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ComCiência

On-line version ISSN 1519-7654

ComCiência  no.140 Campinas July 2012

 

REPORTAGEM

 

Entre fidelidade e traição, simetria e criatividade

 

 

Maria Teresa Manfredo

 

 

A antiga expressão italiana "traduttore, traditore" brinca com a ideia de que todo tradutor é um traidor. Mas, alguém consegue reter ou transportar os significados de um texto de forma plena através da tradução? Por vezes, ela é tida como uma atividade menor, refém e submissa ao texto de partida. Estudiosos da tradução apontam que não se pode traduzir num vácuo temporal e cultural, como se uma ideia formulada numa língua pudesse ser automaticamente transposta para outra, tal qual uma operação matemática de equivalências entre palavras mediadas por um dicionário.

O reverso da moeda se revela por uma noção oposta à de traição: a fidelidade. Ao nos depararmos com uma obra traduzida, ela pode parecer a palavra final, algo incontestável, como se as línguas tivessem um caráter estático. Johnwill Costa Faria, professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG) em Inhumas, lembra que até a primeira metade do século XX, a concepção de fidelidade na tradução persistia, pautada na crença de equivalências entre os dois textos e as duas culturas em contato.

Segundo Faria, na história ocidental, desde a Antiguidade, passando pela Idade Média e pelo Renascimento, a concepção central sobre o tradutor e a tradução escrita estava associada à imitação do texto de partida e ao respeito profundo ao seu autor. Isso proporcionou o surgimento de várias metáforas nos séculos seguintes, colocando o tradutor e sua tradução numa posição inferior em relação ao autor traduzido e ao texto de partida. Nas edições mais atuais, o nome do tradutor aparece na capa do livro, reconhecendo-se que o papel dele é fundamental na forma final da obra.

Há os que veem tradução exclusivamente como arte e os que a encaram como operação essencialmente linguística. O conceito de tradução literal está associado à ideia de tradução fiel, neutra, objetiva, e o de tradução livre, à ideia de tradução infiel, parcial, subjetiva. Marie-Hélène Catherine Torres, doutora em estudos de tradução e professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), afirma: "A tradução é também e, sobretudo, comunicação, interculturalidade, abertura ao outro e, principalmente, reconhecimento de uma cultura, de uma literatura pelas outras culturas e literaturas na cena internacional."

 

Relativizando a noção de exatidão

Entre 1950 e 1970, intelectuais franceses como Jacques Derrida, Michel Foucault e Roland Barthes influenciaram a discussão em que os conceitos de equivalência e fidelidade passam a ser redefinidos e o leitor e a recepção passam a ocupar papéis importantes no processo tradutório.

Passou-se a se sustentar que o texto possui uma pluralidade de sentidos, relativizando a noção de verdade e realidade, as quais são construídas subjetiva e socialmente. "É o contexto histórico-ideológico, que se materializa no discurso, e constitui os sujeitos que determinará sua interpretação do mundo", destaca Carmen Zink Bolognini, professora da Universidade Estadual de Campinas. Para ela, cada texto seria único e, ao mesmo tempo, o subproduto, a tradução de outro texto. Assim, nenhum texto seria original, porque a própria língua, na sua essência, já é uma tradução: primeiramente, do mundo não-verbal e, em segundo lugar, porque cada signo e cada frase é a tradução de outro signo e de outra frase.

Apesar de se ter o objetivo de resgatar os valores e as intenções do autor do texto, mediante a análise das suas condições de produção, o que se consegue é sempre uma interpretação a partir da leitura desse autor. Bolognini relata um exemplo nesse sentido: na década de 1970, a literatura latino-americana estava em alta na Europa. Nessa época, o autor brasileiro Jorge Amado foi traduzido para o alemão (tanto na Alemanha Oriental e quanto na Ocidental).

Em seu romance Gabriela, cravo e canela, Amado descreve a personagem central como sendo dengosa. Na então Alemanha Ocidental, o tradutor interpretou isso como um atributo positivo e achou uma palavra equivalente em alemão, aproximando "dengosa" à noção de "graciosa". Já na Alemanha Oriental o tradutor, enxergando Jorge Amado como um autor essencialmente comunista, encarou a obra do brasileiro como uma crítica social. O trecho em que Gabriela é descrita como dengosa foi relacionado a uma palavra com mesma raiz, "dengue", sendo traduzido, para a Alemanha comunista, como se Gabriela fosse portadora de uma doença tropical.

Bolognini destaca, com esse exemplo, que a solução dos problemas de tradução depende dos contextos sócio-históricos e ideológicos. Há diretrizes gerais, como entrar em contato com o próprio escritor, mas há momentos em que a constituição histórico-ideológica do tradutor fala mais alto e, nesse momento, as questões de tradução seguem outros percursos de sentido.

Assim, cada leitor ou tradutor tem reflexos de si mesmo no resultado do que ele se propõe a fazer. A história pessoal e social de cada um, querendo ou não, sempre vai marcar o resultado do trabalho desempenhado, porque "segundo Rosemary Arrojo, aquilo que consideramos verdadeiro será irremediavelmente determinado por todos os fatores que constituem nossa história pessoal, social e coletiva", lembra Faria, da UEG.

