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ComCiência
On-line version ISSN 1519-7654
ComCiência no.147 Campinas Apr. 2013
RESENHAS
O erro deliberado e o necessário: Sagan propõe o uso do método científico para evitar enganos da pseudociência e nos tornar mais críticos e Lentin aborda a importância do erro na história da ciência
Maria Marta Avancini; Ricardo Schinaider de Aguiar
Erros, má-fé, preconceitos e dogmas são indissociáveis da história da ciência. Parte disso não é um problema. Pelo contrário, é em meio a equívocos, golpes de sorte e ideias aparentemente absurdas, que contradiziam a mentalidade vigente, que muitas das grandes descobertas científicas ocorreram. É o que se conclui ao término da leitura do livro Penso, logo me engano: breve história do besteirol científico, escrito pelo jornalista francês Jean-Pierre Lentin. Ao longo de quase 250 páginas, o autor revive algumas das descobertas fundamentais, que marcaram a história da humanidade, a partir de uma perspectiva pouco convencional: a dos enganos - deliberados ou não.
Um exemplo? A fecundação, a formação de um novo ser vivo. Da Antiguidade até meados do século XVII, acreditava-se, a partir das proposições de Aristóteles, Hipócrates e Galiano, que os seres vivos eram gerados a partir da "mistura de sementes" (masculina e feminina).
A invenção do microscópio, por volta de 1650, pelo holandês Anton van Leeuwenhoek, desencadeou uma verdadeira guerra, nos termos de Lentin, entre animalculistas e ovistas. De um lado, os animalculistas defendiam a primazia da "semente masculina" na geração de um novo ser vivo, chegando a postular teorias como a que defendia que o esperma é composto por pequenos animais que comportavam, em tamanho reduzido, um animal macho ou fêmea da mesma espécie - tese defendida por N. Hasrtsouker, aluno de Leeuwenhoek.
Os ovistas, de sua parte, identificaram, em seus estudos, a existência de ovos em mulheres e defenderam que o esperma era responsável pela fecundação, chegando perto de descrever o processo tal como ele acontece. No entanto, o papel do esperma seria o de detonar o desenvolvimento de um embrião inteiramente pré-formado dentro do ovo.
Durante quase dois séculos, biólogos se sucederam numa série de argumentos e teorias - tão elaboradas quanto absurdas, aos olhos contemporâneos - para explicar como ocorre o desenvolvimento de um ser vivo: o naturalista Buffon defendia que as sementes eram elaboradas em cada órgão e eram escoadas pelo sangue, guardando o molde do órgão onde foi elaborada. Ao chegar às partes sexuais, as partes se agregavam e formavam animálculos. A fecundação realizaria uma mistura de todos os pequenos moldes.
Embora hipóteses como essas sejam totalmente infundadas à luz do que conhecemos hoje, as disputas entre ovistas e animalculistas tiveram o mérito de estimular o estudo aprofundado dos espermatozóides e dos óvulos, servindo de base para a "solução do enigma", com a ascensão da ideia de que a célula é a unidade básica vida, ao lado da descoberta dos cromossomos e dos genes. Ou seja, o erro não invalida ou exclui o conhecimento e as descobertas científicas; ao contrário, é inerente a elas, convivem lado a lado.
Assim foi com Nicolau Copérnico, que tirou a Terra e colocou o Sol no centro do sistema solar. No entanto, seguindo a herança de Platão e Aristóteles, insistiu que as órbitas dos corpos celestes eram regulares e circulares, por mais que as observações indicassem que sua tese estava errada e não fossem coerentes com os cálculos matemáticos que visavam comprovar a perfeição do Universo criado por Deus. Em outras palavras, o "esprit du temps", fundado numa visão religiosa católica de mundo, obscurecia sua visão.
