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ComCiência

On-line version ISSN 1519-7654

ComCiência  no.144 Campinas Dec. 2012

 

ARTIGO

 

Notas históricas acerca do debate mente e cérebro

 

 

Fabiano S. CastroI; J. Landeira-FernandezII

IDoutorando em psicologia clínica pela PUC-Rio
IIDoutor em neoruciência do comportamento, professor associado da PUC-Rio, onde é o atual diretor, e professor titular da Universidade Estácio de Sá (Unesa)

 

 

Cérebro: a fronteira final no debate acerca da natureza da mente humana. A compreensão do funcionamento cerebral certamente irá revelar como somos capazes de criar a música, nos apaixonarmos, escrever peças, brigar, inventar máquinas, pensar e questionar por que pensamos. Parece não haver dúvidas de que o cérebro é fundamental para o surgimento daquilo que chamamos "mente". É crescente a confiança de que seja possível explicá-la, assim como todas as suas atividades e funções, como apenas um fenômeno provocado a partir do funcionamento do cérebro. Compreender como a consciência emerge a partir de um conjunto de sinais sinápticos, capazes de processar milhares de informações ao mesmo tempo, representa um dos maiores desafios atuais, tanto em termos científicos quanto filosóficos.

Apesar de esforços atuais na busca de uma compreensão acerca do funcionamento cerebral, foi apenas em 1891, a partir dos trabalhos de Ramón y Cajal (1852-1934), que tomamos conhecimento de sua unidade básica: o neurônio. Desde então, uma avalanche de novas informações sobre sua composição, funcionamento e ação surgiram no meio científico. E cerca de 100 anos após os trabalhos de Ramón y Cajal, na década de 1990, (também chamada de "Década do cérebro"), pudemos pela primeira vez observar, de maneira não intrusiva e bem íntima, um cérebro humano vivo e consciente em pleno funcionamento, através de diversas técnicas de neuroimagem.

Atualmente, contamos não só com a Ressonância Magnética funcional, mas também com a tomografia computadorizada por emissão de pósitrons ou por fóton único, a magnetoencefalografia (MEG), dentre outros. Todas essas diversas técnicas nos permitem ir, de forma audaciosa, onde nenhum homem jamais esteve: dentro de um cérebro humano em plena atividade, sem a necessidade de qualquer intervenção direta ao cérebro.

No cerne de todo esse empenho científico, residem as questões mais óbvias, mas ao mesmo tempo as mais intrigantes: De onde vêm as mentes? O que são elas? Qual a natureza real dos processos e estados mentais? Em que meio eles ocorrem, e como se relacionam com o mundo físico? Reunidas a partir de um objetivo em comum, as diferentes disciplinas que formam o campo da neurociência - através de tentativas constantes de sincronizar neurônios e pensamento - buscam de alguma maneira responder tais questões, tomando o cérebro como aquele que produz e é responsável por tudo aquilo que chamamos de mente.

 

O início do debate

O cérebro humano sempre provocou um fascínio por seus mistérios e segredos. Como navegadores desbravando mares desconhecidos (ou pouco conhecidos), diferentes estudiosos procuraram desvendar as águas profundas da mente humana e sua relação (direta ou indireta) com o funcionamento cerebral. Ao longo de toda história, observamos tímidas investidas em busca de respostas que falem sobre a natureza humana. Da pré-história aos dias atuais, vemos a construção das mais diversas perspectivas a respeito dessa relação mente-corpo (ressaltando especificamente aqui, o papel do cérebro) (Castro & Landeira-Fernandez, 2010,2011).

O registro escrito mais antigo referente ao "cérebro" encontra-se em um papiro egípcio médico conhecido como "Papiro Cirúrgico de Edwin Smith", datado em 1700 a.C., mas que é relacionado a um período muito anterior, provavelmente de cerca de 3000-2500 a.C. A descrição de casos de lesões na cabeça indica que os antigos egípcios já reconheciam que danos no sistema nervoso central poderiam ter efeitos no comportamento (Finger, 1994). Entretanto, consideravam o coração, e não o cérebro, como o centro do corpo e a sede da alma e da mente. Na verdade, durante a Antiguidade, e em diferentes culturas, o cérebro disputou espaço e "cargo" com o coração, que muitas vezes foi considerado sede da alma, da razão e da emoção humana - visão esta chamada de cardiocentrismo (Castro & Landeira-Fernandez, 2010,2011).

