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ComCiência

On-line version ISSN 1519-7654

ComCiência  no.153 Campinas Nov. 2013

 

ENTREVISTA

 

Osvaldo Saide

 

 

Ricardo Manini

 

 

Em entrevista para a ComCiência, o psiquiatra e professor Osvaldo Luiz Saide, da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), comenta como o uso de substâncias psicotrópicas pode provocar ilusões. Ele explica ainda como é o processo da dependência, afirma que o uso recorrente da maconha pode levar a problemas psiquiátricos graves e critica a precariedade das políticas públicas relacionadas ao usuário de substâncias alucinógenas.

Que tipo de psicotrópico pode levar as pessoas a terem ilusões?

Psicotrópico é um conceito que engloba qualquer substância química com ação no sistema nervoso central. Até café e álcool podem ser considerados psicotrópicos. Existem muitos tipos e o ser humano usa alguns deles desde a pré-história para mudar o estado de consciência, como o álcool, por exemplo.

Os psicotrópicos também podem ser úteis no tratamento de doenças mentais, mas essa é uma descoberta recente e data de meados do século XX. Antes, ainda em fins do século XVIII, Philippe Pinel defendeu que as pessoas poderiam sofrer alterações significativas de vida por conta de distúrbios mentais. Por muitos séculos pensou-se que estavam dominadas por demônios, mas com a Revolução Francesa e os princípios racionalistas surgiu uma nova visão, a de que distúrbios de comportamento poderiam ser resultado de doenças.

Durante o século XIX houve pouco avanço no uso de medicamentos para o tratamento de distúrbios mentais, e em 1950 surgiu o primeiro medicamento com ação específica nos sintomas psicóticos: a clorpromazina. Foi descoberta por acaso, pois a intenção era apenas acabar com a agitação desses pacientes. Delay e Deniker, na França, perceberam que o produto não era um simples sedativo, mas cessava alucinações e delírios, mantendo o paciente desperto. Tratava-se da descoberta do primeiro antipsicótico.

Com qual intenção as pessoas fazem uso dos psicotrópicos?

O ser humano sempre fez uso de substâncias químicas para mudar sua visão domundo. Essas substâncias não têm, em geral, intenção terapêutica. Às vezes podem ter intenção religiosa. No Brasil, a ayahuasca se disseminou, teve uma penetração grande como um modo de se espiritualizar, um meio de obter modificação do nível de consciência. O grupo mais organizado e de maior difusão no país é a União do Vegetal (UDV), que usa ayahuasca em suas práticas religiosas. Mas há vários outros, como Santo Daime e Barquinha.

Em geral, as pessoas querem ter ilusões por meio do consumo de psicotrópicos para modificar sua própria realidade, afastar a sensação de desprazer, escapar do medo da morte. E isso é muito antigo. O álcool tem registros de uso anteriores à escrita – foi o primeiro psicotrópico utilizado com essa intenção.

Existe uma sensação positiva no início do uso dessas substâncias, por isso há dependência?

De regra, sim, mas nem sempre, pois algumas substâncias não provocam prazer imediato. A pessoa sente outras coisas, como ficar mais tranquila, por exemplo. Fora isso, existe a pressão social. Muitos insistem no uso para acompanhar a moda ou buscar sentir o que os outros relatam.

Um exemplo muito popular é o álcool, que no mundo ocidental é aceito socialmente, mas em alguns lugares no Oriente Médio, principalmente entre os muçulmanos, não. Aqui se aceita e se incentiva – especialmente em festas e confraternizações.

Muitas pessoas não se sentem bem com o uso da nicotina, no início. Mas depois tentam novamente e se adaptam à substância porque há vantagens no uso, como ser aceito no grupo ou ficar mais calmo para falar com alguém. A partir daí, surge um estado de lua de mel com a substância. Depois de um tempo, se o uso se prolongar, a pessoa não consegue mais realizar certas atividades sem ter contato com a substância. É a dependência.

Essas ilusões sensoperceptivas são comuns com o uso de qualquer dessas substâncias?

Não, variam. Há um grupo conhecido por psicodislépticos, ou alucinógenos, cuja característica é provocar alterações sensoperceptivas. Pertencem a esse grupo a mescalina, o LSD (ácido lisérgico), substâncias que sempre provocam alterações quando utilizadas.

No caso da maconha (princípio ativo THC – tetrahidrocanabinol), por exemplo, se ocorrer uma alteração sensoperceptiva logo no início do uso, é mau sinal. Essa hipersensibilidade pode indicar risco de desencadeamento de quadros psiquiátricos que é o principal efeito colateral do uso de maconha: facilita a abertura de quadros de esquizofrenia ou Transtorno Bipolar em predispostos. Alguns têm sensibilidade muito grande, fumam um cigarro de maconha e veem estrelas na parede. Essas não deveriam fumar nunca.