Esse caso ilustra, segundo Lentin, a força dos dogmas enquanto fator de indução ao erro. Tanto aqueles formulados a partir de crenças religiosas quanto os decorrentes de ideias e postulações consideradas verdadeiras, ainda que sem comprovação. Seguindo uma trilha semelhante, Leonardo da Vinci, apesar de suas exímias habilidades como observador e de praticar, discretamente, dissecações de corpos humanos, os desenhava com vasos sanguíneos multiplicados e aumentados na região do fígado, mantendo-se fiel a uma crença persistente desde a Antiguidade: a de que esse órgão era o responsável pela produção do sangue.
Mas a imaginação e crenças cristalizadas no senso comum também induziram a erros que, hoje, se assemelham a alucinações. E, assim, histórias saborosas e surpreendentes se sucedem no livro. Outro exemplo: em 1894, o norte-americano Percival Lowell, teria descoberto, em suas observações com telescópio, canais de irrigação artificiais em Marte. Na época, astrônomos renomados (Huygens, Fontenelle e Bode) defendiam a ideia de que os planetas do sistema solar eram habitados por seres vivos. E os marcianos seriam os que mais se assemelhavam aos terráqueos.
Lowell publicou suas descobertas em obras como Marte e seus canais, de 1906, e elas acabaram sendo refutadas, posteriormente, a partir das observações feitas com telescópios mais potentes. No entanto, algumas de suas hipóteses sobre Júpiter, Saturno e Urano permaneceram válidas, sem contar que, em seus estudos, ele também defendeu a existência de um planeta suplementar, para além de Urano, o que se confirmou em 1930, com a descoberta de Plutão.
Para o cidadão comum, pouco familiarizado com a vida nos laboratórios e com o cotidiano das investigações científicas, ou mesmo para aqueles que (ainda) creem na ciência como uma sucessão de descobertas cumulativas, as histórias resgatadas por Jean-Pierre Lentin em seu livro talvez soem como caricatura - de fato, em alguns momentos, o autor abusa do tom caricatural em seus relatos, na tentativa de fortalecer seu argumento.
No entanto, a história da ciência relatada a partir da perspectiva dos erros e enganos remete a um questionamento fundamental, que contribui para a constituição de um olhar menos ufanista e, provavelmente, mais realista da ciência, da produção de conhecimento e da própria existência humana. Afinal, como postula o autor, nós somos frutos de bilhões de mutações genéticas, erros de transmissão nas redes da vida, que deram origem à diversidade biológica: "Não há melhor exemplo de criatividade errológica. Proclamamos, então, com orgulho: todos nós somos erros!"
Penso, logo me engano
Jean-Pierre Lentin
Editora Ática
1996 (3.ª edição)
255 páginas
O mundo iluminado pela ciência: como o método e o pensamento científico podem ser usados para evitar fraudes e enganos da pseudociência e nos tornar mais críticos sobre o mundo em que vivemos
Ricardo Schinaider de Aguiar
A crença no sobrenatural, em forças místicas, em rituais, em seres divinos e demoníacos esteve presente em basicamente todas as culturas humanas, desde a Antiguidade até os dias atuais. Quando nos deparamos com fenômenos que não conseguimos explicar, podemos facilmente atribuir suas causas a deuses, demônios ou espíritos. Quando buscamos previsões para o futuro ou curas para doenças, podemos tentar nos comunicar com tais entidades ou com intermediários que conseguem acessar uma sabedoria indisponível para uma pessoa comum. Em O mundo assombrado pelos demônios - a ciência vista como uma vela no escuro, o renomado astrônomo e divulgador científico Carl Sagan faz muito mais do que desmistificar e revelar a natureza espúria das pseudociências que assombraram e continuam a assombrar o mundo. Sagan mostra sua paixão pela ciência verdadeira, diferenciando-a das enganosas e fraudulentas pseudociências, e alerta para os perigos da credulidade, não apenas nos aspectos científicos, mas também ao tratar de questões políticas, econômicas e sociais.