 

Encefalocentristas x cardiocentritas

Foi Alcmeon de Crotona, médico grego que viveu por volta de 500 e 450 a.C. o primeiro a apontar o cérebro como única sede da razão e centro de todas as sensações. Sua posição foi adotada e amplamente divulgada pelo famoso médico grego Hipócrates (por volta de 460 a.C.). Mesmo assim, a visão encefalocentrista encontrou resistência. Será o coração ou o cérebro a sede da razão humana? Duas figuras importantes da filosofia grega antiga são geralmente apresentadas como emblemáticas nessa discussão: Platão (427-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.). Ambos postularam que diferentes aspectos mentais (como emoção, pensamento, sensação) estavam relacionados a regiões específicas do corpo. Entretanto discordavam sobre a sede da mente: para Platão, era o cérebro a sede da alma racional, enquanto Aristóteles considerava o coração a sede da razão. O cérebro funcionaria apenas como um "radiador" corporal, com a função de esfriar o sangue vindo do coração.

O trabalho do médico romano Cláudio Galeno (129-217) foi fundamental para que a perspectiva encefalocentrista ganhasse mais espaço durante a Idade Média. Ao lado de Hipócrates, Galeno é considerado um dos mais famosos médicos do mundo antigo. Nascido em Pérgamo, uma província romana no oeste da Ásia Menor, Galeno viveu no século II d.C., quase seis séculos depois do pai da medicina, e sua contribuição foi extremamente relevante para a área da medicina, principalmente para a anatomia e fisiologia. Seus ensinamentos perduraram por mais de treze séculos e serviram como guia na prática científica e médica durante a Idade Média. Galeno associou a imaginação, a inteligência e a memória com a substância cerebral, atribuindo ao cérebro o papel fundamental de sede de todas as faculdades mentais.

Como um grande admirador do trabalho de Platão, Galeno considerou que as três faculdades da mente (ou alma) seriam divididas em três partes, assim como aponta Platão: os espíritos animais, originados no cérebro; os espíritos vitais, originados no coração; e os espíritos naturais, originados no fígado. Para Galeno, os espíritos vitais, produzidos no ventrículo esquerdo do coração, eram carregados até a base do cérebro, onde se tornavam espíritos animais. Os espíritos animais eram armazenados nos ventrículos até serem necessários, sendo levados através dos nervos para os músculos, permitindo o movimento ou mediando as experiências sensoriais.

Galeno reorganizou o conhecimento de sua época acerca da relação entre o cérebro e as funções mentais, dando grande ênfase à perspectiva encefalocentrista. Sua contribuição ao estudo da relação entre mente e cérebro foi profunda, sendo personagem fundamental na divulgação da ideia do cérebro como sede da mente e da razão. Com Galeno, o cérebro prevalece como órgão do eu.

Além disso, o valor atribuído por Galeno aos espíritos animais como responsáveis pela experiência sensorial perdurou por séculos na compreensão do funcionamento nervoso e isto se refletiu nos estudos de René Descartes (1596-1650), por exemplo.

 

O dualismo cartesiano

Durante a segunda metade do século XVII e o início do século XVIII, observamos uma mudança do pensamento. As contribuições de René Descartes foram decisivas. Segundo ele, a mente era imaterial, indivisível, separada do corpo (extensão, matéria). Assim, propõe uma visão dualista, onde mente e corpo possuem naturezas distintas. Entretanto, para Descartes, a alma exerce suas funções junto à glândula pineal, onde os espíritos animais o circundam, produzindo seus efeitos. Quando a alma/mente quer recordar-se de alguma coisa, sua vontade faz com que a glândula pineal mova os espíritos animais até que eles encontrem os traços do objeto em questão.

