
Pode-se pensar que restou pouco a dizer sobre Lance Armstrong. Ele foi considerado culpado de doping. Ele admitiu a culpa. Seus títulos foram revogados. Ele é amplamente reconhecido pela falta de remorso sobre o que fez, em vez de ver a si mesmo como apenas mais uma das muitas vítimas do mundo do esporte, que inevitavelmente compele atletas a trapacear. O que resta a dizer?
Muito, na minha opinião. Na verdade, há boas razões para acreditar que alguns aspectos da preocupação moral que temos sobre as ações de Armstrong vão mudar, conforme o tempo passar. Acho que, em vez de julgar seu aprimoramento de desempenho como fundamentalmente errado, vamos aos poucos vê-lo como essencialmente necessário para todos os atletas que competem como elite.
Isso não significa que eu pense que ele agiu corretamente. Aceito que provavelmente nunca vamos sentir algo diferente em relação às trapaças, embora a arte do engano seja importante em muitos esportes. Ninguém aceita fraudes e não há como fugir do fato de que quebrar as regras é moralmente errado.
Especialmente no caso do esporte, todos concordam que suas regras, relativamente arbitrárias, só fazem sentido se os concorrentes as preservarem. Em outras palavras, se as regras não forem mantidas não há jogo e o sentido da competição está comprometido. No entanto, até nisso há uma exceção, que é quando, em primeiro lugar, as regras estão erradas. Meu entendimento é de que, sobre o doping, antes de tudo, as regras estão erradas.
Aceito também que haja boas razões para tornar drogas e substâncias perigosas ilegais nos esportes. O esporte deve se esforçar para minimizar os riscos que a comunidade vê como não essenciais para a prática. Assim, uma coisa é reconhecer que o boxe ou as corridas de cavalos têm riscos inerentes à natureza da prática. Outra coisa é defender o aumento desse risco usando substâncias perigosas.
No entanto, essas duas conclusões – que as regras devem ser mantidas e que os riscos devem ser minimizados – não levam automaticamente à conclusão de que os programas antidoping sejam uma boa ideia. Em última análise, nós não sabemos se eles fazem com que os esportes sejam mais justos ou mais seguros. Além disso, pode ser um argumento mais convincente, no futuro, dizer que permitir o doping fará os esportes tanto mais justos quanto mais seguros. Vamos olhar primeiro para a questão da segurança.
Hoje, a ciência trabalha muito para tornar os medicamentos mais seguros; essa é uma de suas características mais perenes e isso é feito tentando compreender melhor nossa biologia, de forma a assegurar que os remédios imitem propriedades naturais de forma bastante eficaz. Nesse sentido, as drogas tornam-se mais seguras, porque são mais parecidas conosco, em vez de algo artificial. Evidentemente, essa segurança é definida apenas de forma muito restrita – drogas são feitas para serem seguras o suficiente para uso terapêutico, e não para um aprimoramento; elas não são testadas em indivíduos saudáveis. Mas, também, vivemos em um mundo onde mais aplicações da tecnologia são feitas com objetivo de saúde, ou para fins de aperfeiçoamento humano. E, num mundo onde a população em geral é mais aprimorada que a população atlética, qual será o ponto de antidoping?
Acredito que o atleta de amanhã precisará do doping de hoje para se manter minimamente competitivo nas performances extremamente estressantes que gostamos de observar. Mas é importante olhar em um nível micro. Qual atleta não gostaria de ter uma pele mais resistente e flexível para evitar bolhas e outras consequências debilitantes durante a prática tão intensa de esportes? Claramente, há a necessidade de uma bioengenharia de pele no desporto. Essa é a primeira coisa que deveríamos permitir que os atletas façam. E a respeito de jogadores de futebol americano? Será que eles não sofreriam menos se seus tendões fossem mais fortes? Sem falar nos ossos...
Os corpos humanos não são muito bem construídos para o esporte de alto rendimento. Muitos atletas têm suas carreiras finalizadas por lesões. Se a tecnologia pode melhorar nossa capacidade de resistência, isso seria desejável e um passo sensato no sentido de tornar-nos melhores.
Hoje, a cirurgia estética é uma mutilação medicamente justificada por melhorar um estado psicológico que de outra maneira estaria vulnerável. Alternativamente, nós adoramos a ideia de que a cirurgia a laser no olho pode até fazer-nos ver melhor do que o considerado humanamente normal. Ao invés de algo com que nos preocupar, o deslizamento em direção o aprimoramento humano através de tratamento médico é algo que gostamos, então por que devemos nos preocupar quando um atleta faz isso?
A melhor maneira de reparar um corpo no futuro será fazendo algo completamente diferente do que fazemos hoje com as drogas sintéticas. Talvez nós super-regularemos alguma substância natural do corpo, ou mesmo nos fortaleceremos no nascimento, ou até antes dele. Na verdade, podemos fazer algo como vacinar crianças no nascimento ou colocar flúor na água da torneira. Esses atos aumentaram a resiliência humana e estão criando gerações de seres humanos aprimorados. Pessoas como você e eu. Esses toques suaves para melhorar os processos naturais estão rapidamente dando enormes empurrões na direção do aperfeiçoamento humano.
Já existe um precedente para isso. Modificamos a natureza há séculos. Mesmo o cão doméstico é um produto da nossa vontade de mexer com o patrimônio genético e, a cada ano, exposições de flores celebram a beleza de algumas novas espécies transgênicas. Por que, então, devemos fazer um alarido sobre tecnologias de doping que fazem os atletas ter melhor desempenho? Esse é o propósito da atividade deles.