 

Comunicação imperfeita

Alguns filósofos, antropólogos, linguistas e poetas chegam até mesmo a negar teoricamente a possibilidade da tradução. Manuel Bandeira, por exemplo, embora tenha traduzido poesia durante toda a sua vida, não hesitou em declarar, mais de uma vez, ser ela, em essência, intraduzível.

De fato, não existe tradução perfeita, do mesmo modo que não existe comunicação perfeita ou absoluta. Também não existe equivalência total entre as línguas no nível da forma, mas existe equivalência no nível do conteúdo comunicativo. Cada língua é um código próprio, com suas próprias formas e regras, mas é, ao mesmo tempo, um sistema de comunicação, o que torna possível a tradução.

Um exemplo das possibilidades de se tratar diferenças culturais e tradução seria a narrativa "Shakespeare in the bush", escrita na década de 1960 pela antropóloga estadunidense Laura Bohannan. Nesse texto, Hamlet é traduzido e adaptado para uma tribo no oeste da África.

Baseada na concepção de que não se pode falar em verdades universais de modo absoluto, Bonhannan produziu perdas, acréscimos e compensações em seu texto. Por exemplo: uma vez que o grupo não acreditava na vida após a morte, Bohannan omitiu a aparição do fantasma do rei Hamlet. Visto que a noção de um erudito de formação acadêmica, como o príncipe Hamlet, era desconhecida para eles, ela optou pela figura de um misto de feiticeiro e pajé, detentor de vasto conhecimento na tribo. E no duelo do final da peça, entre Laertes e Hamlet, a tradutora substituiu as espadas por armas disponíveis na tribo em questão.

Assim, tentou-se evitar a ideia de tradução como algo preciso, exato, simétrico e, portanto, que não leva em conta as inúmeras variáveis e a complexidade que compõem o processo tradutório. Conforme lembra Faria, da UEG, a língua não é um veículo perfeito, que externa os pensamentos com precisão. "Muitas vezes traímos a nós mesmos quando tentamos, por meio dela, manifestar o que se passa em nossa mente. O tradutor não lida com uma fonte, nem com uma origem fixa, mas constrói uma interpretação que, por sua vez, também vai ser movimento e desdobrar-se em outras interpretações", afirma.

 

O ofício da subjetividade

De acordo com Faria, o processo do trabalho de tradução está sempre relacionado com a subjetividade e as concepções de mundo e idiossincrasias de quem traduz. Diferenças culturais, referências históricas, nacionais ou bibliográficas podem ou não ser esclarecidas por notas de rodapé, prefácios etc., dependendo das convicções e intenções do tradutor e de seus financiadores.

No Brasil há dois exemplos notórios referentes a traduções do complexo romance Ulysses, de James Joyce: Antônio Houaiss, que traduziu essa obra para o português em 1966, não se preocupou em deixar notas explicativas. Jonhwill Faria explica que pode-se depreender disso a suposição, por parte do tradutor, de que o público-alvo escolhido deveria ter uma formação educacional mais sólida, erudita, para compreender bem a obra. A tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro, de 2005, por sua vez, contém uma série extensa de notas explicativas, possibilitando ao leitor uma compreensão da obra, sem maiores pré-requisitos eruditos.

Perguntas como "O que estou traduzindo? Para quê? Para quem?" são importantes para que se estabeleça um norte, e a tão discutida fidelidade será, então, redefinida: o tradutor será fiel a si mesmo e às suas próprias concepções, juízos e crenças, explica o pesquisador da UEG.

Essa reescritura sempre será concebida segundo diversas concepções de mundo refletidas tanto pelo tradutor como por seus agentes (as editoras, os revisores ou quem remunera o tradutor), como também pela censura, pela ideologia e pelo poder em suas variadas formas, além da recepção final, o público leitor. Esse seria um ponto importante, alerta Faria: há de se considerar também o contexto histórico e sociocultural onde o produto será veiculado/comercializado. Traduções podem ser censuradas ou proibidas, se oferecerem algum risco à ideologia dominante, seja ela política, religiosa ou de ordem cultural. Um exemplo disso seria a versão brasileira do livro Tom Sawyer, de Mark Twain, que, no período da ditadura Vargas, foi julgada tão perigosa e subversiva que a edição brasileira foi destruída e sua tradutora, Cecília Meireles, presa.

Bolognini cita Eni Orlandi, que afirma que "a língua não é transparente", e acrescenta: "Não há uma relação intrínseca entre a língua e o mundo. Então, não se pode falar em traição e fidelidade." Todo processo de leitura é um processo de interpretação, o tradutor é um intérprete privilegiado e um intérprete compromissado. Ele tem recursos para tentar dialogar com o autor da obra, fazer uma pesquisa histórica das condições de produção da obra, uma pesquisa histórica do autor, para ver quais são as interpretações possíveis. E não dá para qualificar isso como ruim, como se alguma coisa tivesse se perdido. Nunca se tem só perdas, tem-se também ganhos, conclui a pesquisadora.

 

Para saber mais

Souza, José Pinheiro de. "Teorias da tradução: uma visão integrada". In: Revista de Letras. Universidade Federal do Ceará, N. 20, v1/2, jan./dez, 1998. Disponível em: http://www.revistadeletras.ufc.br/rl20Art09.pdf

 

 

10/07/2012