A pseudociência permeia nosso cotidiano e, às vezes, chega até nós mascarada de ciência verdadeira. A astrologia e os horóscopos, por exemplo, podem ser encontrados em qualquer jornal diário. Notícias sobre percepção extrassensorial (categoria que inclui a telepatia e a telecinésia), paranormalidade, mediunidade, numerologia e videntes que fazem previsões para o futuro também são frequentes na mídia. Mas por que há tanta pseudociência e há tantos que, mesmo sem nenhuma evidência concreta para confirmá-las, acreditam nela? A pseudociência, com certeza, vende. Ela fornece respostas fáceis, fala às nossas necessidades emocionais e mexe com nossos desejos e esperanças. Por outro lado, "o ceticismo não vende bem", escreve Sagan. Porém, substituir a pseudociência pela ciência seria simplesmente trocar uma crença por outra?
A resposta é, definitivamente, não. Os métodos científicos fornecem à verdadeira ciência a credibilidade que a pseudociência não tem. Por esse motivo, é fundamental a comunicação dos métodos e do pensamento científico, e não apenas a apresentação das descobertas e dos produtos da ciência como afirmativas sem fundamento. A ciência também erra, é claro, mas ela prospera com seus erros, tenta eliminá-los através de um mecanismo de correção que ela própria criou. Hipóteses são formuladas e testadas com experimentos e os resultados são confirmados apenas quando evidências irrefutáveis são obtidas. Já a pseudociência é baseada em hipóteses invulneráveis a experimentos que permitam sua confirmação. A falta de evidências para invalidá-la se torna, erroneamente, evidência para confirmá-la. As poucas evidências que de fato existem a seu favor nunca são comprovadas e, em sua grande maioria, poderiam ter sido fraudadas. Ao discutir política, economia, leis e julgamentos, sempre nos baseamos em evidências. Por que se contentar com menos quando tentamos compreender a natureza e o universo? Por que, ao se deparar com uma explicação para um fenômeno qualquer, não exigir dela evidências capazes de convencer um júri?
Devido aos seus métodos misteriosos e padrões pouco rigorosos de evidência, inúmeros erros e fraudes envolvendo pseudociência foram descobertos. Exemplos incluem o mesmerismo (método de cura através do magnetismo proposto por Franz Mesmer no século XVIII), histórias de raptos por alienígenas e qualquer prova de vida extraterreste, demonstrações da percepção extrassensorial (em especial as realizadas por Joseph Rhine), curas de apendicites por lavagens de água fria, médiuns e cirurgias mediúnicas. E quanto aos pacientes que realmente foram curados através da pseudociência? "É justo suspeitar de toda uma profissão por causa de algumas maçãs podres? Qual a diferença entre o charlatão ocasional que cura pela fé e a fraude ocasional na ciência?", reflete Sagan.
Há casos de fraude na ciência também. A diferença é que eles são raros e são descobertos quase que exclusivamente por ela própria. As taxas de acerto e precisão da ciência são enormes. Contudo, se analisarmos as estatísticas da pseudociência, veremos que suas taxas de cura são semelhantes ou menores às taxas de cura e de regressão natural de suas respectivas doenças, ou seja, seria esperado que elas acontecessem mesmo sem nenhuma intervenção. A pseudociência pode, no máximo, atuar como um placebo no caso de doenças psicogênicas (geradas pela mente, como ansiedade, depressão e dor, por exemplo). Não há registros de cura de doenças orgânicas sérias através de seus métodos. O médico norte-americano William Nolen, após analisar os casos mais notáveis de "curas" sobrenaturais, concluiu que "quando os que curam pela fé tratam de doenças orgânicas graves, são responsáveis por incalculáveis angústias e infelicidade. Os curandeiros transformam-se em assassinos". Os eventuais acertos e curas da pseudociência, explicados pela estatística e pela ciência verdadeira, se tornam provas de sua eficácia, enquanto todos os erros e pacientes que não foram curados caem no esquecimento.