"Mas, é injusto!", ouço você exclamar. Então devemos atentar para a segunda preocupação que levantei no início. Minha resposta? Torná-lo legal. Dê a todos a mesma chance de usar uma tecnologia de doping e vamos nos focar em monitorar os riscos. Será mais fácil, já que as substâncias e técnicas serão conhecidas – melhores práticas para otimizar o doping serão até publicadas.
Se isso parece improvável, então leve em conta o fato de que os cientistas de hoje e médicos consideram o envelhecimento como uma doença que deve ser tratada, em vez de um processo a ser aceito. Considere também o fato de que estamos nos tornando sociedades de fanáticos por melhorias, um mundo onde existem coisas como "festa do botox".
Em vez de uma Agência Mundial Antidoping para policiar os atletas que burlam as regras, precisamos de uma Agência Mundial Pró-Doping para ajudar a investir no desenvolvimento de formas seguras de aprimoramento. Essa agência publicaria uma lista de melhorias permitidas, em vez de proibidas. Isso permitiria que as pessoas que não nasceram com a propensão fisiológica da população selecionada de atletas de elite usassem a tecnologia para tornarem-se competitivas, não apenas no esporte, mas também em toda carreira onde as questões de biologia importam – e alguns diriam que em todas.
Lance Armstrong é condenado justamente por sua fraude, mas a situação de todos os atletas requer um exame mais cuidadoso. Eles são colocados numa posição em que é esperado quebrar os limites conhecidos da capacidade humana a fim de produzir um grande show. É a expectativa pública. Essas são as condições que estabelecemos ao distinguir a elite do atleta amador. Mas se não fornecemos aos atletas os meios para atingir esse objetivo, então somos culpados na criação da cultura de doping que Armstrong simboliza – uma cultura conhecida por ser sistêmica e não o resultado de poucos indivíduos, desde quando Ben Johnson foi pego.
O doping prospera porque a sociedade não controla as drogas e porque não há alternativas mais seguras. Se você acha que alternativas seguras não são possíveis, então considere um exemplo – as câmaras de hipoxia, o equivalente tecnológico da substância química EPO, que Armstrong admitiu ter usado. Nesse equivalente tecnológico, um atleta permanece um tempo em uma pequena sala com uma densidade de modificada de oxigênio, e isso afeta sua performance. É legalizada e tem as mesmas consequências do produto químico concebido para ter o mesmo efeito. Se um é aceitável, então por que não o outro? Medicamentos podem até ser uma opção melhor, já que essas câmaras são muito caras e provavelmente inacessíveis para a maioria dos atletas e suas equipes. Medicamentos, em comparação, são baratos.
Então, se as regras estão erradas, os danos são minimizados e a ideia de modificar a natureza não nos preocupa, o que resta para condenar a conduta de Armstrong? O doping faz mais mal do que bem? Ninguém realmente sabe, mas dizer isso irritaria uma vasta rede de suporte de antidoping, apoiado em todos os níveis da sociedade. Como tantas pessoas poderiam estar erradas?
O problema é como calcular o dano e o risco, e quem consideramos ser digno de proteção ou merecedor dos danos que sofrem. A fim de argumentar, vamos dizer que de 100 atletas, 10 são prejudicados na atual situação, onde existem proibições, normas, testes e sanções. Alguns podem considerar esses atletas merecedores de punição porque assumiram o risco – usaram a droga. Alternativamente, vamos considerar que apenas 5 em cada 100 atletas seriam prejudicados no meu sistema pró-doping. Com base nesses números, um ambiente pró-doping pareceria preferível.
No entanto, as cinco pessoas prejudicadas no meu sistema não são as mesmas encontradas dentro dos 10 prejudicados pelo sistema antidoping. Em outras palavras, no sistema onde há proibições e regras antidoping, esses cinco atletas seriam livres de doping, inocentes de qualquer atitude errada e nunca sujeitos a qualquer perigo.
Já na minha versão, uma população, de outra forma inocente, é passível de sofrimento. É por isso que a solução pró-doping é tão desagradável para os policy makers. Não estou dizendo que meu desenho da situação está correto, mas explica como o sistema atualmente vigente – muito parecido com a guerra mais ampla contra as drogas – não é sobre risco absoluto ou danos, nem mesmo sobre fraudes. Trata-se de percepções de justiça e merecimento das pessoas. Queremos que as pessoas certas sejam punidas, e o padrão-ouro é a crença de que os indivíduos são responsáveis por suas ações. Em um sistema onde é permitido doping, essa responsabilidade individual torna-se impossível se manifestar, e a autonomia pessoal desmorona.
No entanto, a onda de aprimoramento humano e de modificação biológica geral, que atualmente cresce em todo o mundo, torna nossos sentimentos sobre a imoralidade do doping redundante. Ciência e medicina estão trabalhando duro para nos libertar de doenças e enfermidades, e isso vai nos tornar super-humanos.
Uma vez alcançado um ponto de inflexão, as pessoas se sentirão envergonhadas de colocar Armstrong na posição que ele enfrentou, em vez de sentir raiva com a traição. Esse sentimento será acentuado pela descoberta, que ainda nos escapa, sobre como práticas de doping comuns estão intimamente ligadas aos esportes e à sociedade em geral.
1 NE: Lance Armstrong, ciclista americano que perdeu em 2012 seus sete títulos de campeão do Tour de France após admitir o uso de doping e foi banido do esporte.
Tradução: Marina Gomes
Andy Miah é diretor do Creative Futures Institute da University of the West of Scotland. @andymiah