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ComCiência
On-line version ISSN 1519-7654
ComCiência no.132 Campinas 2011
ARTIGO
Uma nova agenda para a educação básica brasileira
Maria Helena Guimarães
É muito recente a influência de evidências de pesquisas na formulação e implementação das políticas educacionais do Brasil, em particular na educação básica. A partir de 1995, com a implantação do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) em larga escala e a organização do Sistema Nacional de Estatísticas Educacionais, sob a liderança do governo federal, as pesquisas educacionais passam a ter um papel de destaque nas diferentes mídias, na mobilização da sociedade civil organizada e no processo decisório de políticas governamentais.
A ampla divulgação dos resultados do Saeb, desde meados dos anos 1990, estimulou o surgimento de uma cultura de avaliação nos estados e municípios que são responsáveis diretos pela oferta de educação básica (da educação infantil ao ensino médio). Contudo, havia grande dificuldade na compreensão e uso dos resultados das avaliações externas pelas escolas. Os resultados do Saeb traçavam um bom diagnóstico da situação educacional nos estados, mas não chegavam às escolas. Não era possível estabelecer um sistema efetivo de accountability e a maioria das escolas não se identificava com os resultados oficiais.
Com o objetivo de aprimorar o sistema, o governo federal criou a Prova Brasil em 2005, que adota a mesma métrica e metodologia do Saeb para avaliar o universo de escolas públicas com mais de 100 estudantes. Em 2009, foram avaliadas mais de 60 mil escolas e 6 milhões de alunos. Foi criado também o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), um indicador síntese que considera o fluxo escolar e o resultado das escolas na Prova Brasil. O Ideb estabelece metas anuais de desempenho para cada escola, município e estado e permite acompanhar a evolução das escolas ao longo do tempo. Espera-se que até 2021, as escolas atinjam níveis de desempenho semelhantes à média obtida pelos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa). Os resultados são amplamente divulgados em rankings nacionais e locais. Hoje sabemos o nível de desempenho de todas as escolas públicas brasileiras, conhecemos a proficiência dos alunos em matemática e língua portuguesa medida pela escala do Saeb, em todo o país. Permanece, contudo, o mesmo problema: a maioria das escolas tem dificuldade em usar os resultados das avaliações, não compreendem as escalas de proficiência, não sabem como fazer para melhorar a qualidade da aprendizagem. O lado positivo foi a maior conscientização dos gestores e diretores a respeito do desempenho de cada escola.
Em complemento aos sistemas de avaliação, surge um crescente interesse em investigar os fatores associados ao baixo desempenho dos alunos. Vários estudos e pesquisas quantitativos e qualitativos1 têm identificado um conjunto de fatores que afetam o desempenho de nossas escolas, tais como: pequena duração da jornada escolar, em geral de quatro horas por dia; dispersão no uso do tempo em sala de aula; efeitos das altas taxas de repetência sobre a aprendizagem; impactos do ensino médio noturno; impacto positivo da educação infantil no desenvolvimento escolar; formação inicial inadequada dos professores; falta de professores em várias disciplinas, principalmente matemática e ciências; baixa atratividade da carreira dos professores e diretores; absenteísmo erotatividade de professores; indisciplina dos alunos; baixa participação dos pais; falta de compromisso com o dever de casa; além de temas clássicos ligados a fatores extra-escolares, como escolaridade dos pais, desigualdade social, renda e acesso a bens culturais. O país dispõe de uma série de evidências para subsidiar políticas públicas educacionais. Entretanto, os atores com poder decisório raramente se apoiam em evidências empíricas no processo de tomada de decisão e os resultados das avaliações melhoram muito lentamente no ensino fundamental e continuam estagnados no ensino médio.
Mudanças na educação brasileira: panorama geral
Nos últimos 20 anos, a educação brasileira passou por profundas mudanças. Para se ter uma ideia da magnitude delas, é importante ressaltar que no início dos anos 1990 apenas 90% das crianças de sete a 14 anos estavam matriculadas no ensino fundamental; 22% dos jovens de 15 a 17 anos cursavam o ensino médio; apenas 1,6 milhões de alunos frequentavam o ensino superior. Os alunos levavam em média 12 anos para concluir a oitava série; a taxa média de repetência no ensino fundamental era superior a 35%. Apenas 45% das crianças que ingressavam no ensino fundamental obrigatório concluíam a oitava série.
