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ComCiência
On-line version ISSN 1519-7654
ComCiência no.146 Campinas Mar. 2013
RESENHAS
Uma trajetória legal da liberdade: A história de como os mais importantes julgamentos dos tribunais dos Estados Unidos levaram às atuais noções de liberdade de imprensa, expressão e pensamento do país
Ricardo Schinaider de Aguiar
"Se há um princípio da Constituição que exige fidelidade de forma mais imperativa do que qualquer outro é o princípio do livre pensamento - não o livre pensamento para aqueles que concordam conosco, mas a liberdade para as ideias que odiamos", sentenciou Oliver Wendell Holmes, juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos entre 1902 e 1932.
A liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática. O direito para dizer e escrever o que se quer é uma necessidade de um país de livre imprensa e expressão. Em seu mais recente livro, Liberdade para as ideias que odiamos, Anthony Lewis, vencedor de dois prêmios Pulitzer, aborda como essas liberdades conquistaram espaço nos Estados Unidos desde sua independência até os dias atuais. A primeira e mais famosa emenda à Constituição norte-americana, que diz que "o Congresso não fará nenhuma lei... que restrinja a liberdade de expressão, ou da imprensa", nem sempre se mostrou eficaz para proteger a expressão crítica no país. Mais importante do que as palavras em si foi a interpretação que juízes da Suprema Corte deram a elas. Através de casos judiciais narrados de maneira didática e explicativa, Lewis conta como os tribunais e seus juízes inspiraram a liberdade e mudaram o curso da história dos Estados Unidos.
Uma das mais difíceis perguntas de se responder, e que foi suscitada após a promulgação da 1ª Emenda, em 1791, era onde deveria ser traçada a linha divisória entre a liberdade e a ordem. A liberdade suplanta todos os outros valores quando entram em conflito com ela? Temos a liberdade para, por exemplo, publicar informações falsas e difamações? Ou seria constitucional uma lei que proibisse a expressão apenas de falsidades?
Para ilustrar esse debate, Lewis cita o interessante caso da "Lei da Sedição", aprovada em 1798 pelo Senado norte-americano. Ela tornava um crime federal a publicação de "qualquer texto falso, escandaloso e maldoso contra o governo dos Estados Unidos". A justificativa dada pelo então presidente John Adams era de proteger o país contra o "terrorismo francês". A Revolução Francesa de 1789 teria levado ao "terror jacobino" e à guilhotina. Não seria a última vez que o governo norte-americano usaria a desculpa do medo e do terrorismo para restringir a liberdade de sua imprensa e de seus cidadãos. Para os federalistas, a lei era constitucional por se aplicar apenas a afirmações falsas.
Os oposicionistas protestaram. O deputado republicano John Nicholas afirmou que qualquer tentativa de distinguir o verdadeiro do falso era incoerente com a liberdade. Críticas e opiniões, por exemplo, frequentemente não poderiam ser estabelecidas como verdadeiras de forma satisfatória perante a um tribunal, fazendo com que impressores tivessem medo de publicar textos mesmo quando não fossem falsos. O mais contundente argumento, porém, foi o de James Madison. Segundo ele, "[a Lei da Sedição] é dirigida contra o direito de examinar livremente medidas e personagens públicos, e de livre comunicação entre as pessoas sobre eles [...]". Os oposicionistas venceram, elegendo Thomas Jefferson presidente, e a Lei da Sedição expirou em 1800. A frase de Madison se tornou uma das premissas fundamentais de um sistema político livre até hoje.
Entre 1801 e 1917, não houve leis que restringissem a expressão ou a publicação. Porém, a interpretação da 1ª Emenda ainda permitia a repressão de toda a expressão que tivesse "tendência nociva". Em 1907, por exemplo, Thomas Patterson, um editor, foi preso por criticar um juiz. Um dos ministros da Suprema Corte, Oliver Wendell Holmes, alegou que a liberdade de expressão significava impedir "restrições prévias à publicação", e não "impedir a subsequente punição da publicação", se essa fosse considerada contrária ao bem público. Nem mesmo o caráter verdadeiro de uma crítica poderia salvar seu autor da punição, pois as instituições governamentais precisavam ser respeitadas para se evitar um "caos social". O governo era então visto como um soberano que precisava ser protegido, e não como um grupo de representantes escolhidos pelos cidadãos para governar temporariamente. Mesmo afirmações verdadeiras, portanto, eram passíveis de punição se causassem algum tipo de prejuízo a ele. Nas décadas seguintes, porém, o juiz Holmes escreveria uma das mais famosas declarações a favor da liberdade de expressão, que teria profundas consequências para a história dos Estados Unidos.
