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ComCiência
versión On-line ISSN 1519-7654
ComCiência n.120 Campinas 2010
REPORTAGEM
Homem-máquina e o progresso da ciência
Daniela Ingui
De membros biomecânicos a chips neurais, as polêmicas são muitas acerca dos avanços tecnológicos, tais como a prótese Flex Foot Cheetah do corredor sul-africano Oscar Pistorius ou os maiôs LCZ-Racer dos nadadores recordistas em 2008. Mas não é preciso ir tão longe: o que seria de nós sem o celular, o computador e a câmera digital? A fusão entre homem e máquina, que vem se intensificando com o desenvolvimento da eletrônica, biônica, nanotecnologia e engenharia genética, já não é mais tema restrito à ficção científica, mas uma realidade que ameaça mudar a maneira como percebemos o mundo.
Recentemente, o especialista em nanotecnologia e pesquisador da Microsoft, Ramez Naam, declarou ao jornal O Estado de S. Paulo que "as novas tecnologias preservarão a juventude e a saúde, aumentarão a capacidade de aprender e nos darão o poder de decidir em que vamos nos transformar. A ciência dará a cada um o poder de decidir a própria evolução" (Eu, Robô, 02/05/2010, Caderno Link). Pois que evolução seria essa? É possível delimitar alguns aspectos que restringem a evolução do homem propiciada pela tecnologia ou iremos nos tornar, inevitavelmente, uma máquina em todos os sentidos? Afinal, "somos a ponta da evolução do primata ou somos a ponta de um primata em evolução?", questiona Márcio Barreto, professor da Faculdade de Ciências Aplicadas da Universidade Estadual de Campinas, campus de Limeira.
Da ciência moderna à contemporânea
Voltando um pouco na história, podemos dizer que o apagamento da fronteira entre homem e máquina data no final da Idade Média, quando as transformações no mundo do trabalho serviram de base para uma revolução também no âmbito da ciência. De um lado, a expansão do comércio levou à popularização da matemática entre os comerciantes e banqueiros, que passaram a utilizar os números para representar seus lucros e prejuízos. De outro, a difusão de máquinas, como os moinhos, fez surgir um novo tipo de profissional, o técnico-artesão, cuja metodologia de trabalho era baseada na experimentação. Esse novo racionalismo que emergia na sociedade levou muitos intelectuais a pensarem num novo método de produção do conhecimento.
"Alguns nomes importantes do Renascimento, como Willian Gilbert, Galileu e Francis Bacon, contribuíram para a incorporação da experimentação e da linguagem matemática à prática científica, inaugurando o que chamamos de ciência moderna", explica Barreto. Nesse novo método, a racionalidade deixa de ser sustentada apenas pelo raciocínio lógico e abstrato, como faziam os pensadores e filósofos da Antiguidade, sendo ressignificada com a experimentação. As inovações tecnológicas da época também influenciaram a ciência moderna, que passa a compreender a natureza como se ela funcionasse com a regularidade de uma máquina, o que permitiria que seus fenômenos pudessem ser medidos e previstos por meio de equações matemáticas. Tal forma de pensar o mundo ficou conhecida como mecanicismo e teve seu auge nos séculos XVIII e XIX.
Não só aquilo que nos cerca, mas o próprio homem passou também a ser comparado a uma máquina. Analogias como "o coração é uma bomba" ou "o sistema circulatório é um sistema fechado de dutos", por exemplo, são resquícios do pensamento mecanicista no estudo do corpo humano. No livro o Discurso do método, de 1637, essa ideia do universo-máquina fica bem clara quando Descartes afirma que "a indústria dos homens pode produzir, sem empregar nisso senão pouquíssimas peças, em comparação à grande multidão de ossos, músculos, nervos, artérias, veias e todas as outras partes existentes no corpo de cada animal, considerará esse corpo como uma máquina que, tendo sido feita pelas mãos de Deus, é incomparavelmente mais bem ordenada e contém movimentos mais admiráveis do que qualquer das que possam ser inventadas pelos homens".
Levando essa mecanização ao extremo, O homem-máquina (1747), do filósofo La Mettrie, subverte a autonomia da mente ao colocar o homem como um artefato mecânico. Essa possibilidade de ruptura entre corpo e mente é o que constitui o cerne do questionamento sobre os efeitos dos avanços tecnológicos no homem. O jornalista e filósofo Adauto Novaes, em um dos capítulos do livro O homem-máquina: a ciência manipula o corpo, publicado em 2003, afirma que "Tudo caminha principalmente o corpo para o artifício. Ou melhor, observamos o início de uma substituição do ser e de suas experiências da vida isto é, da antiga relação, em nós, da natureza e do espírito (espírito entendido como inteligência, potência de transformação) por mecanismos implantados em nós. Poderíamos dizer, sem risco de erro, que um corpo tecnicizado guarda ainda 'qualidades ocultas' do corpo natural, enigmas que nos levam a pensar, permanentemente, o jamais pensado ainda?". Em outras palavras, indaga-se se as tecnologias chegarão ao ponto de anular a essência humana, substituindo a criatividade e espontaneidade.
