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ComCiência

On-line version ISSN 1519-7654

ComCiência  no.118 Campinas  2010

 

ARTIGO

 

Brasília das ideias, projetos, usos e desusos

 

 

José Leme Galvão Junior

 

 

Brasília é, talvez, a expressão urbana mais acabada de intencionalidade projetiva no século XX. Coroou o projeto político de nacionalidade que vinha sendo gestado nos estamentos governamentais e intelectuais, e que obteve maior nitidez entre os modernistas, cujo marco foi a Semana de 1922. Buscava-se símbolos autênticos da alma brasileira, afastados da corte carioca ou mesmo da cultura excessivamente europeizada que identificava-se com as metrópoles inglesa ou francesa, para negar a cultura periférica herdada de Portugal. Tais símbolos foram resgatados nas etnias (apenas simbolicamente, é claro!), na miscigenação e nas expressões culturais de arte, entre elas a arquitetura barroca, como produto da mistura genuinamente brasileira. Em 1937 foi criado o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e a legislação de reconhecimento e proteção do patrimônio cultural brasileiro. Criou-se, na verdade, um modo de arbitrar e proteger os símbolos constitutivos da nação, tomando o barroco, em nome dos demais, como expressão máxima e referência simbólica.

Esses mesmos modernistas ocuparam-se também de estabelecer pontes com o barroco, cuidando para que os conceitos e a produção modernista se perenizassem. É que, não havendo uma relação formal-estética evidente, nem qualquer outra evidência, jamais ocorreu a alguém designar certas manifestações modernistas de neo-barrocas, tal como ocorreu com o neo-classicismo. Os vínculos se estabeleceram com base em pressupostos de que o modernismo incorporava as curvas sensuais do barroco e uma liberdade de criação e invenção que não houve nos demais famigerados estilos: neoclassicismo, ecletismo, art-noveau etc. Urgia uma identidade cultural e, de uma forma espantosamente dedicada, os brasileiros aderiram e compuseram a nacionalidade, hoje verde-e-amarela totalmente assumida. Muitos verdadeiramente acreditaram e acreditam nesse mito de origem artificioso. Recentemente retomamos o fio da meada e os diversos nacionalismos de todos os períodos já são reconhecidos e até revividos nos surtos pós-alguma-coisa. Ser ou não ser foi a questão e, do ponto de vista da construção da nacionalidade, o Estado Novo se compara, em importância, às proclamações da Independência e da República, assim como, em meio à reconstrução democrática, Brasília constituiu-se no corolário do processo modernista redivivo, locomotiva da reafirmação do Brasil dos slogans ufanistas, como os 50 anos em 5, ou o país que vaipra frente, inclusive para projeção no cenário mundial.

Lúcio Costa, no memorial que apresenta seu anteprojeto para o plano piloto de Brasília, escreveu um dos mais comoventes discursos sobre a crença nos altos desígnios da humanidade e dos brasileiros, desígnios esses que podem e devem ser traçados pelo próprio homem. Com esse discurso, cineastas do quilate de Charles Chaplin, ou brazucas como Glauber Rocha, produziriam filmes de impacto, tais como quando o ditador da Tomania faz um fantástico libelo pela humanidade, ou quando Paulo Autran discursa ao vento em Terra em transe.

O projeto de Lúcio Costa foi construído. Em todos esses anos, o plano Piloto de Brasília não chegou a ter um sistema de planejamento e gestão como deveria, mas o projeto resistiu, sendo mesmo a melhor referência para a gestão da cidade. No plano nacional, Brasília deveria funcionar como núcleo de um processo de força centrípeta inicial e centrífuga para desenvolvimento macro-regional. Mas tornou-se um polo de migração, como tantos outros, no processo maior do êxodo campo-cidade que as desigualdades deste país impuseram. Por essas e outras razões, podemos apontar fatores incidentais desfavoráveis ao projeto. Restou equacionar a sustentação de uma cidade que jamais deveria ser tão grande e polarizadora. Seu território, no atual modelo geoolítico, não lhe é suficiente. A continuarem os subsídios e outras benesses em razão do seu status, tornar-se-á um fardo pesado para a federação e um foco de política e administrações esquizofrênicas como filhos mimados.

