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ComCiência
On-line version ISSN 1519-7654
ComCiência no.154 Campinas Dec. 2013
ARTIGO
A leitura do texto dramático
Carlos Junior Gontijo Rosa
Ator, mestre em teoria literária pela Unicamp. Atualmente é doutorando em literatura portuguesa, na Universidade de São Paulo (USP) e bolsista Fapesp. Sua pesquisa busca a integração entre o teatro e a literatura no âmbito da leitura de textos dramáticos
Ao analisar um texto dramático pelo viés unicamente literário, estamos matando o que seria a essência de sua própria escrita, que é o diálogo com a cena. Já inúmeros teóricos, como Aristóteles e Roman Ingarden, expuseram que o texto dramático necessita que o leitor "complete os seus espaços", pois seus sentidos só serão completamente apreendidos quando da representação.
A própria leitura de um texto dramático é aquilo que resulta do texto (palavras escritas) e da individualidade daquele que lê (interpretação do texto). Na sua qualidade de "esburacado", o texto teatral requer do leitor um posicionamento mais contundente para preenchimento dessas lacunas que, na encenação, são preenchidas pela ação cênica. Pensamos que, imageticamente, o leitor está entre o ator e o espectador, acessando os espaços de ambos para o entendimento da sua leitura.
Artistas, espectadores ou mesmo leitores dependem do contexto de uma ação para interpretar o seu significado e a recepção estética. Entretanto, a interpretação do espectador parte de um demonstrativo visual a cena , que influencia fortemente o seu imaginário; diferentemente, o leitor tem consigo apenas os diálogos e as rubricas e precisa utilizar de sua imaginação para completar os "espaços vagos" que existem na narrativa dramática, de modo a conseguir visualizar por si próprio a cena. Esta é justamente o ponto de chegada do leitor, ao contrário do espectador, que parte da cena.
Como resposta à necessidade recíproca entre autor e ator, o leitor de um texto dramático deve fazer as vezes do ator em sua imaginação, supondo ou imaginando as ações realizadas pelos atores, dentro do seu repertório imagético.
Sabemos que nossa imaginação está impregnada do nosso próprio tempo-espaço e apresenta as mais diversas influências, inconscientemente. Assim, porque "a leitura de um texto dramatúrgico implica inicialmente um intenso envolvimento com o universo que se oferece à nossa imaginação" (Kopelman 2011: 62), o leitor imagina a narrativa dramática dentro de seu próprio contexto. Reciprocamente, a própria matéria da leitura também influencia a perspectiva do leitor sobre o seu entorno.
No caso da leitura, evidentemente, temos que saber que o leitor, por mais acanhado que seja esteticamente, cria imagens enquanto lê um texto dramático. Assim, ele recria e atualiza a ação, de acordo com seus próprios referenciais artísticos e estéticos. "Em uma perspectiva teatral artística, o ato de ler um texto significa o exercício de uma arte, de um ofício que relaciona o material escrito à matéria da vida" (Kopelman 2011: 69).
A atualização, segundo Gouhier, é o diferencial da arte dramática, em que o leitor faz dançar atores imaginários em sua mente. "Atualização da ação por atores [...] não se trata de recitar, mas de ressuscitar. [...] Representar é tornar presente através de presenças" (Gouhier 1956).
Em teatro, cada vez que se trabalha uma personagem ou ideia cênica, estamos a falar de ação, que é o único modo de, em cena, revelar uma ideia, pensamento ou caráter. Cada personagem é apenas um acúmulo de traços selecionados e depende que cada intérprete, individualmente, lhe dê preenchimento, transforme-o em um papel, atualize-o. Assim, como realizar uma ação é individual a cada ator que interpreta determinada personagem ou situação. Também o leitor, à semelhança do que acontece com o ator, deve contaminar e ser contaminado pelo texto lido, ou seja, "entrar em jogo". O leitor adequa a matéria dramática ao seu próprio contexto, que, por sua vez, é alterado pela leitura. Essa postura amplia o papel do leitor na construção de sentido dramático e, simultaneamente, o seu espectro de entendimento da obra artística.