Com Descartes, vemos que os espíritos animais ainda eram considerados como responsáveis pelas funções mentais. De certa forma, Descartes apresentou uma visão mecânica fluída do cérebro, similar àquela apresentada por Galeno, utilizando muitos de seus conceitos como partida em sua explicação sobre a interação da alma e do cérebro. A ideia de espíritos animais responsáveis pela animação do corpo só será abandonada no final do século XVIII, com os estudos de Luigi Galvani e Alessandro Volta sobre a bioeletricidade. De qualquer maneira, o que se observa é a consolidação da ideia de cérebro como sede da razão e consequentemente, o estabelecimento do encefalocentrismo.

 

O debate estrutura e função

Durante o século XIX, vários estudos buscaram estabelecer possíveis associações entre estruturas cerebrais e funções mentais. Este tipo de pesquisa deu origem a um dos debates mais intensos da história da neurociência, conhecido como "estrutura versus função". Esse debate levou à formação de duas grandes posições antagônicas. De um lado encontravam-se os localizacionistas, que propunham que as diferentes funções intelectuais estariam associadas à atividade de estruturas neurais específicas. Do outro lado, estavam os anti-localizacionistas, denominados de holistas ou globalistas, que propunham que o cérebro participaria como um todo na execução das diferentes funções mentais.

 

A perspectiva localizacionista

Considerar o cérebro como fundamental para a expressão da mente não é o suficiente. Também é necessário compreender como esse cérebro produz a mente. A perspectiva localizacionista busca atender esta questão. Antes, devem-se considerar dois pontos: que o cérebro possui estruturas diferenciadas; e que a mente humana possui processos mentais distintos - tais como memória, atenção, imaginação, percepção etc. Tendo isto em vista, podemos pensar em determinadas estruturas neurais responsáveis por funções mentais específicas.

Um rápido olhar sobre o cérebro humano nos permite observar diferentes estruturais óbvias: há dois hemisférios, um córtex que se subdivide em diversas dobras (as circunvoluções), um cerebelo, algumas cavidades (os ventrículos cerebrais), além das partes inferiores separadas do cérebro (como o tronco cerebral) e a medula espinhal. Ao se investigar o sistema nervoso e suas relações com a mente humana, é natural se supor que essas diferenças estruturais apresentem diferenças funcionais.

Em Galeno, vemos a substância cerebral sendo associada com a imaginação, inteligência e memória. Ao longo da Idade Média, esse pensamento foi mais desenvolvido e dando origem à doutrina ventricular, cuja premissa fundamental era a de que os ventrículos cerebrais seriam responsáveis por diferentes funções mentais. Ou seja, as funções cognitivas ocorriam não na matéria cerebral, mas em seus espaços internos. Cada ventrículo seria responsável por uma função cognitiva distinta.

No século XVI, o médico e anatomista Andreas Vesalius (1514-1564) publicou uma série de desenhos a partir de dissecações neuroanatômicas que permanecem ainda hoje como uma das melhores ilustrações nessa área. O interesse pela neuroanatomia fez com que a teoria doutrina ventricular fosse contestada, passando então as diferentes estruturas cerebrais a ocupar lugar de destaque no controle das funções mentais. De fato, Vesalius atribui ao córtex as funções cognitivas, contrariando assim a doutrina ventricular. Embora suas considerações não tenham sido suficientes para a mudança de pensamento, serviram como pontapé inicial para as discussões sobre o assunto.

A ideia de que o córtex cerebral é composto por áreas funcionalmente distintas não recebeu atenção do meio cientifico até o início do século XIX. É com os estudos sobre bioeletricidade de Luigi Galvani (1737-1798) e Alessandro Volta (1745-1827) no final do século XVIII e os estudos subsequentes sobre neurofisiologia do século XIX, que finalmente o cérebro é tomado em suas menores partes. Dois eventos são fundamentais para o estabelecimento da perspectiva localizacionista: os estudos da frenologia, proposta por Franz Josef Gall (1758-1828) e Johannn Spurzheim (1776-1832), e os estudos anátomo-clínicos feitos por Paul Broca (1824-1880).

