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ComCiência
versión On-line ISSN 1519-7654
ComCiência n.119 Campinas 2010
ARTIGO
Nanotecnologias e qualidade de vida
Julia S. Guivant; Denise M. Nunes; Ana C. Cassiano
Os desenvolvimentos advindos da ciência e da tecnologia são indissociáveis do que tanto pode ser percebido como melhorias e/ou ameaças à qualidade de vida. As controvérsias em torno de inovações científico-tecnológicas têm passado a ser mais intensas nas últimas décadas, devido ao reconhecimento em algumas delas de níveis de incerteza sobre suas consequências. Um exemplo de inovação contemporânea que está gerando incipientes controvérsias é o das nanotecnologias.
Na escala nanométrica, materiais antes conhecidos passam a ter novas propriedades físico-químicas, o que possibilita a criação de novos produtos: tecidos que absorvem a transpiração, máquinas de lavar com propriedades bactericidas, protetores solares e antirrugas mais eficientes, embalagens mais resistentes, vidros autolimpantes, são apenas alguns exemplos de produtos desenvolvidos com nanotecnologias que já se encontram no mercado e que consumimos mesmo sem saber, já que não há obrigatoriedade de rotulagem.
Junto com promessas de transformação radicais nos nossos estilos de vida, também há temores entre diversos setores da sociedade global sobre seus possíveis perigos. Mas de que forma essas inovações poderiam melhorar e/ou ameaçar a qualidade de vida desde o ponto de vista dos potenciais consumidores no Brasil?
Em estudos realizados pelo Instituto de Pesquisa em Riscos e Sustentabilidade (Iris) da Universidade Federal de Santa Catarina, foram levantadas algumas respostas nesse sentido envolvendo distintas perspectivas. Destacaremos aqui três pesquisas realizadas em Florianópolis (SC) durante o ano de 2009 e que apontaram resultados semelhantes. A primeira refere-se a percepções sobre nanotecnologias entre diferentes setores sociais; a segunda aprofundou as questões entre militantes ambientalistas e a terceira analisou a percepção de consumidoras de nanocosméticos. Nenhuma dessas pesquisas procurou representatividade, mas sim levantar de forma exploratória as relações que os entrevistados estabeleciam entre as nanotecnologias e o seu cotidiano, o corpo, as questões ambientais, os problemas de governança e as fronteiras morais da pesquisa científica tópicos que sem dúvida abrangem o que pode ser entendido como qualidade de vida.
Na primeira pesquisa, conduzida por Julia S. Guivant e Phil Macnaghten (Durham University, Reino Unido) se utilizou a metodologia de grupos focais. Estes grupos incluíram: 1) interessados em questões de saúde espiritual e natural (com base em participação de igrejas católicas e evangélicas, inclusive usuários de terapias naturais e produtos orgânicos); 2) representantes de movimentos sociais (formado por membros do ecológico, feminista e associações de bairro); e 3) lideranças empresariais e as profissões liberais. As discussões em grupo foram concebidas para permitir aos participantes desenvolver sua compreensão do que são as nanotecnologias. Foi observado, nos três grupos, uma narrativa principal que conjuga o progresso da sociedade em geral com o avanço tecnocientífico, que dá à ciência uma orientação voltada para o futuro, e que não só cresce ao longo do tempo, mas também melhora a qualidade de vida de diversos setores sociais.
A nanotecnologia, apesar de ser apresentada para os participantes dos grupos focais através dos debates que está gerando entre movimentos sociais e cientistas, passou a ser representada como a possibilidade de o Brasil entrar para a modernidade e aproveitar os benefícios da globalização. Para o grupo de lideranças de movimentos sociais locais a tecnologia tinha um apelo positivo, uma vez que permitiria cumprir as suas ambições de criar uma sociedade mais igualitária e como fornecimento de soluções para os problemas ambientais e sociais. Mesmo para o grupo religioso, que fora talvez o mais cético em relação aos valores de uma sociedade cada vez mais tecnológica, a resposta foi de defesa de uma vida simples e apelo a fé religiosa.