Com a entrada dos Estados Unidos na 1ª Guerra Mundial, uma nova Lei da Sedição e a Lei da Espionagem foram aprovadas pelo Congresso. Elas tornavam crime qualquer publicação que pudesse ser útil ao inimigo em tempo de guerra e bania qualquer publicação que fizesse críticas ao esforço da guerra. Em 1919, um caso baseado na Lei da Espionagem foi julgado. Enquanto sete dos nove juízes da Suprema Corte condenaram quatro russos por jogarem panfletos nas ruas contra o presidente, Holmes e seu colega Louis Brandeis discordaram da decisão. Holmes afirmou que os folhetos não representavam perigo contra as forças do governo, e que os réus estariam sendo punidos apenas por suas visões.
Em 1929, já com 88 anos, Holmes redigiu um de seus mais famosos votos. Quando uma pacifista imigrante da Hungria, Rosika Schwimmer, se candidatara a receber a cidadania americana, mas se recusou a fazer o juramento de que pegaria em armas para defender os Estados Unidos, a cidadania foi-lhe negada. Holmes disse que não concordava com o pacifismo de Schwimmer, mas achava o juramento irrelevante uma vez que ela tinha mais de 50 anos e não seria autorizada a portar armas nem se quisesse. Concluiu seu voto dizendo que o princípio do livre pensamento é fundamental, "não o livre pensamento para aqueles que concordam conosco, mas a liberdade para as ideias que odiamos". Como e por que Holmes mudou de ideia sobre as noções de liberdade e sobre sua interpretação da 1ª Emenda, ninguém pode afirmar com certeza.
O voto de Holmes no caso de Schwimmer gerou precedentes para que qualquer um pudesse sustentar a opinião que quisesse, sem ser punido por isso. A noção de que um indivíduo não pode ser punido apenas por sustentar uma visão, ou uma opinião, mudaria para sempre a noção de liberdade e teria impactos profundos durante e após a 2ª Guerra Mundial. Há polêmica em torno dessa questão até hoje, envolvendo principalmente os discursos de ódio e preconceito. Com o surgimento do nazismo e a tragédia do Holocausto durante a 2ª Guerra Mundial, leis em toda a Europa proibiram o discurso nazista e outras formas de expressões racistas e preconceituosas. Essas leis persistem até hoje.
Nos Estados Unidos, a visão é outra. Um caso simbólico ocorreu em 1977, na cidade de Skokie, perto de Chicago. Um grupo de nazistas americanos anunciou que faria uma manifestação na qual usariam a suástica. Enquanto autoridades da cidade proibiram a disseminação de cartazes e roupas que "incitassem o ódio contra pessoas em razão de sua raça, origem nacional ou religião", a decisão final do julgamento permitiu a manifestação, pois sua proibição seria inconstitucional. A formulação de Holmes para darmos liberdade a ideias que odiamos prevalecia. Em 1984, o juiz da Suprema Corte William Brennan disse: "Se há um princípio fundamental subjacente à Primeira Emenda é que o governo não pode proibir a expressão de uma ideia simplesmente porque a sociedade a considera ofensiva ou desagradável". Nos Estados Unidos, os cidadãos têm o direito de ter qualquer opinião contanto que ela não incite ações ilegais de forma iminente. A proibição deve ser aplicada apenas quando a violência ou a violação da lei são pretendidas e há a probabilidade de elas ocorrerem de imediato. A definição de iminência e a questão da probabilidade ainda geram debates devido a seu caráter subjetivo. Segundo Lewis, palavras podem inspirar atos de assassinato, e "devemos ter a capacidade de punir o discurso que incite à violência terrorista uma audiência que tenha entre seus membros alguns que estejam dispostos a agir com base nessa incitação. Isso é iminência suficiente".