Entretanto sabemos que o exame das potencialidades desenvolvimentistas do Brasil Central, à época, ficou excessivamente centrado na área econômica, sobre perspectivas de desenvolvimento agrário e industrial, com pretensões que lembravam os grandes campos agrícolas do meio-oeste norte-americano. (É mais atual a clareza de que o planejamento regional deve ser muito mais equilibrado, com vistas à sustentabilidade do ambiente e do próprio processo de desenvolvimento). O projeto tomou o cerrado como o grande "vazio" do hinterland brasileiro e o bioma Cerrado foi praticamente ignorado, pois o Planalto Central poderia e deveria ser ocupado e transformado, até porque a ideia era só pensar nas boas consequências.

Seja como for, Brasília foi e ainda é invenção, criatura nova e estimulante, mesmo que finita em sua experimentação. A intencionalidade presente no projeto modernista de Brasília chegou a um nível de detalhamento só visto em projetos de pequenas cidades ou trechos urbanos (bairros, distritos industriais etc), lembrando que, ao tentar propiciar um espaço mais acessível e de maior qualidade à população, os urbanistas definem com muito mais rigor não só o desenho, mas também as funções e atividades urbanas. São respostas formais às necessidades humanas-urbanas, tentando evitar intervenções espúrias e descaminhos. Assim foi a proposta modernista das quatro funções urbanas: habitação, trabalho, lazer e circulação. Lúcio colocou em termos tupiniquins: quatro escalas, habitacional, gregária, monumental e bucólica, sobre uma estrutura viária e de apoio que definiram formas e limites. Em qualquer cidade, poder-se-ia identificar essas mesmas escalas, mas totalmente imbricadas, ao passo que em Brasília elas adquirem status funcional e segregador ainda no projeto. Fez sentido, pois não se pretendia uma cidade qualquer, mas a nova capital do Brasil. Nela e por ela seriam, como o foram, reinventadas arquiteturas e até formas novas de socialização.

 

O plano piloto de Lúcio Costa

No relatório do plano piloto, Lúcio Costa descreveu não só o seu plano, mas penso que também, parodiando Le Corbusier, sua maneira de pensar o urbanismo. Nele, Brasília nasceria e cresceria em uma impressionante sequência lógica e didática. Tendo declarado desde o primeiro parágrafo a sua condição de maquizard, modesto e falível, depois não se percebe a mais leve dúvida. A cidade foi projetada íntegra como uma obra de arte. Devemos compreender essa questão. O criador gesta uma cidade pronta, nova e renovadora, impulsiona indelevelmente o país no cenário mundial, defende seus princípios e seu projeto, mas sua cultura e sua formação humanista e libertária, portanto generosa, desenha simultaneamente uma cidade aberta, literalmente, ao cidadão. Não quer dizer que estivesse necessariamente certo, ou que se apercebesse das quantas questões socioeconômicas e geopolíticas inviabilizariam a integralidade do seu projeto. Por suas palavras, em novembro de 1984: " Eu caí em cheio na realidade, e uma das realidades que me surpreenderam foi a rodoviária, à noitinha. .. Isso tudo é muito diferente do que eu tinha imaginado para esse centro urbano, como uma coisa requintada, meio cosmopolita. Mas não é. Quem tomou conta dele foram esses brasileiros verdadeiros que construíram a cidade e estão ali legitimamente. É o Brasil... Fiquei orgulhoso disso, fiquei satisfeito. É isto. Eles estão com a razão, eu é que estava errado".

 

As escalas

No memorial do plano piloto, Lúcio Costa referiu-se mais explicitamente às escalas monumental e bucólica, que deveriam presidir o caráter da cidade enquanto capital. Já em 1967, em defesa de Brasília, Lúcio Costa disse: " A cidade foi, de fato, concebida em função de três escalas diferentes: a escala coletiva ou monumental, a escala cotidiano ou residencial e a escala concentrada ou gregária; o jogo dessas três escalas é que lhe dará o caráter próprio definitivo ... Esse foco urbano concentrado (ele referia-se à área central e monumental) foi deliberadamente concebido para fazer contraponto aos espaços desafogados e serenos das superquadras residenciais ao longo do eixo rodoviário, e a criação dessas quadras, que se queriam emolduradas por uma densa faixa verde de árvores de porte, objetivou, inicialmente, articular a escala residencial à monumental, afim de garantir a unidade da estrutura urbana. Cada conjunto de quatro dessas superquadras tem acesso comum às vias de tráfego local contíguas ao eixo rodoviário, e constitui uma área de vizinhança (grifo meu) com seus complementos indispensáveis - escolas primária e secundária, comércio, clube etc - entrosando-se assim umas às outras em toda a extensão do referido eixo". Percebe-se o esforço didático de Lúcio Costa para fazer compreender que não poderia, ou não deveria, haver interpretações segmentadas, por esta ou aquela categoria, este ou aquele setor, esta ou aquela estrutura urbana. O desenho e os setores impunham uma morfologia, mas a questão das escalas foi uma maneira transversal e imbricada ao desenho de mostrar que o projeto como um todo atendia a complexidade do programa de uma nova cidade capital. Essa disposição conferiu o caráter morfológico da nova capital. As escalas monumental e bucólica estão presentes em todos os setores. Onde a escala monumental é predominante ou determinante, persistem os componentes bucólicos, assim como nos setores residenciais. Mesmo no setor central, de escala gregária dominante, o componente bucólico fazia-se presente pelos eixos e grandes áreas de junção com as asas residenciais. Quando não, pretendia o autor que a escala algo romântica dos meandros hiper-urbanos das vielas e lugares pedestres dominasse grandes áreas daquele centro imaginado.

