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ComCiência
On-line version ISSN 1519-7654
ComCiência no.126 Campinas Mar. 2011
ARTIGO
Os transtornos mentais e a justiça
Claudio Cohen
Chama-nos a atenção como algumas ciências tais como a filosofia, a sociologia, a psicanálise, a medicina, a biologia etc, conseguem explicar algumas atitudes dos seres humanos e nos trazem enormes contribuições para o conhecimento do comportamento humano. Porém, quando são feitas as leis quase nenhuma dessas áreas do conhecimento são consultadas, o que poderia explicar o motivo pelo qual os legisladores muitas vezes aprovam leis que estão mais vinculadas aos mitos, ao folclore ou aos tabus sociais e que, às vezes, não são compatíveis com a realidade da observação científica.
Como exemplo desse fato no Código Penal brasileiro de 1940, podíamos observar que a medida de segurança era aplicável tanto aos doentes mentais que infringiam a lei quanto aos demais criminosos que tivessem cometido algum delito grave e que pudessem ser considerados socialmente perigosos. Portanto, todos os infratores do Código Penal poderiam ser considerados perigosos e em todos os casos poderia ser aplicada a medida de segurança. Medida esta que serve para a prevenção e assistência social ao "estado perigoso" daqueles indivíduos que cometeram algum ilícito penal, por exemplo, além dos doentes mentais, os reincidentes em crime doloso ou os que houverem cometido crime filiados a associação ou bando.
O que devemos entender é que a questão da periculosidade individual surge no momento em que se quiser avaliar a periculosidade social, observando-se, por exemplo, quem é mais perigoso: um sequestrador, um traficante de drogas ou armas, um político corrupto, um pai incestuoso ou um cientísta irresponsável. O que se torna mais dificil nessa questão, além de determinarmos quem seja mais perigoso, é a quem competirá decidir se o indivíduo é perigoso ou não: a um criminalista (tipo de crime), a um psiquiatra (varia segundo o transtorno mental), a um sociólogo (qual é o perigo que o indivíduo causou à sociedade), ou a um juiz (magistrado que tem por função ministrar a justiça).
Para tornar mais complexa a questão da medida de segurança no nosso país, em 1984, a parte geral do nosso Código Penal foi revista e se reservou essa qualificação da periculosidade social e da aplicação da medida de segurança, de forma muito preconceituosa, apenas para os doentes mentais que venham a infringir a lei. Ou seja, no Brasil, apenas aos doentes mentais que infringirem a lei e que forem considerados inimputáveis será aplicada a medida de segurança. Isso vincula e estigmatiza a periculosidade social à doença mental.
O que ocorreu com essa mudança do nosso Código Penal é que muitas pessoas leigas fizeram uma associação errada, vinculando a doença mental ao criminoso perigoso. Já os profissionais sabem que nem o código internacional de doenças (CID-10) e nem o DSM-IV classificam a periculosidade social do indivíduo como algo vinculado a um transtorno mental. Ter comportamentos antissociais em algum momento não indica necessariamente um transtorno de personalidade antissocial.
A periculosidade social deve ser um assunto de estudo tanto da psicopatologia forense, da criminologia, das ciências sociais, da antropologia etc, ou seja, na prática, deveria haver uma articulação entre a saúde mental e a justiça.
Entendo que não compete apenas aos psiquiatras avaliarem a periculosidade humana, mas que ela deva ser analisada por equipes multiprofissionais, que deverão observar a periculosidade pós-delitiva do indivíduo. Porém, a questão se torna ainda mais complexa se quisermos avaliar a periculosidade pré-delitiva, pois se isso fosse fácil, nem o presidente Kennedy nem Gandhi teriam morrido, nem o Papa João Paulo II teria sofrido um atentado, pois imaginamos que esses indivíduos tiveram uma proteção especial bastante reforçada.
As pessoas podem querer atribuir a esses assassinos algum transtorno mental, em decorrência dessa falsa associação entre a doença mental e a periculosidade social. Mais do que isso, a periculosidade social não foi detectada nem pelos familiares dessas pessoas, nem pelos seus professores ou colegas de turma, nem pelos profissionais que os atenderam, nem pelos seguranças, ou se foi detectada, nada foi feito para impedir aqueles atos criminosos.
Geralmente se tem mais facilidade em analisar e comentar as condutas depois que elas ocorreram. O difícil, do ponto de vista social, é preveni-las. Frente ao trágico e inexplicável, a sociedade quer encontrar rapidamente uma razão lógica para explicar o fato. Porém, não será associando a doença mental ou a toxicofilia a esses fatos que iremos explicar o ato antissocial, pois ele é muito complexo. Isso nos remete à questão do porquê o ser humano pode ser tão destrutivo (fazer guerras, estuprar) e ao mesmo tempo tão construtivo (criar instituições de saúde, democracia, arte).
O que estou questionando é como a sociedade pode avaliar a periculosidade pré-delitiva, ou seja, a de prever a "capacidade do ser humano de transgredir as leis", pois penso em como prevenir a sociedade do infrator, como poderia ocorrer no caso dos menores internados na Fundação Casa; ou na cessação da periculosidade pós-delitiva para as pessoas que estão sob custódia do Estado e possam entrar em programas socioeducativos para sua reinserção social. Pois a medida de segurança, enquanto medida preventiva, tem lugar após o ilícito penal, porém não está vinculada a ele.