Guerra, medo e liberdade
Apesar de os Estados Unidos serem considerados por muitos, incluindo Lewis, "a sociedade mais franca que existe", em diversos períodos de sua história o governo norte-americano restringiu a liberdade de sua imprensa e de seus cidadãos. Além dos dois exemplos já citados, a Lei da Sedição de 1798 e de 1917 e a Lei da Espionagem, durante períodos de guerra nos séculos XX e XXI, os Estados Unidos continuaram a usar o medo como ferramenta de controle da sociedade. Durante e após a 2ª Guerra Mundial, o medo era justificado pela ameaça comunista e socialista. Políticos atiçavam o medo de americanos desleais estarem ajudando a causa comunista, discursavam sobre a infiltração comunista em escolas, universidades, na imprensa e em Hollywood. Leis rotulavam de infame qualquer pessoa que fosse suspeita de ter inclinações comunistas e acusações baseadas em denúncias anônimas podiam intimar qualquer suspeito a depor. Muitas vezes, caso se negassem a depor, eram presos por desacato ou retratados como subversivos. O presidente Harry Truman chegou a instituir um "programa de lealdade" que demitiu funcionários públicos cuja lealdade era considerada duvidosa devido à sua ligação com supostas associações perigosas.
A preocupação com o comunismo era legítima, pois no mundo a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas representavam um perigo real. Porém, nos Estados Unidos, o Partido Comunista não oferecia ameaças ao sistema de governo. Era necessária a distinção entre a defesa de uma ideia e a tentativa, de fato, de tentar derrubar o governo por meios de força e violência. A defesa abstrata de uma ideia não representa perigo e, portanto, não deve ser punida.
"Em momentos de medo, homens são caçados e punidos por suas palavras e crenças", escreve Lewis. No século XXI, o medo novamente foi utilizado, desta vez pelo governo Bush, para adotar uma série de medidas inconstitucionais. Após o atentado terrorista ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, o medo do terrorismo fez com que Bush autorizasse o uso de tortura em interrogatórios, ordenasse a escuta clandestina de ligações telefônicas internacionais e detivesse cidadãos americanos suspeitos de ligação com terroristas por tempo indeterminado sem julgamento nem acesso a um advogado.
O papel da imprensa em épocas como essa deveria ser a de denúncia e investigação, permanecendo sempre crítica. Nas palavras do colunista britânico do The Times, Bernard Levin, "a imprensa não pode ter de forma alguma compromissos com instituições oficiais e, se algum dia vier a fazê-lo, esse será um dia infeliz para a liberdade... Somos e devemos permanecer vagabundos e fora da lei, pois só assim permanecendo conseguiremos manter a fé pela qual vivemos, que é a busca do conhecimento que outros gostariam que não fosse buscado e a publicação de comentários que outros prefeririam que não fossem feitos".
A imprensa norte-americana, porém, "falhou tristemente", nas palavras de Lewis, ao cobrir a política e o poder do governo após o episódio de 11 de setembro. A crença inverídica de que Saddam Hussein estava envolvido com os ataques, e que abriu caminho para a Guerra do Iraque, foi disseminada pela população e a mídia nada fez a respeito. A falha foi tão grave e evidente que o Washington Post e o New York Times pediram desculpas por sua postura depois. Dentre os motivos para que isso acontecesse, poderia-se incluir o atordoamento dos editores após os ataques terroristas e o apoio ao presidente em busca de uma unidade nacional. Porém, não se pode deixar de citar que o secretário de justiça John Ashcroft disse, na época, que a discordância com o governo seria considerada impatriótica.
Independente das razões para essa lamentável falha, deve-se aprender com os erros para que eles não aconteçam novamente. A imprensa precisa exercer sua função, deve "permitir aos cidadãos examinar livremente medidas e personagens públicos", como disse Madison a mais de duzentos anos atrás, e tirar proveito da grande liberdade que ganhou ao longo dos séculos através de juízes da Suprema Corte e de suas interpretações sobre a Primeira Emenda. Lewis conclui: "Em troca [da liberdade], ela deve à sociedade coragem. Deve resistir à tentação de obedecer ao poder. Seus repórteres e editores devem permanecer flibusteiros - vagabundos e fora da lei, como disse Bernard Levin. Só assim eles podem desempenhar a função patriótica da imprensa de obrigar o governo a prestar contas de seus atos".
10/03/2013
Liberdade para as ideias que odiamos
Anthony Lewis
Editora Aracati, 2011
248 páginas