Johan Huizinga, historiador da cultura, sintetiza a ideia de jogo como "uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e alegria e de uma consciência de ser diferente da vida cotidiana" (Huizinga, 2000: 24). Ainda segundo o historiador, o jogo tem a força de um fenômeno cultural, presente em todas as manifestações humanas, pois o homem joga o tempo todo, adotando papéis específicos para cada situação em sua vida. Dentre as diversas classes de jogos realizados por nós ao longo de toda a nossa vida, existem aqueles que Viola Spolin caracterizou como jogos teatrais (theater games), entendendo o jogo como fenômeno cultural e como prática inerente à ação representada por atores em cena.
De acordo com teóricos consagrados no teatro, como Denis Diderot ou Constantin Stanislavski, o ator, ao lançar-se à cena, deve ao mesmo tempo se perceber e se policiar o paradoxo da arte , pois o ator não deve carregá-la de seus sentimentos pessoais. Já ao leitor, é menos prejudicial a aceitação de seus próprios sentimentos para uma leitura, uma vez que não representa aquilo, não o carrega diretamente para seu corpo, como o ator. Mas, mesmo o leitor, ao colocar-se "em jogo", pode melhor fruir uma peça teatral. "A técnica não só não exclui a sensibilidade, mas a autoriza e liberta. É seu suporte e sua salvaguarda. (...) Permite-nos improvisar." (Copeau 1974)
A imaginação de quem faz, assiste ou lê é o elemento que permite "instaurar-se o plano poético onde a impossibilidade não existe" (Lazzaratto 2012:36). Esse pensamento "irracional-intuitivo", do qual faz parte a imaginação, é complementar (não oposto) ao racional-discursivo, para fruir a experiência viva do teatro: "O esforço imaginário em si não precisa ser justificado; ele pode, em determinados casos, ser bem-sucedido ou falhar, mas é uma faculdade sem a qual nenhum estudo atual das artes cênicas seria possível" (Williams 2010: 39). Podemos tomar por certo que qualquer leitor que se debruce sobre uma obra de dramaturgia, e a compreenda, faz uso de sua imaginação.
Se a ação é "tornada presente" pelo ator no campo da ficção, pois que a cena não passa de representação, é a imaginação que leva o espectador a relacionar-se com a cena e esta com a vida. Ou seja, é na imaginação do espectador que o ator (intérprete, executante) "empresta" seu ser à personagem. Não é o ator que acredita ser a personagem, mas o espectador que acredita que aquele ator é a personagem. Na leitura, acontece quase o mesmo. Entretanto, são as emoções e impressões de mundo do leitor que são "emprestadas" às personagens. Daí a visão imagética de que o leitor estaria entre o espectador e o ator, enquanto que, como público, atribui suas emoções e visão de mundo ao texto; como ator, lê e interpreta a expressão dessas emoções.
Contudo, subjugar o texto dramático à nossa ideia de representação teatral, a partir de nossa experiência contemporânea, pode ser no mínimo limitador de suas potencialidades. Cada leitor carrega uma bagagem que o auxiliará a visualizar e entender a cena por uma perspectiva, dentre um espectro de possibilidades: um leitor desavisado pode interpretar a obra como lhe aprouver e até pensar que não está lendo bem ou que o texto está mal escrito. Ao leitor crítico, compete compreender as implicações históricas e estéticas da escrita do texto dramático lido, ou seja, a interpretação da obra deve ir além do seu gosto pessoal e ponderar entre as metamorfoses que o teatro sofreu e que influenciam o seu pensamento e o momento em que aquilo foi escrito/representado. A fixação de uma única forma singular de leitura, qualquer que seja ela, é ineficaz por não levar em consideração a abordagem de uma arte variada e contínua. Por esse motivo, não nos detemos a exemplificações, na esperança de que elas não engessem a fluidez e relatividade da perspectiva de leitura proposta.
