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ComCiência

On-line version ISSN 1519-7654

ComCiência  no.117 Campinas  2010

 

ARTIGO

 

Tempestades, terremotos, vulcões e a geomitologia

 

 

Por Myriam Antonio Carlos Sequeira Fernandes

 

 

Os grandes eventos catastróficos sempre mexeram com o imaginário popular, incapaz de lhes dar uma explicação adequada para sua compreensão. Seriam fruto de uma força sobrenatural superior, possivelmente produzidos por entidades mitológicas ou deuses enraivecidos que puniam quem os contrariava. Surgiram, assim, os grandes mitos ou lendas, numa mistura complexa de contos sobre a origem do mundo natural e a história de seus primeiros habitantes. As associações dos eventos geológicos com o inexplicável resultaram na criação do termo "geomitologia", o qual se refere às lendas que procuram explicar, através de metáforas poéticas e do imaginário mitológico, a razão de acontecimentos como as tempestades, os terremotos e as atividades vulcânicas. Conhecimentos recentes, à luz da ciência geológica moderna, permitem explicar muitos dos mitos e das lendas elaboradas pelos povos antigos, como os exemplos que serão apresentados em seguida.

De todos os eventos, sem dúvida o mais conhecido e comentado é o dilúvio bíblico protagonizado por Noé. Sua origem, entretanto, estaria relacionada a uma antiga lenda da Mesopotâmia que descreve as aventuras de Gilgamesh, um herói da região, à procura da eternidade. Reza a lenda que Gilgamesh atravessou as montanhas para chegar ao mar Negro, à procura de Utnapishtim, o sobrevivente do grande dilúvio, para que este o ensinasse sobre a vida eterna. Após encontrá-lo, Utnapishtim lhe contou uma insuportável verdade: "não há eternidade". Em seguida, Utnapishtim lhe revelou dois segredos conhecidos dos deuses. O primeiro narrava como ele, Utnapishtim, foi advertido por Ea para construir uma arca e enchê-la com as sementes de todas as coisas vivas, já que era a intenção dos deuses destruir toda a humanidade através de um dilúvio. Ea não justificou essa horrível decisão dos deuses e Utnapishtim obedeceu à ordem. Quando o dilúvio veio com grande violência, ele e sua família flutuaram por dias. Enviou aves à procura de terra e, quando as águas finalmente baixaram, todos deixaram a arca. Para comemorar, Utnapishtim preparou uma grande ceia para os deuses, que a consumiram com grande satisfação. Como prêmio, os deuses lhe deram a imortalidade. O segundo segredo dizia respeito à existência de uma planta do rejuvenescimento, um arbusto espinhoso que se encontrava no fundo do mar cintilante. Utnapishtim, então, lhe disse que se colocasse as mãos naquela planta e a comesse, ele conquistaria a vida eterna. Gilgamesh aceitou o desafio, amarrou pedras aos pés, navegou naquele mar e retirou a planta do fundo. No seu retorno a Uruk, antiga cidade da Suméria situada ao sul da Mesopotâmia, entretanto, quando Gilgamesh estava tomando banho em um lago, uma cobra, atraída pela fragância da sua flor, roubou-lhe a planta. Angustiado, Gilgamesh entendeu finalmente que a imortalidade não era para ser sua última recompensa. E assim termina o épico de Gilgamesh.

O dilúvio a que a lenda de Gilgamesh se refere estaria, na realidade, ligado à formação do mar Negro, o grande mar interior situado entre a Europa, a Anatólia e o Cáucaso e ligado aos mares Mediterrâneo, Egeu e de Mármara pelo estreito de Bósforo, na atual Turquia. Há mais de cinco mil anos atrás, o mar Negro era um grande lago de água doce cujo nível de suas águas situava-se cerca de 150 metros abaixo do nível do mar atual, com populações que habitavam suas margens. Com a subida do nível dos oceanos, as águas começaram então a invadir a região do vale do Bósforo. Impulsionadas pelos ventos e pelas ondas, as águas batiam repetidamente na parte superior das terras que separavam a área do mar de Mármara da região do antigo lago, até que, em uma investida final, começou a fluir continuamente, descendo a encosta em direção ao seu centro. Pouco a pouco, as águas encontraram o seu caminho e o pequeno riacho que se formou no início aumentou gradativamente seu volume, cortando cada vez mais fortemente o fundo e as paredes da nova passagem. Em alguns dias, o som das águas penetrando o lago se transformou num grande rugido, formando um rio turbulento que a tudo carregava em sua passagem. Milhões de metros cúbicos de água fluíram para dentro do lago, fazendo com que seu nível subisse cerca de 70 cm por dia, inundando toda a região, sem qualquer pausa. Pode-se, assim, imaginar o terror das populações das margens do lago, obrigadas a se deslocar rapidamente e que, sem entender o que acontecia, fugiam para todos os lados.

Na mitologia mesopotâmica, o propósito da história do dilúvio era registrar um evento desastroso, com versões que variaram de acordo com as tradições locais. O dilúvio era entendido como uma divisão traumática na história do homem, sendo aceito como um único evento natural causado pelo capricho dos deuses. O trecho bíblico do dilúvio de Noé, em sua mensagem, possui a mesma estrutura básica dos mitos da Mesopotâmia.

Na história da geologia, os fósseis também contribuíram para a comprovação da existência do dilúvio bíblico. E m 1802, nas proximidades da cidade de South Hadley, no estado de Massachusetts, Estados Unidos, um jovem chamado Pliny Moody descobriu uma laje de rocha que continha cinco pequenas pegadas fossilizadas que, sabe-se hoje, correspondem a pegadas produzidas pela passagem de dinossauros. Entretanto, em virtude da forte influência religiosa que existia nas antigas colônias do norte dos Estados Unidos na época, não havia sido essa a interpretação inicial dada às pegadas.