Esse quadro mudou substancialmente. Hoje 97% das crianças de 6 a 14 anos estão na escola; 50% dos jovens de 15 a 17 anos estão no ensino médio; cerca de seis milhões de alunos estão no ensino superior. A repetência continua elevada, mas caiu para 17%; a taxa de conclusão da oitava série é superior a 70%; e 82% das crianças de 4 a 5 anos estão na pré-escola. Há vagas para todos, mas temos ainda 3,7 milhões de crianças e jovens entre 4 e 17 anos fora da escola (PNAD, 2009).
Essas mudanças são fruto de uma série de reformas introduzidas a partir de 1995 e que tiveram razoável continuidade nos últimos anos. Na verdade, a atuação do governo federal na área de educação, desde meados dos anos de 1990, produziu uma ruptura com as práticas anteriores. O Ministério de Educação passou a ter um papel mais efetivo na formulação e coordenação de várias ações estratégicas para a gestão dos sistemas de ensino estaduais e municipais, altamente descentralizados. Na educação básica, o governo implantou um novo mecanismo de financiamento, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), ampliado posteriormente com o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), que estabeleceu critérios mais equânimes de distribuição dos recursos vinculados à educação. Definiu diretrizes curriculares nacionais para orientar os currículos estaduais e municipais, estabeleceu programas de avaliação dos livros didáticos; criou mecanismos de assistência técnica aos estados e municípios mais pobres, entre outras iniciativas.
O mais importante na ação político-educacional do governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), quando Paulo Renato de Sousa era o Ministro da Educação, foi colocar a educação básica na agenda das reformas prioritárias. Para medir a efetividade da ação administrativa e de seus efeitos educacionais, foram implantados sistemas de avaliação em todos os níveis de ensino, como já mencionado. A relativa continuidade das políticas do governo FHC durante o governo Lula, em particular na área de avaliação e financiamento da educação, permitiu consolidar as iniciativas adotadas nos últimos anos.
Hoje o país tem condições muito favoráveis a dar um salto de qualidade, pois todas as crianças estão na escola, há vagas para todos os jovens e a melhoria da qualidade do ensino está no centro do debate sobre os novos desafios. Grande número de governadores e prefeitos está empenhado em melhorar a qualidade da educação que ainda apresenta resultados insuficientes. Embora os indicadores de desempenho, como o Ideb, mostrem tendência de melhoria nos anos iniciais, permanece a tendência à estagnação dos resultados tanto nos anos finais como no ensino médio. Pesquisas indicam que a maior causa de abandono da escola, a partir dos 15 anos, é a falta de interesse dos alunos pelo currículo desconectado do mundo real, sala de aula desinteressante, ensino descontextualizado, incapaz de estimular a curiosidade das crianças e jovens e levá-los a gostar de aprender e compreender o mundo que os cerca.
O grande tema do debate atual é a reforma do ensino médio. Está em discussão a mudança da arquitetura do sistema e do currículo. O ensino médio brasileiro segue um modelo único, sobrecarregado de disciplinas obrigatórias acadêmicas, mesmo para aqueles que optam por formação profissional de nível técnico. Está em debate a introdução de um currículo obrigatório nos primeiros anos, a flexibilização do sistema com a introdução de disciplinas eletivas, a maior articulação e integração do ensino médio à educação profissional. Nesse debate, faltam convergências e sobram divergências. Ninguém sabe muito bem o que fazer com o ensino médio e as propostas de mudança são ainda tímidas, como o projeto de Ensino Médio Inovador em tramitação no Congresso Nacional.
De outro lado, o ensino superior foi o nível de ensino que mais cresceu nos últimos dez anos. Essa expansão deveu-se, sobretudo, ao crescimento da oferta no setor privado, que hoje responde por 75% do total de matrículas. Mais de 70% do ensino superior é noturno, formado por alunos que trabalham e pagam para estudar. As melhores universidades são públicas, gratuitas e recebem grande parte dos alunos que estudaram nas melhores escolas privadas de ensino médio. Não há duvida de que a implantação do Programa Universidade para Todos (Prouni), no governo Lula, contribuiu para tornar o acesso ao ensino superior mais equânime. O Prouni concede bolsas de estudo integrais e parciais em cursos de graduação de universidades e faculdades particulares para alunos de baixa renda ou portadores de necessidades especiais. Atualmente, quase um milhão de estudantes são beneficiados pelo programa.