O mesmo para a cocaína. Inicialmente, o uso da coca dá muita energia, entusiasmo, você faz um super trabalho, vira noites trabalhando. Parece bom, mas depois pode fazer com que a pessoa se torne paranoica. Ela se sente perseguida, ouve barulhos, vozes que a ameaçam, e precisa continuar usando pois está dependente – mas o cérebro já não funciona bem.

Com quais substâncias essas ilusões são mais comuns?

Existem substâncias que mesmo usadas uma única vez provocarão ilusões, até naqueles menos sensíveis. É o caso do peiote, da mescalina, do LSD.

Se a pessoa está numa varanda, por exemplo, poderá ver a varanda se modificando, com passarinhos pousando por ali. E pode também apresentar uma alteração aguda, mas isso não é típico de toda substância psicotrópica.

A ingestão de alucinógenos afeta principalmente os sentidos?

Quem está em estado de alteração por uso de substância alucinógena pode comentar coisas estranhas, porque não necessariamente vê essas coisas estranhas, mas interpreta os fatos de modo peculiar. Passa pelas mesmas situações que os outros, mas interpreta de um jeito diferente.

Os alucinógenos mexem com sensações subjetivas. Em geral, todos têm filtros com os quais lidam com as informações que recebem, mas quando se usa um alucinógeno, esses filtros diminuem. Quem está ao lado acha estranho.

Se a pessoa normalmente não faz essa filtragem, nem usou drogas, provavelmenteestá com algum problema psiquiátrico grave. Por exemplo, no caso das paranoias. É preciso usar uma medicação que reduza essas sensações estranhas, como um antipsicótico.

E se a pessoa tem ilusões em seu estado natural, sem usar nenhuma substância?

É o caso de quem sofre de esquizofrenia. Bipolares também têm isso. Para tratar esses problemas existem os antipsicotrópicos, para que haja recuperação do sistema nervoso central. Atualmente é possível o controle dessas enfermidades. Antes esses pacientes eram medicados para ficarem sedados. Não era um tratamento, mas a manutenção de um estado de menor agitação. Houve uma revolução com a descoberta dos antipsicóticos, a partir de 1950, na França, e depois no resto do mundo. Os medicamentos atuais superam muito a antiga clorpromazina em termos de eficácia, segurança e redução de efeitos colaterais.

No caso de quem tem esquizofrenia, como são as ilusões?

São muitas as possibilidades de alterações sensoperceptivas. Pode sentir alteração na pele, no olfato, no paladar, na audição e na visão. O mais comum são barulhos – a maior parte incompreensível. Escuta uma voz, mas não entende direito. Acha que é o vizinho, mas ninguém mais ouve. Logo acompanham as alterações de pensamento e a atividade fica desconexa, pois a doença desorganiza o pensamento. Existem medicações, mas a pessoa muitas vezes não toma porque acredita em seus sentidos.É difícil se orientar pelo sentido dos outros. Ela não se trata porque ela sente, ela ouve, por mais que o outro não ouça. As ideias começam a se organizar de forma caótica e a compreensão dos fatos fica subjetivamente alterada, o elo entre a pessoa e o mundo se modifica.

O uso recorrente de alucinógenos pode trazer que tipo de consequência?

Pode levar a lesões cerebrais e a paranoias, que configuram problemas psiquiátricos. A maconha e o álcool desencadeiam isso. A questão das drogas é muito delicada, pois modifica o estado de ânimo e de consciência. Afeta o cérebro, órgão mais nobre, que permite entender o mundo.

Apesar de ser uma questão tão importante, essa mensagem de que a maconha pode levar a problemas psiquiátricos não é suficientemente divulgada. As pessoas acham que é só mais uma droga, uma erva inofensiva, e não é bem assim.

Como você vê as políticas públicas no Brasil em relação ao usuário de alucinógenos?

Não temos um sistema bom. Não temos atendimento suficiente, nem de boa qualidade. É um problema grave. Às vezes cometemos o erro de criminalizar quem usa maconha, o que não deveria acontecer considerando-se toda a informação da qual dispomos. Caberia uma grande ação preventiva para que compreendam o risco inerente à conduta de uso, em especial o uso sistemático. É preciso ter uma consciência social mais séria do risco que representa o uso regular de maconha.

A propaganda do álcool está livre, a maconha dizem que é uma erva inocente. O governo não tem projeto de atendimento e prevenção eficiente. A única coisa interessante foi a Lei Seca, que não é tão seca assim, pois você pode beber muito e voltar para casa de ônibus. Mas foi uma medida interessante, um primeiro alerta social quanto ao abuso de álcool.

Em termos de atendimento, dependentes de drogas e familiares passam por dificuldades. Tudo é muito precário, com déficit de locais de atendimento, poucos leitos médicos para casos graves e ausência de estrutura e equipes. Estamos muito aquém de um atendimento eficiente, em plena epidemia do uso do crack, e iludidos achando que liberar é a solução.