Foram os frenologistas responsáveis pela primeira grande teoria da localização cerebral moderna. Construída a partir do trabalho do médico anatomista Franz J. Gall em 1810, a frenologia possuía cinco princípios fundamentais: 1) o cérebro é o órgão da mente; 2) a mente é composta por um grande número de atributos específicos, morais e intelectuais congênitos, essenciais e irredutíveis chamados "faculdades", algumas intelectuais, outras afetivas; 3) cada faculdade possui sua própria região específica no córtex cerebral composto por vários "órgãos"; 4) certas pessoas são mais dotadas do que outras em relação a certas faculdades; assim, apresentam mais tecido cerebral no local correspondente do que as menos dotadas; 5) como o formato do crânio reproduziria fielmente a superfície do córtex, podemos inferir a intensidade de diversas faculdades intelectuais do indivíduo observando a parte externa do formato do crânio.

As características do crânio serviriam como uma indicação do desenvolvimento do cérebro logo circunscrito abaixo e que o desenvolvimento das regiões corticais específicas estariam correlacionadas às características morais e intelectuais próprias daquela área. Apesar de ter surgido como uma tentativa científica legítima de se estudar o cérebro, a frenologia degenerou gradualmente, ganhando rapidamente o rótulo de pseudociência do século XIX. É interessante notar, que apesar de ser uma "pseudociência", a visão de que as diferentes partes do cérebro servem a diferentes funções mentais acabou persistindo. Na verdade, se observamos com cuidado, podemos perceber que os quatro primeiros princípios são muito próximos de considerações neurocientíficas atuais1.

A partir das considerações feitas pelos frenologistas, a perspectiva localizacionista ganha força no pensamento científico do século XIX. Uma grande discussão sobre a possibilidade ou não de um localizacionismo cerebral se desenvolve. Entretanto, estudos realizados por Pierre Paul Broca, aluno de Jean Baptiste Bouillaud (1796-1881), fervoroso defensor da frenologia, permitiram com que a perspectiva localizacionista estabelecesse raízes sólidas no debate estrutura x função.

Em 8 de abril de 1861, Broca apresentou à Sociedade de Antropologia de Paris o caso do senhor Leborgne, em quem ele havia feito a autópsia no dia anterior. O paciente esteve internado por 21 anos, quando havia perdido a capacidade de falar com coerência. Basicamente, o paciente se expressava apenas usando sinais e parecia possuir todas as suas faculdades intelectuais intactas. Era capaz apenas de pronunciar uma única silaba - "Tan" (sílaba a qual o proporcionou o famoso apelido: "paciente Tan"). Confinado ao leito e a beira da morte, quando uma gangrena grave o levou aos cuidados de Broca, o paciente morreu pouco depois de ser avaliado pelo médico. Após sua morte, Broca realizou uma autópsia e removeu o cérebro do paciente.

Segundo o que observou, o paciente "Tan" apresentava uma lesão claramente visível, situada principalmente no meio do lobo frontal, no hemisfério esquerdo. Para Broca, essa lesão no lobo frontal esquerdo era a causa da perda da fala no paciente. Nos anos seguintes, Broca examinou diversos outros pacientes como "Tan" e encontrou o mesmo padrão geral de dano no lobo frontal esquerdo, concluindo que a capacidade de produção da fala estava localizada nessa região. Em homenagem a ele, essa parte do cérebro é denominada atualmente de Área de Broca. O distúrbio que acometeu "Tan" ficou conhecido como afasia motora e se caracteriza pela incapacidade de articular verbalmente as ideias, mesmo que o aparelho vocal esteja intacto e a inteligência geral seja normal.