Mesmo assim, a matrícula no ensino superior no Brasil é substancialmente menor do que em países desenvolvidos ou mesmo aqueles com grau de desenvolvimento semelhante. No caso brasileiro, o ponto de estrangulamento do acesso ocorre antes do vestibular. Os problemas de baixa qualidade no final do ensino fundamental, somados às elevadas taxas de reprovação e de abandono no ensino médio, provocaram persistente estagnação do seu número de concluintes. Desde 2005, o número de concluintes do ensino médio estacionou em aproximadamente 1,8 milhão. O grande problema é o baixo desempenho dos alunos ao final da educação básica. Portanto, muitos dos problemas do nosso ensino superior só se resolverão com a melhoria da educação básica. Essa é a principal causa da dificuldade de expansão da matrícula daqui em diante.
O sistema privado está chegando ao limite do seu crescimento. Mas não é por causa de sua incapacidade de oferecer mais vagas. O que faltam hoje são alunos com ensino médio completo e condições de pagar as mensalidades. A matrícula praticamente cobriu a categoria daqueles que podem pagar. Observam-se também altas taxas de abandono na graduação, que atingem mais de 40% no sistema público e 50% no sistema privado. O número de concluintes na graduação não tem aumentado na mesma proporção que a sua expansão.
Como o estoque de alunos capazes de pagar as mensalidades está se exaurindo, o Estado precisará expandir o crédito educativo aos alunos do setor privado e ampliar programas do tipo Prouni. Com a consolidação de programas desse tipo, os filtros de qualidade devem ser expandidos. Não tem sentido dar bolsas ou auxílios para que os alunos estudem em faculdades de qualidade inferior.
Uma nova agenda para a educação brasileira
Qualquer visão de futuro da educação brasileira deve ter como prioridade absoluta a melhoria da qualidade da educação básica, a expansão da educação técnica e tecnológica, a expansão e internacionalização do ensino superior, sobretudo em áreas estratégicas para o desenvolvimento sustentado.
Mas de tudo, o maior desafio é melhorar a qualidade da educação para todas as crianças e jovens de 4 a 17 anos. A questão central, no Brasil de hoje, é a baixíssima qualidade do ensino. Segundo as avaliações nacionais, ao final do quinto ano, apenas 35% das crianças estão plenamente alfabetizadas em leitura, escrita e conceitos básicos de matemática. Somente 26% dos alunos da oitava série têm nível adequado de desempenho em língua portuguesa e, ao final do ensino médio, apenas 10% dos alunos dominam as habilidades e competências esperadas em matemática. Nas avaliações internacionais do Pisa, o Brasil situa-se entre os dez piores países, com desempenho inferior ao México e ao Chile. Em suma, nossos alunos aprendem pouco e será impossível assegurar o pleno desenvolvimento econômico e social do país sem um maciço investimento na educação básica.
É verdade que a baixa escolaridade dos pais e a desigualdade social são alguns dos fatores que explicam o baixo desempenho dos estudantes brasileiros. Mas persistem aspectos internos à escola que afetam negativamente a aprendizagem. Nossos alunos permanecem pouco tempo na escola, em média quatro horas por dia, tempo insuficiente para cumprir o currículo previsto. Cerca de 40% dos alunos do ensino médio estudam no período noturno, pois não há vagas no diurno. Nossos professores não estão preparados para interpretar os resultados das avaliações e introduzir as mudanças necessárias na sala de aula. As carreiras dos professores são pouco atraentes e os melhores alunos não se sentem motivados a segui-la.
Além do baixo investimento em educação básica,em média US$ 1.250 por aluno/ano, o principal problema da baixa qualidade da educação brasileira parece ser a falta de professores motivados, bem preparados e bem remunerados para dar o salto de qualidade necessário. A boa notícia é o crescimento do investimento em educação, que, em 2010, foi equivalente a 5% do PIB, e algumas iniciativas estaduais e municipais de valorização do mérito com incentivos aos professores.
Uma visão de futuro implica necessariamente propor mudanças radicais na formação e carreira dos professores e ampliar o tempo de permanência dos alunos na escola. Pesquisas mostram que a qualidade do professor, formação, avaliação, atratividade e incentivos à carreira são fatores que fazem diferença na aprendizagem. Alguns estados como São Paulo, Minas Gerais, Ceará e o município do Rio de Janeiro iniciaram políticas de valorização do mérito que pagam bônus de acordo com o desempenho dos professores e das escolas que atingirem as metas anuais de qualidade. No entanto, as resistências corporativas dos sindicatos provocam greves constantes e, muitas vezes, fragilizam o poder executivo. Outra dificuldade é a resistência a mudanças nos cursos de formação inicial de professores, em geral mais teóricos e distantes da prática didática na sala de aula.
