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ComCiência
On-line version ISSN 1519-7654
ComCiência no.152 Campinas Oct. 2013
RESENHA
A ciência aos olhos da sociologia
Ricardo Manini
Autores mostram como, com o tempo, a atividade científica ganhou contornos de um campo de imbricações com o todo social
Alguns questionamentos sobre a ciência são feitos por áreas das Humanidades que se ocupam de estudos direcionados a ela. Se a ciência representa um campo em que a racionalidade e o método se perfazem de modo imparcial, e ao largo de toda e qualquer influência da sociedade é um deles. Se a ciência segue uma lógica própria, em que alguns parâmetros, como o rigor com a veracidade, são sempre observados é outro. Assim também surge a pergunta: a ciência foi sempre feita, enfim, do mesmo modo? Em Controvérsias sobre a ciência: por uma sociologia transversalista da atividade científica, Terry Shinn e Pascal Ragouet discutem essas e outras questões relacionadas à definição e à organização da ciência.
Shinn é um dos principais sociólogos da ciência franceses. É diretor de pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e professor de doutorado na Sorbonne. Já Ragouet dá aulas na Universidade de Bordeaux, além de ser pesquisador de um centro científico importante, o Centre Emile Durkheim.
O livro foi escrito e publicado, em francês, em 2005, quase 10 anos depois do caso Sokal. Como os próprios autores revelam, esse episódio chacoalhou a comunidade científica na França e na Inglaterra – além de ter produzido efeitos em outros lugares, e os fez prestar mais atenção em duas concepções muito distintas da atividade científica.
Em 1996, um professor de física da Universidade de Nova York, Alan Sokal, enviou para análise e publicação da revista Social Text, publicada pela Duke University, um artigo intitulado "Transgredindo as fronteiras: em direção a uma hermenêutica transformativa da gravidade quântica". O artigo continha uma miríade de erros e impropriedades, algumas até grosseiras, mas passou pelo crivo dos editores e foi publicado.
Ao mesmo tempo, Sokal publicou um outro texto, na revista Língua Franca, uma revista literária sobre a vida acadêmica, na qual denunciava "a falta de rigor intelectual da corrente pós-moderna e o caráter bastante inconsequente dos procedimentos de avaliação em curso na Social Text", conforme escrevem Shinn e Ragouet. Eles complementam: "Para ele (Sokal), estava feita a demonstração de que os intelectuais pertencentes a esse movimento de pensamento não mostravam seriedade intelectual".
Segundo os autores, o que se viu nesse caso foi justamente o confronto entre dois modos de se enxergar a ciência. No primeiro, valores mertonianos como o universalismo, o comunalismo, o desinteresse e o ceticismo organizado procuram determinar as ações dos cientistas.
Aqui, o comunalismo indica que a ciência e os resultados científicos devem ser partilhados por toda a sociedade, enquanto o desinteresse simboliza que o cientista não atua em prol de louros próprios, mas em busca da verdade, que só pode ser encontrada se houver um olhar cético da comunidade científica (o "ceticismo organizado", a visão dos pares). O outro modo de ver a ciência é acreditar que o método científico não é um campo à parte da sociedade e reconhecer que pressões sociais influenciam a pesquisa.
Os autores são hábeis em expor que as duas visões trouxeram ganhos à atividade científica, mas também algumas dificuldades. O primeiro modo, chamado de "sociologia diferenciacionista", foi importante para entender alguns dos mecanismos internos de regulação da ciência. Esses mecanismos são importantes para compreender a atividade científica na medida em que o surgimento de comunidades específicas de ciência, como a Royal Society de Londres, forjou todo um sistema de normas científicas próprias, contribuiu com a criação de profissões científicas e impulsionou o progresso da área. Ao mesmo tempo, essa visão não contribuiu para elucidar a relação entre a sociedade e a ciência e contribuiu para que a própria ciência ficasse "em um pedestal".
A sociologia antidiferenciacionista começou pela própria observação de que a ciência é mais parecida com outras atividades sociais do que desejariam os diferenciacionistas. Essa visão expõe que também na ciência, mesmo de forma bastante complicada em relação à ética profissional e ao cientificismo, o poder, o dinheiro e o lucro simbólico influenciam os cientistas. Ademais, os atores a compartilhar dessa visão não têm como certo a existência de uma verdade única e imutável, mas apostam no relativismo como a única saída possível. Assim, passa-se a atacar o que era a ciência anteriormente e, em alguns casos, anuncia-se a morte da ciência, que seria uma atividade movida apenas pelas exigências do mercado.
O livro, portanto, discute de modo amplo o que é e como se relaciona com outras esferas sociais a atividade científica. Não se trata de um compêndio de casos controversos ou que suscitaram controvérsias científicas históricas. De outro modo, os autores se debruçam sobre a história da sociologia da ciência, atividade que era vista, inicialmente, como tendo uma lógica inteiramente particular, mas que, com o tempo, passou a ser enxergada como um campo com imbricações com o todo social.
No último capítulo, Shinn e Ragouet propõe o que poderia ser uma saída para o conflito entre diferenciacionistas e antidiferenciacionistas, ou seja, a sociologia transversalista da ciência. Esta afirma que a ciência tem sim métodos e motivos próprios, mas que é afetada, ao mesmo tempo, por lógicas de outros microcosmos. "A ciência é, com certeza, enormemente diferenciada, mas os processos de federação são determináveis", afirmam os autores. Um livro de enorme profundidade, certo hermetismo, mas muito útil para quem deseja entender mais a filosofia e a sociologia da ciência.
Controvérsias sobre a
ciência: por uma sociologia transversalista da atividade científica
Terry Shinn e Pascal Ragouet
Editora 34/Associação Filosófica Scientiæ
Studia
2008
208pp