A partir das observações feitas por Broca, as querelas entre os frenologistas e seus críticos logo foram deixadas para trás. O método utilizado por Broca - o método anátomo-clínico - permitiu uma nova possibilidade para o estudo da função cerebral humana. Basicamente, consiste na observação das disfunções e alterações mentais e sua correlação com lesões cerebrais, derrames ou outros males encontrados no exame do cérebro do paciente, após a morte, para detecção dessas anormalidades. Importante, qualquer tentativa em restabelecer a perda da função linguística sempre resultava em desanimadores fracassos. De acordo com Broca, era mais difícil reeducar um afásico para recuperar sua função linguística do que ensinar uma criança a falar.

Ao estabelecer uma correlação rigorosa entre características anatômicas e comportamentais, Broca deu a demonstração da localização cortical discreta de uma faculdade bem definida, dentro dos moldes da ciência do século XIX. Esta contribuição abriu um leque de possibilidades para o estudo das correlações entre os processos mentais e o funcionamento cerebral que até então não tinham sido consideradas. Broca apontava para a ideia de que o cérebro seria composto por vários centros funcionais, cada um responsável por uma função específica. A perda de uma estrutura neural levaria à perda da função mental associada a essa estrutura. O prejuízo funcional, por sua vez, dificilmente poderia ser aliviado, uma vez que as demais estruturas neurais preservadas já estariam comprometidas com suas respectivas funções.

 

A perspectiva anti-localizacionista

Defensores da posição globalista ou holista da época, tais como John Hughlings Jackson (1835-1911), Sigmund Freud (1856-1939) e principalmente Pierre Marie (1853-1940) questionaram essas conclusões, postulando que a linguagem, graças a seu aspecto dinâmico, não teria uma representação circunscrita no córtex cerebral. De acordo com essa abordagem, a função linguística dependeria de uma ação integrada do cérebro como um todo. Evidências experimentais também levantaram críticas à perspectiva localizacionista. Por exemplo, Karl Spencer Lashley (1890-1958), trabalhando com animais numa situação de aprendizagem de labirintos, concluiu que o córtex cerebral não apresenta qualquer especialização na aquisição desse tipo de aprendizagem. A esse principio, Lashley denominou de equipotencialidade, ou seja, qualquer área cerebral tem a mesma potencialidade para executar uma determinada função. Lashley cunhou também outro termo, denominado de ação maciça, para expressar a ideia de que a eficiência de uma determinada função depende exclusivamente da quantidade de área cortical recrutada para a execução dessa função.

Mais ainda, evidências clínicas que começaram a surgir no início do século XIX mostravam que intervenções conhecidas hoje como técnicas de reabilitação neuropsicológica eram capazes de aliviar déficits em funções mentais produzidas por lesões neurais. Por exemplo, Jonathan Osborne (1794-1864) descreveu em 1833 o caso de um paciente afásico que apresentou melhora do seu déficit linguístico ao ser submetido a um procedimento sistemático de repetição de palavras. Dessa forma, a possibilidade de recuperar uma função perdida graças a uma lesão cerebral inviabiliza a possibilidade de que de fato existisse uma rígida relação entre uma determinada estrutura neural e uma função mental específica.

 

O desfecho atual e o conceito de circuitaria neural

A busca por uma solução para o debate estrutura versus função teve início com Alexander Romanovich Luria (1902-1977), ao opor-se às perspectivas localizacionistas e anti-localizacionaistas. Luria propôs um modelo, cujo funcionamento normal do cérebro depende de três grandes sistemas funcionais que interagem de forma hierárquica e recíproca. Lesões em determinadas regiões cerebrais levariam a uma desorganização aguda de sistemas funcionais. Intervenções neuropsicológicas, por sua vez, seriam responsáveis por um processo de reorganização desses sistemas funcionais.