 

As unidades de vizinhança e as superquadras

Elas integram o núcleo efetivo de desenvolvimento urbano vinculado à função habitacional. Lúcio referiu-se à área de vizinhança de forma difusa, sem fixar um perímetro de compreensão, mas um raio de alcance ou de acesso dos usuários. Essa ideia, depois denominada "unidade de vizinhança" (possivelmente pela equipe técnica que desenvolveu e construiu a cidade), traduz a intenção programática de socialização dos espaços pela possibilitação do uso intenso. O que se depreende é que o conceito de unidade de vizinhança está vinculado aos planos complementares e especializados do Distrito Federal. Refiro-me aos planos educacionais e de saúde, por exemplo, que são estruturados a partir de uma ideia de rede prestadora de atendimento, em função da escala e das especificidades dos serviços em cada rede. Por exemplo, a rede educacional resultou determinante na formulação atual da unidade de vizinhança, porquanto se estabeleceu imbricada com as superquadras (ensino primário, secundário, colegial) e dispôs a escola-parque, criando uma ponte estruturadora mais forte, incluindo o esporte e o lazer dirigidos. Podemos verificar também que a distribuição de outros equipamentos e serviços, tais como cinemas e templos, têm distribuição geográfica equitativa, sem uma ordem estruturadora própria. Formalmente a unidade de vizinhança, no plano piloto, decorre diretamente da setorização e estruturação habitacional das superquadras e das redes de serviços e atividades, dispostos na estrutura viária, que estabelecem o contínuo formal ao rés do chão, matriz de organização de tudo o mais.

Deve-se destacar que o conceito da proposta propugnou por uma qualidade de vida avançada, por meio de um novo modo de morar e conviver socialmente. Existe hoje, de fato, um novo parâmetro de qualidade de vida associado às superquadras, embora não tenha se realizado satisfatoriamente fora desse âmbito.

Resta ainda buscar nas brumas da urbanização as raízes desse conceito, para ajudar-nos a verificar suas possibilidades enquanto modelo ou apenas princípio de planejamento e gestão urbana. Para isso, me concentrei na verificação dos esforços de Lúcio Costa e dos construtores de Brasília e, retrocedendo, de autores que poderiam mostrar como chegamos a formular, ou cunhar, esse binômio urbanístico unidade de vizinhança. (A h istória da unidade de vizinhança é mais um outro artigo que vale à pena, pois revisa o local urbano cujas qualidades de indivisibilidade, homogeneidade e identidade destinam-se predominantemente aos seus moradores e usuários, como produto de planejamento e sistematização da cidade, que apoia os demais sistemas estruturantes e de ordenamento territorial.).

 

O desenvolvimento do projeto e a implantação inicial

Houve muitos projetos executivos para Brasília. A construção do Palácio da Alvorada foi iniciada antes mesmo do concurso para o plano piloto, no qual sua localização era um dado. A construção do plano piloto iniciou-se quase imediatamente após o concurso. Os escritórios de Lúcio Costa, de Oscar Niemeyer e da Novacap, no Rio e em Brasília, trabalharam febrilmente. A demarcação dos eixos e, a partir deles, a geometria das vias - o esqueleto - como diziam Juscelino Kubtscheck e Israel Pinheiro, se fez com base em desenhos dos quais não se tem mais notícia. Arquitetos e engenheiros da época contam que, muitas vezes, desenhos originais eram retirados das pranchetas diretamente para o canteiro de obras. Entretanto, mais contundentes foram as decisões de aproximar o Plano Piloto (região administrativa) do futuro lago Paranoá e ampliar tanto o número das superquadras como a área central, aglutinando as primeiras quadras, inicialmente residenciais, aos setores de atividades gregárias. Em verdade, essas decisões reduziram sensivelmente a característica linear presente no estudo inicial, com consequências positivas e negativas, a serem revistas em mais um outro artigo, mas bastante esmiuçadas pelo arquiteto e professor da UnB Antonio Carlos Carpintero.