Pliny Moody arava as terras da fazenda de seu pai quando encontrou a laje de arenito que, devido às cinco marcas curiosas que apresentava, passou a ser utilizada como ornamento na entrada da fazenda, onde permaneceu por cerca de sete anos. Com a ida de Pliny Moody para a universidade, a placa foi vendida a um médico, que a mostrava a seus visitantes como produto das pegadas deixadas pelo corvo de Noé, numa associação à passagem bíblica do dilúvio e certamente em razão de sua semelhança com as pegadas de aves. Em 1839, portanto, cerca de trinta anos após, a laje foi adquirida pelo reverendo e professor de teologia e geologia Edward Hitchcock, que as identificou como pegadas de aves pré-diluvianas. Outras pegadas presentes em outras lajes utilizadas como pavimentos nas ruas também eram atribuídas às aves pré-históricas. Somente a partir do final do século XIX é que as pegadas começaram a ser interpretadas como pegadas de dinossauros.

Não é difícil se entender o motivo da interpretação das pegadas como produzidas pelo corvo de Noé e sua aceitação pelos habitantes de South Hadley, em Massachusetts, já que ela se encontra no contexto das colonizações da América. Durante os séculos XVI e XVII, as colônias do norte foram sistematicamente ocupadas por grupos religiosos perseguidos na Inglaterra, como os puritanos ou protestantes calvinistas; para eles, a livre interpretação da Bíblia e o seu conhecimento eram pontos prioritários, orientando todo um projeto educacional das colônias desde o primário ao ensino superior. Opiniões contrárias à Bíblia, nessa fase colonial, poderiam ser alvo de punições e, portanto, a identificação das pegadas como produto da atividade de um animal citado nas Sagradas Escrituras e em concordância com seus ensinamentos seria uma interpretação perfeitamente comum, mesmo no século XIX. As novas abordagens e descobertas da história natural e da geologia nesse século aumentaram a distância entre as novas evidências científicas e os dogmas teológicos então existentes. Edward Hitchcock percebeu essas diferenças e procurou conciliar as revelações das Escrituras com as últimas teorias geológicas: estudou cientificamente as pegadas relacionando-as a aves pré-históricas, mas manteve a fé na palavra de Deus e na eficiência de suas leis físicas regulando o universo. As pegadas não mais eram atribuídas ao corvo de Noé, mas a mão da Divina Providência certamente regulou a sua formação.

A existência de fósseis e a sua interpretação como antigos monstros ligados a tempestades e às águas também se encontram ligadas às lendas dos índios norte-americanos. Entre os índios sioux, por exemplo, no mito da criação, as primeiras criaturas foram insetos e répteis que viviam sob o domínio do Unktehi, o monstro da água. Naquele tempo, répteis de vários tipos representavam os monstros da água e devoravam todas as coisas vivas, tanto na água como na terra; tinham, assim, que ser destruídos, para que o equilíbrio natural fosse restaurado. Desse modo, na chamada Idade da Pedra (a primeira das quatro idades admitidas na lenda indígena), os monstros da água foram, então, transformados em pedra pelos raios disparados pelos Wakinyan ou pássaros-trovão. Corpos dos Wakinyan, assim como os Unktehi, ficaram, então, preservados nas rochas. Na realidade, a lenda encontra-se relacionada à presença de fósseis de répteis marinhos e voadores observados pelos índios nas planícies do oeste norte-americano, já que esqueletos fossilizados desses animais são frequentemente encontrados nas rochas, fornecendo, para os indígenas, forte evidência de grande hostilidade entre os dois tipos de seres.

Eventos como os terremotos também levantaram inúmeras questões irrespondíveis nos tempos bíblicos, que sempre os associavam à ira de Deus, insatisfeito com o comportamento de seu povo. Entre as catástrofes bíblicas mais conhecidas encontra-se a que atingiu Sodoma e Gomorra, cidades palestinas destruídas com pedras e fogo por Deus, de acordo com o relato do Gênesis. A ciência, hoje em dia, permite uma explicação geológica para o fato. A região, instável em virtude de inúmeras falhas geológicas, teria sido abalada por um forte terremoto por volta de 2100 a.C. Com a energia liberada sob a forma de calor nessas camadas de rochas, gases de hidrocarbonetos e petróleo ali existentes teriam atingido seu ponto de ignição. As cidades teriam, assim, sido destruídas pelos desabamentos resultantes dos fortes tremores e os inúmeros incêndios que se seguiram.

Tremores e fogo também estão associados às atividades vulcânicas e aos diferentes mitos de vários povos. Um mito muito conhecido é o de Pelé, a deusa havaiana dos vulcões. De acordo com o mito, Pelé teria vindo às ilhas havaianas para fugir da ira de sua irmã mais velha, a quem havia ofendido. Ao chegar a uma das ilhas, escavou um buraco à procura de fogo, mas a perseguição de sua irmã a levou a pular de uma ilha para outra, até fixar residência na ilha onde se encontra o vulcão Kilauea. Sua irmã teria, então, parado a perseguição; acredita-se que Pelé e seus parentes ali vivem até hoje.

Como se pode ver pelos exemplos apresentados, os geomitos podem ser motivo de uma pesquisa científica estimulante, unindo aspectos diversos das ciências em geral.

 

 

Antonio Carlos Fernandes é geólogo, professor do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e bolsista do CNPq. E-mail: acsfernandes@pq.cnpq.br