Os resultados da segunda pesquisa, também de caráter qualitativo, foi realizada por Ana C. Cassiano com dirigentes de organizações não-governamentais ambientalistas locais. As oito entrevistas indicaram a predominância de uma atitude de confiança na ciência e na tecnologia, e mostram que o desenvolvimento da ciência é visto como algo que não exige dos pesquisadores e governantes justificar suas práticas nem escolhas. Além disso, as incertezas e controvérsias foram encaradas como parte do desenvolvimento tecnocientífico e não consideradas enquanto algo problemático. A maior parte dos entrevistados também indicou que considerava que a ciência já estaria incorporando uma preocupação com o meio ambiente por meio do desenvolvimento de tecnologias limpas e sustentáveis e que esta seria uma dimensão ainda mais aprofundada no futuro. Neste mesmo sentido, quando questionados sobre as possíveis consequências do desenvolvimento tecnológico para o meio ambiente, as respostas foram unanimemente atreladas a uma visão positiva: de que a ciência pode trazer benefícios para o meio ambiente.
Os aspectos negativos levantados a respeito do progresso da ciência e da tecnologia também foram mencionados pelos ambientalistas entrevistados. Entretanto, não são estritamente vinculados ao desenvolvimento tecnocientífico em si, mas mais atrelados aos modelos de consumo. Segundo essa visão, as escolhas individuais são consideradas a principal causa para os problemas ambientais, mas também a principal fonte de soluções. Para eles, caberia aos indivíduos orientar seu consumo para práticas mais sustentáveis e escolher empresas e produtos que correspondam a esse modelo. É justamente na criação de soluções sustentáveis que os entrevistados identificaram o papel da ciência e da tecnologia; o que, em última instância, levaria a uma melhoria da qualidade de vida.
Já a terceira pesquisa, realizada por Denise M. Nunes, tratava da utilização das nanotecnologias na produção de cosméticos da Avon e Natura, objetivando investigar como esses produtos são apresentados e percebidos no que se refere a riscos e benefícios. O uso de produtos cosméticos está ligado à imagem e representação do corpo, desta forma a corporeidade é a peça chave para evidenciar posturas, estilos de vida e valores na sociedade contemporânea. Entre os cosméticos nanoestruturados se destacam os protetores solares e os cremes antissinais. As alegações de maior eficiência desses cosméticos não foram questionadas pelas vinte consumidoras entrevistadas; pelo contrário, a proposta de maior investimento tecnológico foi considerada como um fator decisório na sua escolha. Além disso, os nanocosméticos são considerados uma alternativa aos procedimentos clínicos. Apesar de apresentados com possíveis riscos durante as entrevistas, as consumidoras apenas deram peso a seus benefícios e a melhor qualidade de vida que podem alcançar por meio deles. A qualidade de vida, nesse caso, está diretamente associada com a garantia de não envelhecimento e de beleza.
O sentimento de otimismo em relação às promessas da nanotecnologia, nas suas diferentes variantes, mostrou a predominância de uma significativa fé na ciência e na tecnologia como fontes de melhoria da qualidade de vida humana e progresso social. Surpreendeu-nos a limitada crítica à tecnologia como um sistema, como também uma ausência da necessidade de controlar ou criticar os atores envolvidos na sua produção social. Em comparação com pesquisas equivalentes realizadas nos Estados Unidos e na Europa, podemos apontar a especificidade das percepções observadas nas pesquisas aqui apresentadas. Enquanto um significativo nível de ceticismo público em relação às certezas da ciência tem levado a considerar, em diversos documentos de comitês científicos, de institutos de pesquisa e de órgãos governamentais, a importância de formas de envolvimento público para construir uma ciência mais robusta, os resultados aqui apresentados abrem questões relevantes da governança da ciência que remetem às especificidades da cultura política e à necessidade de reflexão sobre como encaminhar, na sociedade brasileira, debates sobre os possíveis riscos e benefícios de inovações que atualmente envolvem incertezas.
Julia Guivant é professora do Departamento de Sociologia e Ciência Política, Universidade Federal de Santa Catarina e coordenadora do Iris (www.iris.ufsc.br) Email: jguivant@cfh.ufsc.br ; Denise M. Nunes é doutoranda em sociologia política na Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisadora do Iris. Email: denisemnunes@hotmail.com ; e Ana C. Cassiano é cientista social e pesquisadora do Iris. Email: carolcass@hotmail.com.