 

O modelo é reprodutivo?

Brasília teria inaugurado um modo de urbanização com altas qualidades e expectativas relativas a uma certa crença ou esperança de desenvolvimento social mais justo. Quanto ao desenvolvimento social, nos enganamos, os urbanistas, miseravelmente, pois os projetos e espaços urbanos formulados e construídos naquele frenesi nacionalista sofreram sérios desvios oligofrênicos, o que é observável pelo afastamento da realidade da intencionalidade programática. É bom lembrar, contudo, que não se cobra coerência de espaços menos planejados nas cidades tradicionais ou comuns. E têm tido muita repercussão e relativo sucesso as críticas negativas à cidade, tais como as que constam em A cidade modernista, de James Holston. À parte as críticas honestas quanto aos detalhes e vieses socioeconômicos, fica sempre exposto o lado frouxo da crítica, aquele que demonstra cabalmente que Brasília, na douta opinião desses críticos, só seria defensável ou aceita se fosse tradicionalmente ruim, com extensas mazelas à moda carioca, ou soteropolitana, ou alterosa, ou paulistana, ou recifense e belenense, só para citar algumas das grandes cidades brasileiras. Aqui, após sucessivos governos calhordas ou simplesmente incompetentes, a realidade vai mostrando aos moradores e críticos o quanto está sujeita aos desmandos, como qualquer outra e como, afinal, poderá ficar similarmente ruim a qualquer outra megalópole do século XXI. E que não digam que alguma resistência não terá sido por força de seu projeto, certamente e de longe a melhor coisa que a inteligência arquitetônica e urbanística brasileira produziu em todos os tempos.

Quanto aos processos sociais, entendo que a segregação é, antes de tudo, produto direto do exercício do poder, inclusive econômico, por minorias auto-perpetuadas. Pode mudar a forma urbana, mas não muda a realidade trágica desse tipo de desvio social.

Quanto ao fato do modelo urbano, particularmente das superquadras, não ser reproduzido ou reprodutível, devemos observar alguns condicionantes a possíveis outras realizações e desenvolvimentos de projetos: a) é necessário um projeto ou um programa de caráter social (amplo, irrestrito, contínuo), que implica em alguma forma de participação do Estado; b) implica em investimentos pesados de projeto, infraestrutura e localização urbana; c) somente empresas muito capitalizadas ou o Estado teriam condições de bancar investimentos dessa magnitude; d) não gera tanto lucro quanto outros investimentos urbanos em moradia, semelhantes nas escalas de custo-benefício por unidade residencial; e) do ponto de vista dos investidores, as necessidades habitacionais são medidas e tomadas por unidades e não por setores sociais urbanos. Os investimentos são meras acumulações estratégicas da produção e comercialização de unidades. Dessa forma, afirmo que, com as exceções possíveis, a superquadra só é modelo reprodutível em larga escala e em novas cidades. Nas demais, ficam sujeitas a eventuais bairros de classe média alta autofinanciados e contidos em sistemas condominiais. As unidades de vizinhança de caráter socializante são reprodutíveis apenas por decisão e obra governamental. Lúcio Costa, em Brasília revisitada, propôs áreas habitacionais mais econômicas, porém manteve o nível do chão o mais livre possível para o uso comum. Os novos setores Sudoeste e Noroeste de Brasília assemelham-se às superquadras, por extensão ou desdobramento do Plano Piloto, mas somente assumidos pelo governo local por força do tombamento federal.

Nas poucas e restritas variações do modelo capitalista vigente, qualquer modelo de projeto urbanístico que intencione uma cidade plena não é e não será reprodutível em larga escala. Assim foi e tem sido a partir de Goiânia, de Brasília e de Palmas, entre outras. Pelo que se pode verificar nesta virada de século, apenas as liberalidades que resultam em loteamentos e suas apropriações são reproduzidos, com enorme sucesso imobiliário e equivalente desastre urbanístico.

 

 

José Leme Galvão Junior é arquiteto e urbanista pela Universidade de Brasília, e desde 1980 está no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).