Considero que essa seja uma questão que tanto profissionais da área da saúde quanto os da justiça deverão avaliar em conjunto. Entendo que a falta de explicações coerentes para esses fatos nos leve a querer encontrar algum diagnóstico para esse ato aparentemente irracional, pois assim será mais fácil rotulá-lo como transtorno mental, mas somente poderemos entender melhor esses atos quando conhecermos mais a respeito da personalidade dessas pessoas.
Devemos entender a personalidade como algo que identifica o próprio indivíduo, portanto intrínseco a ele, assim como o são a sua impressão digital, a cor da pele ou o polimorfismo do DNA. Portanto, não podemos falar em personalidade normal ou patológica enquanto uma média estatística. O que deveríamos tentar categorizar são as características comuns que as pessoas possam ter, classificando-as em diferentes transtornos de personalidade. Desse modo, deveríamos classificar as pessoas que infringem a lei como pessoas com características na sua personalidade que não lhes permitam a sua adaptação social, e não continuar reduzindo a todos os infratores da lei apenas sob o rótulo de personalidades psicopáticas e antissociais. Aliás, a nossa Lei de Execução Penal, em seu art. 5, já prevê a necessidade de se avaliar a personalidade do condenado para individualizar a execução da pena. Na prática, essa determinação legal ainda não está sendo cumprida.
Acredito que o estudo dessas características humanas nos permitirá, no futuro, prevenir certas condutas antissociais e identificar a periculosidade pré-delitiva. Esse avanço ideológico nos permitiria entrar em um período de terapêutica criminal, que nos possibilitaria tratar os transtornos da personalidade.
Atualmente, apenas juntamos e custodiamos os autores desses atos em enormes abrigos. Porém, somente quando pudermos categorizá-los é que poderemos desenvolver a sua terapêutica. Por enquanto, só podemos reprimir os delitos combinando penas de reclusão com a finalidade de preservar a sociedade.
Nós podemos criar as nossas próprias leis ou mudá-las, o que nos diferencia das demais espécies. Isso poderá variar segundo a evolução cultural e social, porém ainda somos seres biológicos, vinculados às leis naturais. É a partir dessa ambivalência de leis que requerem um conhecimento de seus códigos - por exemplo, dos princípios e doutrinas das leis como o da inimputabilidade penal ou do sistema vicariante, e das leis naturais observadas através do nosso espírito empírico-indutivo baseado em premissas particulares, na busca de leis gerais frente aos transtornos do comportamento - que poderemos ajudar a entender e tratar os indivíduos.
A dificuldade que temos em implantar esses princípios pôde ser observada na prática quando foi criado o Centro de Observação e Criminologia, proposto pelo novo Código Penal, que foi um avanço, mas que, na prática, não vingou, pois ele tinha como objetivo estudar e avaliar o indivíduo que infringiu a lei desde diferentes ângulos, tendo-se, assim, uma percepção mais humana do infrator, que não pode mais ser considerado como animal, como uma aberração da espécie, como muitas vezes a mídia o define, mas sim entendendo que muitas vezes esses indivíduos não entendem a necessidade de se respeitar e de acatar as leis sociais.
Se pudermos observar o transgressor da lei como um ser humano, tanto do ponto de vista biológico quanto psicossocial, seguramente teremos, no futuro, uma terapêutica criminal, pois, para conhecer profundamente o ser humano, devemos conhecer sua biologia, sua biografia e a sociedade à qual ele pertence.
Porém, sem sombra de dúvida, será a justiça quem deverá adequar essa realidade social, elaborando leis que possam lidar adequadamente com essas questões, não se atendo mais apenas às leis naturais como o único princípio legal a ser respeitado, mas, em alguns momentos, até contestá-la. Este fato ocorre frente à legalização do aborto ou à possibilidade (ou não) da legalização da eutanásia, ou mais, à normatização da criação de espécies transgênicas ou da clonagem de seres humanos.
Certamente, não se está pregando a inutilidade do estudo da possível relação entre a doença mental e o crime. O que estamos propondo é que se possam aprofundar esses estudos, para que possamos conhecer melhor a relação entre agressividade-crime, ou doença mental-crime, ou ainda agressividade sem crime.
O que posso observar que esteja ocorrendo na nossa realidade é justamente o contrário, ou seja, as nossas cadeias estão cheias de doentes mentais, sem obter um diagnóstico preconizado pelo CID-10 ou pelo DSM-IV e, pior ainda, sem conseguir tratamento adequado, pois os doentes mentais infratores da lei preferem ser criminalizados, pois saberão antecipadamente a quantos anos de pena serão imputados, a serem considerados inimputáveis e ficarem vinculados à medida de segurança, pois enquanto forem considerados socialmente perigosos, serão mantidos sob custódia do Estado.
Pelo nosso Código Penal, apenas os infratores considerados inimputáveis são perigosos. Os traficantes, os chefes de quadrilhas, os sequestradores, os estupradores, os serial killers etc, não o são, pois somente os inimputáveis estão sujeitos à medida de segurança. Este fato deveria ser repensado pelos nossos legisladores.
Cláudio Cohen é professor da Faculdade de Medicina da USP, membro da Câmara Técnica de Saúde Mental do Cremesp e presidente da Comissão de Bioética do Hospital das Clínicas da FMUSP. E-mail: ccohen@usp.br