A divulgação do Ideb e das metas de qualidade para todas as escolas públicas brasileiras começa a ter impacto nas decisões locais de políticas educativas. Alguns estados e municípios passaram a priorizar ações com foco na melhoria da aprendizagem. São mudanças importantes de política pública de longo prazo. Nota-se maior empenho dos estados e municípios em investir na sala de aula, ampliação da jornada escolar, formação em serviço de professores, materiais didáticos e assessoria pedagógica às escolas. Há também grande ênfase na expansão com qualidade da educação infantil. São sinais alvissareiros de uma nova agenda de políticas educacionais.
Os próximos passos da nova agenda são claros. A renovação da carreira e da formação dos professores que valorize o mérito; a qualidade da educação infantil, etapa chave do desenvolvimento emocional e cognitivo das crianças; a reformulação do ensino médio articulado à qualificação profissional; expansão de cursos técnicos, tecnológicos e universidades que preparem os jovens para o enfrentamento dos desafios de nosso século. Esses, como todos sabem, exigem novas habilidades da força de trabalho, domínio de leitura e da escrita, conceitos básicos de matemática, conhecimento de língua estrangeira, capacidade de manejar as novas tecnologias de informação, educação científica que ensine os alunos a pensar e ter domínio do método científico.
Grandes passos foram dados nos últimos 20 anos para melhorar a educação no Brasil. A próxima agenda de políticas educacionais é mais difícil de concretizar, sobretudo porque é menos visível, mais demorada e não propicia resultados imediatos, que facilitem a obtenção de votos. O grande desafio é conseguir acelerar o passo, aumentar o ritmo das mudanças.
Hoje, o fator mais positivo para pressionar mudanças na educação brasileira é a mobilização da sociedade civil organizada e dos meios de comunicação em favor da educação de qualidade. Movimentos de ONGs e associações desenvolvem pesquisas e projetos de melhoria da qualidade nas escolas públicas. Os meios de comunicação, grande imprensa e diferentes mídias, destacam a educação como um dos grandes temas de campanhas nacionais. Essa é a grande novidade da educação brasileira.
Na área governamental, além do protagonismo do governo federal, há movimentos importantes. O Conselho dos Secretários Estaduais de Educação (Consed) e dos Secretários Municipais de Educação (Undime) ganha espaço na articulação de projetos de lei importantes. Governadores e prefeitos começam a implantar reformas corajosas e muitas vezes antipáticas. Várias associações científicas, mais ligadas às demandas do ensino superior, passam a pressionar por mais qualidade na educação básica. O Legislativo organiza debates sobre as reformas, mas continua mais suscetível à agenda dos sindicatos e corporações. O poder Judiciário, por sua vez, passa a destacar a defesa do direito à educação.
Os pais continuam sendo os grandes ausentes do processo. Segundo pesquisas de opinião (Ibope e Fundação Victor Civita), os pais continuam satisfeitos com a educação de seus filhos. Em parte, porque há vagas para todos, merenda escolar, livros, e seus filhos já conseguem ter mais escolaridade do que as gerações anteriores. O grande desafio é convencer os pais e sindicatos de professores sobre a urgência da nova agenda de reformas educacionais, que poderá avançar dependendo do rumo das diretrizes do próximo Plano Nacional de Educação.
Não há nada de muito novo, nem de ousado na nova agenda. Há sim uma firme convicção de que o mais difícil é fazer o simples, o básico, ou seja, uma educação básica de boa qualidade com acesso de toda a população em idade escolar, condição necessária para tornar o país mais justo e decente, como uma verdadeira democracia requer. Uma educação oferecida por professores mais bem pagos, com consciência de que a ascensão na carreira está ligada ao mérito e com a convicção de que a vida contemporânea requer praticidade, mas sem a perda dos valores de uma sociedade plural que se baseia na solidariedade entre as pessoas.
Referências
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Maria Helena Guimarães Castro é professora aposentada da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), secretária-executiva do Ministério da Educação e secretária estadual de Educação de São Paulo.
1 Ver: Meneses Filho, 2009; Soares, 2010; Klein, 2008 e 2010; Fernandes, 2007 e 2009; Neri, 2009; Bernadette Gatti, 2009. Ver também os relatórios Pisa/OECD 2000, 2003, 2006 e 2009.