O conceito de sistemas funcionais fez com que a ideia de que uma única estrutura estaria associada a uma função específica fosse abandonada. A nova proposta, em substituição ao modelo localizacionaista, que pressupõe uma relação ponto a ponto entre uma estrutura e uma função, partiu do princípio de que uma função mental seria consequência da forma como diversas estruturas se relacionam entre si. De fato, sabe-se hoje que uma criança ao nascer já possui todas as suas estruturas neurais formadas. Entretanto, a comunicação sináptica entre essas estruturas ainda é bastante incipiente. Esta é a razão pela qual o bebê recém-nascido ainda não apresenta grande parte das suas funções mentais. Essas funções são adquiridas ao longo da vida graças à capacidade que diferentes estruturas neurais possuem de fortalecer conexões mútuas, formando assim diversos circuitos neurais.

De fato, parece existir uma relação inversamente proporcional entre a consolidação de um circuito neural e a capacidade de reabilitação de uma função mental associada a essa circuitaria neural. Quanto mais bem estabelecida a conexão entre diferentes estruturas, melhor o desempenho da função. Entretanto, prejuízos no funcionamento dessa circuitaria já bem estabelecida geram a perda da função com maior dificuldade de recuperá-la. Sem dúvida, o prognóstico para a reabilitação de uma função mental é bem melhor quando a perda de uma estrutura neural ocorre muito cedo no desenvolvimento infantil; ou seja, quando a participação dessa estrutura em um circuito neural ainda é mínima. O oposto também é verdadeiro. Pacientes neurológicos com idade avançada, que seguramente já apresentam circuitos neurais muito bem estabelecidos, não apresentam bom prognóstico com relação à recuperação da função comprometida devido a uma lesão cerebral.

Essa relação inversamente proporcional entre consolidação de um circuito neural e sua capacidade de reabilitação revela uma das principais limitações do método anátomo-clínico que, por razões óbvias, era empregado com pacientes em idade avançada. Portanto, não é de se estranhar que Broca, ao empregar diversas formas de reabilitação em seus pacientes afásicos, não obtivesse grande sucesso.

 

Considerações finais

Das questões filosóficas tradicionais referentes ao debate mente e cérebro às atuais investigações experimentais, as mais diversas considerações sobre a composição do sistema nervoso, seu funcionamento e sua expressão em atividade mental foram elaboradas. Ao pensarmos nos dias atuais sobre um desenvolvimento desse campo, nos vemos ainda hoje guiados pelas mesmas questões que incentivaram os pensadores antigos. Por isso, não é absurdo dizer que muitos dos conceitos que atravessam o campo científico encontram suas origens nas especulações antigas e provavelmente já estavam presentes em civilizações pré-históricas.

Atualmente reunidas em torno da neurociência, as áreas relacionadas ao estudo do cérebro e da mente têm gerado grande expectativa em relação ao entendimento final da natureza do cérebro humano. Em sua busca de compreender a natureza da cognição humana, muito tem sido dito. Entretanto, ainda não conseguimos visualizar uma resposta única e simples para o enigma cérebro/mente. Talvez, nossas pequenas "vitórias" só tenham sido possíveis pelo trabalho persistente da neurociência: essa busca incessante pela compreensão de como o cérebro produz a mente.

 

Notas

1 Sobre o quarto ponto, referente à relação entre tecido cerebral e faculdades mentais, estudos atuais neurocientíficos têm apontado uma relação direta entre feixes cerebrais e determinadas funções cognitivas. Além disso, este princípio pode ser "adaptado" nos seguintes termos: faculdades mentais, quando em ação, exigem a ativação de determinado tecido cerebral.

 

Referências bibliográficas

Castro, F. S.; Landeira-Fernandez, J. (2010). Alma, Mente e Cérebro na Pré-História e nas Primeiras Civilizações Antigas. Psicologia: Reflexão e Crítica, 23(1), p. 37-48.
Castro, F. S., Landeira-Fernandez, J. (2011). Alma, corpo e a antiga civilização grega: as primeiras observações do funcionamento cerebral e das atividades mentais. Psicologia: Reflexão e Crítica, 24(4), p. 798-809.
Finger, S. (1994). Origins of neuroscience: a history of explorations into brain function. New York: Oxford Press.

 

 

10/12/2012