Para não nos tornarmos vítimas daqueles que querem se aproveitar de nossas esperanças e emoções, daqueles que nos enganam e, às vezes, enganam a si próprios também, crendo possuir poderes que na verdade não têm, é necessário o pensamento cético. Quais os métodos utilizados? Quais as taxas de sucesso? Elas são superiores quando comparadas ao de um grupo controle? Quais as evidências e resultados obtidos? Eles poderiam ter sido forjados? Há uma explicação mais simples ou provável para os fenômenos observados? As principais críticas ao ceticismo afirmam que a ciência não mantém a mente aberta a novas explicações. A ciência está sempre aberta para novas possibilidades, porém é preciso separar o joio do trigo e é para isso que servem os experimentos e as evidências. Se, por um lado, nunca aprendemos nada novo quando somos apenas céticos, por outro, não saberemos distinguir entre as ideias promissoras e as insignificantes quando somos crédulos demais. "Aceitar acriticamente toda noção, idéia ou hipótese professada equivale a não conhecer nada. Somente pelo exame cético podemos decidir entre elas", diz Sagan. "Manter a mente aberta é uma virtude - mas como o engenheiro espacial James Oberg disse certa vez, ela não pode ficar tão aberta a ponto de o cérebro cair para fora". Não se trata de rechaçar hipóteses baseando-se apenas em suas premissas; trata-se de analisar evidências.
O pensamento cético é de fundamental importância, e não apenas ao se fazer ciência. "A nossa política, economia, propaganda e religiões ... estão inundadas de credulidade. Aqueles que têm alguma coisa pra vender ... têm um interesse pessoal em desencorajar o ceticismo", escreve Sagan. A credulidade se torna perigosa quando, em vez de cristais milagrosos ou águas contendo superpoderes, tentam nos vender um conjunto de ideias, promessas, crenças e, até mesmo, guerras. Os métodos e pensamentos científicos podem ser utilizados para ensinar o ceticismo e aperfeiçoar sistemas políticos, econômicos e sociais. E eles precisam estar à disposição de todos os cidadãos.
O ceticismo, porém, não é ensinado nas escolas. Crianças e adolescentes não têm contato com os métodos e pensamentos científicos. E se, em vez de ensinar a ciência como um conjunto de regras, fórmulas e conceitos a serem decorados, os professores estimulassem os alunos a realizarem experimentos, formularem hipóteses e chegarem às suas próprias conclusões? E se os ensinassem a questionar as teorias propostas? Se o ceticismo for ensinado desde a infância, quando as crianças se tornarem adultos, "talvez comecem a fazer perguntas incômodas sobre as instituições econômicas, sociais, políticas ou religiosas. Talvez desafiem as opiniões de quem está no poder".
Sagan ilumina nosso modo de pensar muito mais do que a chama de uma vela ilumina a escuridão ao seu redor. Ao mesmo tempo em que nos mostra como a ciência é fascinante, ele nos ensina o ceticismo necessário para compreendê-la da maneira correta e para não sermos enganados, não apenas pela pseudociência, mas também por nossos líderes políticos, religiosos ou por qualquer um que detenha poder. Ele enfatiza a importância de pensarmos por nós mesmos, formarmos nossa própria opinião, questionar as autoridades, e ressalta como a educação desempenha um papel fundamental para a formação de mentes críticas que possam contribuir, no futuro, para extinguir os demônios que assombram o nosso mundo. "Deveríamos ensinar às nossas crianças o método científico e as razões para uma Declaração de Direitos. No mundo assombrado por demônios que habitamos em virtude de sermos humanos, talvez seja apenas isso o que se interpõe entre nós e a escuridão circundante".
O mundo assombrado pelos demônios - a ciência vista como uma vela no escuro
Carl Sagan
Companhia das Letras
1996
448 páginas
10/04/2013