Assim, o texto dramático deve ser percebido como objeto artístico, passível de diversas interpretações; não possui uma forma única de ser levado à cena, bem como não tem apenas uma forma de leitura. Por isso, a importância de se compreender todos os aspectos envolvidos na escrita da cena, não estabelecendo formas de interpretação, mas diretrizes para a compreensão o mais global possível da obra. Estabelecer leituras múltiplas sem deixar que a nossa interpretação caia em anacronismos é ponto fulcral para a fruição do texto dramático.
Quanto mais antigo é um texto, mais descontextualizado da experiência do leitor contemporâneo ele se encontra. Para a leitura atual não só de textos nossos coetâneos, mas especialmente de textos antigos, "estar em jogo" deve ser considerado pelo leitor como necessidade para a leitura: "a leitura de um texto clássico requer alguns critérios de recepção [...] que testemunham como esse texto é recebido e percebido na atualidade. Nesse processo, a participação do receptor, destinatário da obra, é fundamental para a construção dos sentidos que mantêm a obra circulando na vida." (Kopelman 2011:70). A compreensão de um texto que se confronta com um problema relativo a uma ação dramática vai se solucionando por meio da sua imaginada atuação. O leitor imagina como a ação cênica se desenvolveria em cena, improvisa imageticamente toda a ação da peça, das diversas personagens e mesmo as movimentações de luz, cenário e sonoplastias.
Sendo a leitura um tipo de "recordação", enquanto a encenação é momento presente puro, propomos que o leitor, durante a sua leitura, atualize a ação do texto dramático, ou seja, use o recurso do "puramente ficcional", somado à possibilidade de tais ações serem executadas por personagens cuja representação é feita por pessoas reais.
Embora difícil de se enquadrar em padrões estáticos e "duros" de análise, há que se encontrar meios, pontos de contato e diálogo, flexibilizações e brechas para que a arte tenha seu espaço, reconhecendo que o pensamento artístico (intuitivo-dedutivo) também é fonte e construção de conhecimento.
Assim, abarcar-se-ia mais facilmente as especificidades da leitura de textos dramáticos, por meio do jogo, que não deveria se resumir às construções imagéticas de um texto. É através dele que nos aproximamos de um entendimento mais completo ou complexo do texto dramático. Portanto, é também "em jogo" que devemos escrever e ler uma crítica ou assistir a um espetáculo e, assim, expandir a nossa fruição das artes em geral.
A atualização, especialmente quando falamos da leitura de textos antigos, não deve ser entendida como anacronismo na apreciação de uma obra. Ela, que também é conseguida a partir do estado de disponibilidade que o leitor se coloca em relação à leitura, pode ser percebida como uma rede de referências e paralelismos elaborados a partir do pensamento contemporâneo (do leitor), para completar o entendimento do pensamento passado (presente na obra). As relações estabelecidas não são binárias este do passado é igual àquele do presente , mas uma teia de complexas analogias, que têm por finalidade o entendimento da universalidade daquele texto.
O jogo, portanto, seria um recurso utilizado para o melhor estabelecimento dessa rede de analogias, uma vez que o leitor não precisa empreender uma pesquisa aprofundada para fruir a arte dramática escrita, ou seja, para "entrar em jogo" com as intenções comunicativas de um texto dramático.
Referências
Copeau, Jacques. "Aos atores (excertos de 1923, 1928 e 1940)", In: Jacques Copeau, Registres I Appels, trad. Roberto Mallet, Paris, Gallimard, 1974, p. 205-215, disponível em www.grupotempo.com.br/tex_aos_atores.html, acessado em 15 de abril de 2012.
Gouhier, Henri. La esencia del teatro. Buenos Aires: Ediciones del Carro de Tespis, 1956.
Huizinga, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 2000.
Kopelman, Isa Etel. "Questões de texto e cena". Pitágoras, 500 Revista de Estudos Teatrais, v. 1, out/2011, p. 62-71.
Lazzaratto, M. Improvisação, uma necessidade. Pitágoras, 500 Revista de Estudos Teatrais, Campinas, v. 2, p. 33-41, abr. 2012.
Williams, Raymond. Drama em cena. São Paulo: CosacNaify, 2010.