Para o filósofo Denis Rosenfield, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), não faz sentido pensar em essência humana num mundo que a relação entre homem e tecnologia está em constante mutação. "O impensável está se tornando pensável. Quem diria que, há alguns anos, a reprodução in vitro seria possível?
O atual debate sobre o uso da tecnologia no futebol foi reacendido devido aos erros de arbitragem nessa Copa do Mundo. Diante da disponibilidade de tecnologias capazes de ampliar a percepção humana, o ditado popular "errar é humano" deixa de ser admissível. Mesmo assim a Federação Internacional de Futebol (Fifa) ainda é refratária ao assunto. Apenas o temor ao modo como essas tecnologias podem influenciar nossa capacidade de decisão explica tamanha resistência.
A lentidão para a incorporação de uma nova tecnologia, como no caso da Fifa, é, muitas vezes, apenas um modo de reduzir os erros em sua utilização. A máquina só não chegará a substituir o homem porque é preciso que alguém humano faça a leitura dos dados", esclarece Rosenfield. A interpretação dos fenômenos naturais implica, então, em certos aspectos que não são inerentes ao universo das máquinas, mas próprios do pensamento humano e do mundo natural ao seu redor, o que restringe o tipo de transformação que podemos sofrer pelas tecnologias.
A subjetividade e a imprevisibilidade são alguns desses aspectos que não fazem parte da lógica de funcionamento das máquinas. Sua percepção só emergiu com a ruptura do paradigma mecanicista por volta de 1930, quando surgiram certas acepções na física e na matemática que colocaram em xeque os postulados da prática científica calcados na previsibilidade, objetividade e neutralidade (O discurso da ciência na contemporaneidade: "nada existe a menos que observemos", Márcia Martins, 2009). Uma dessas acepções foi o Princípio da Incerteza, de Heisenberg (1927), que afirma ser impossível medir com precisão e simultaneamente a velocidade e a posição de uma partícula atômica. Neste caso, a medição depende de como as variáveis serão tomadas pelo observador.
Essa tendência anunciada pela mecânica quântica foi reforçada por outros teoremas que se disseminaram na época, como o Teorema da Indefinibilidade, de Tarski (1930), e o Teorema da Incompletude, de Gödel (1931). No primeiro, rompeu-se com a ideia de verdade absoluta, que dá lugar a uma concepção relativista de acordo com o observador e as variáveis por ele consideradas. No segundo, rompeu-se com a ideia de que a resolução de uma questão envolve um conjunto certo de regras e procedimentos, uma vez que esses são determinados pelo observador que os opera.
A imprevisibilidade faz parte do modelo caótico e probabilístico da ciência contemporânea, da teoria do caos, que se torna ainda maior com o aumento da complexidade do sistema. Adepto à filosofia de Deleuze, Gregory Flaxman, professor do Departamento de Estudos da Comunicação da Universidade da Carolina do Norte, defende que teorias complexas como a teoria das cordas, teoria física capaz de explicar tudo, são mais incompletas do que teorias simples. Entretanto, mesmo essas, por terem algum grau de imprecisão, estão sujeitas à substituição.
Renovando o conhecimento
A substituição de teorias é o que o físico e filófoso Thomas Kuhn chamou de revolução científica. Em seu livro A estrutura das revoluções científicas (1962), Khun explica que o acúmulo de anomalias, situações que o paradigma vigente não é capaz de explicar, instaura uma situação de crise que suscita a emergência de reformulações conceituais até que surja um novo candidato a paradigma. Gradativamente, então, a comunidade científica passa a fazer ciência sob o novo paradigma até que a sua aceitação seja completa e o paradigma anterior seja abandonado definitivamente. Isso aconteceu, por exemplo, quando o modelo geocêntrico de Ptolomeu foi abandonado em favor do modelo heliocêntrico de Copérnico, e também quando o modelo determinístico da ciência moderna perdeu força para o caos probabilístico da ciência contemporânea.
É claro que uma teoria falseada não necessariamente é derrubada de imediato, como defendia o filósofo Karl Popper. Enquanto não houver uma alternativa melhor disponível, os fatos discordantes à teoria vigente vão sendo ajustados por explicações adicionais, chamadas de hipóteses ad hoc. Contudo, as ideias de Popper tiveram um grande impacto na sociologia da ciência ao mostrar que o acúmulo de fatos concordantes não legitima uma teoria científica, já que as hipóteses nunca podem ser demonstradas como verdadeiras. Se o conhecimento científico fosse preciso e completo, ele seria verdadeiro e, consequentemente, estável. Mas, como afirma Flaxman, tudo o que acreditamos é fluído porque nossas explicações são imprecisas e caóticas.
Desse modo, colocar um árbitro eletrônico no lugar do homem em uma partida de futebol não é garantia de uma arbitragem imune de erros. As variáveis são muitas, ou melhor, infinitas, e sua interpretação, embora ampliada com a incorporação da tecnologia, não exclui o homem do processo. Se por um lado não há limite para os avanços tecnológicos, uma vez que o conhecimento está em constante processo de substituição, ao menos temos a garantia de que ele nunca irá nos transformar em seres previsíveis ou dispensáveis. O homem-máquina agradece.