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ComCiência

On-line version ISSN 1519-7654

ComCiência  no.115 Campinas  2010

 

ARTIGO

 

Experiências na área de engenharias e ciências aplicadas

 

 

Júlia Baruque Ramos; Homero Fonseca Filho; Marcelo Ventura Freire; Sarajane Marques Peres

Professores da Universidade de São Paulo; Escola de Artes, Ciências e Humanidades

 

 

Engenharias e ciências aplicadas e as demandas da vida real

As diversas engenharias e ciências aplicadas são marcadas frequentemente por problemas concretos – muitas vezes vindos do mercado ou de demandas da sociedade – que exigem escolha de uma entre diversas possíveis soluções e permitem verificação empírica da adequação dessa solução escolhida ao problema em questão. Afinal, quando termina um curso de nível superior, é esperado que o aluno egresso consiga resolver problemas que envolvam sua área de formação. Evidentemente, a experiência e o amadurecimento que o profissional desenvolve após o início do exercício de sua carreira aumentam o grau de complexidade dos problemas dos quais ele dá conta.

 

"Já não se faz mais engenheiros como antigamente!..."

Parece ter crescido, entre os atuais profissionais já estabelecidos no mercado, a sensação de que o recém-graduado não tem conseguido acompanhar com a sua formação tradicional as dificuldades dos problemas concretos que encontra na prática de sua profissão.

Será que a formação tradicional de um curso de graduação não dá mais conta de formar um aluno apto a resolver os problemas de sua profissão, como conseguia há algumas décadas atrás?

 

Os problemas ficaram mais complexos ou ficamos mais exigentes com as soluções?

Uma comparação entre um problema do início do século XX com um do início deste século pode ajudar a ilustrar essa questão.

Voar com um veículo mais pesado que o ar ou fazer funcionar um satélite – Quando conseguiu decolar com um veículo mais pesado que o ar, Santos Dumont realizou um feito de superação de dificuldades técnicas em sua época, mas como comparar esse feito com o desafio de fabricar, enviar ao espaço e conseguir fazer funcionar um satélite de telecomunicações? Até então, a proporção entre peso e capacidade de propulsão somente permitiam que os dirigíveis fossem viáveis. Por outro lado, além da proporção entre a capacidade de transmissão de dados e o peso e volume do satélite, há o desafio de colocar em uma órbita estável específica. Depois disso, outro problema: a grande velocidade em órbita ocasiona dilatações no tempo. Apesar de pequenas, são suficientes para atrapalhar a sincronização com a base de transmissão na Terra, o que não ocorreria com um objeto voando dentro da atmosfera. Essa dilatação no tempo é um fenômeno que Einstein previu em sua Teoria da Relatividade. Ou seja, além do problema de engenharia, há um problema de física relativística que não poderia ser detectado em nossa experiência cotidiana.

E então, os problemas ficaram mais complexos ou ficamos mais exigentes? As duas coisas ao mesmo tempo: como os problemas mais simples já foram resolvidos ao longo do tempo, vão ficando por resolver os problemas mais complexos. Por outro lado, também tivemos necessidade de ficar mais exigentes e específicos com as formas de como avaliamos a adequação das soluções que escolhemos adotar. Assim, as soluções de antigamente (quando ainda aplicáveis) podem já não ser suficientes para os mesmos problemas.

A necessidade de soluções mais elaboradas, que considerem maior diversidade de aspectos, leva à necessidade de mais conhecimento.

 

O volume de conhecimento científico-tecnológico acumulado pela humanidade

Qualquer pessoa pode desenvolver mais conhecimento ao solucionar um problema. Porém, é preciso assumir o trabalho adicional de compartilhar suas descobertas e incorporá-las ao corpo de conhecimentos já existentes. São os pesquisadores que se dedicam a produzir conhecimento e se preocupam com sua sistematização, divulgação e acessibilidade.

Acredita-se que há hoje mais pesquisadores vivos e produzindo conhecimento do que a soma de todos os pesquisadores que já viveram no passado. Isso significa que o volume de conhecimento humano aumenta cada vez mais rápido e só não dobra de cinco em cinco anos, segundo alguns analistas tecnológicos, porque nem todas as áreas de pesquisa recebem o mesmo investimento de recursos material e humano.

Nesse cenário, o tempo necessário para uma pessoa apreender todo o conhecimento existente superaria, bem mais, toda a extensão de sua vida natural. Por esse motivo, hoje é impossível que uma única pessoa consiga deter todo o conhecimento existente ou mesmo ainda todo o conhecimento somente em uma única área.

O jeito é distribuir o conhecimento em diversas cabeças e fazê-las trabalhar juntas.

 

Dividindo o conhecimento

Tradicionalmente, dividimos o conhecimento humano em disciplinas. Estas agregam não só conhecimentos sobre seus objetos de estudo, mas também como os estudamos. Desse modo, as disciplinas formam "fatias" do conhecimento, as quais são agrupadas em áreas segundo suas similaridades em termos de objetos e métodos de estudo, conceitos e linguagem.

O surgimento de novos objetos ou abordagens de estudo, não pertencentes à disciplina já existente, cria a necessidade de novas disciplinas que consigam comportar novos conhecimentos. Além disso, quanto mais aumentam volume e especificidade desses conhecimentos, mais as disciplinas precisam se subdividir para comportá-los organizadamente, ao ponto de cada vez mais essas sub-disciplinas acabarem se tornando novas disciplinas.

Essa fragmentação progressiva das disciplinas leva a uma especialização progressiva dos conhecimentos, conceitos e linguagens específicos. Consequentemente, há também um aumento na dificuldade de interlocução entre as disciplinas e entre os profissionais nelas formados.

De um lado, o conhecimento está pulverizado em diversas cabeças que se propuseram à hercúlea tarefa de absorver o maior pedacinho do todo que conseguirem. De outro, uma dificuldade cada vez maior de essas cabeças se conversarem, pois seus referenciais e linguagens cada vez mais se especializam e se diferenciam.

É preciso aprender a interagir com as outras cabeças de diferentes formações.

 

Então a abordagem educacional tradicional não funciona mais?

Na verdade, ainda funciona sim, mas as suas limitações têm ficado cada vez mais evidentes.

A formação tradicional nas disciplinas se foca em uma ementa com conteúdos fixos, que podem ser separados em conteúdos-meio e conteúdos-fim , sendo que os primeiros se destinam a dar base para que os alunos consigam aprender esses últimos.

As limitações acabam aparecendo nesses dois aspectos: ementa fixa e o foco na ementa.

Se, por um lado, há certo conteúdo minimamente exigível de quem estuda uma disciplina, por outro lado há o confronto entre um tempo de formação finito e o volume crescente de conhecimento. Não é possível ensinar cada vez mais e mais conteúdo na mesma quantidade fixa de tempo. Então é preciso fazer escolhas. A especialização, assim, aparece tão inevitável quanto a consequente necessidade de escolher um conteúdo viável, que elimina o ensino de muito do conhecimento fora dessa especialização.

Como a ementa já vem fixada, o aluno não entra em contato, durante a sua formação com o que vai afligi-lo pelo resto de sua vida profissional: saber escolher o que aprender dentre os novos conhecimentos que se impõem estudar, e como fazê-lo. Os conteúdos-meio podem até ser ferramentais para conseguir aprender novos conteúdos, mas o aluno não teve a necessidade ou oportunidade de se estruturar com o que já sabe para aprender autonomamente novos conteúdos.

Essa é uma habilidade que – assim como a capacidade de interagir com profissionais de outras formações – precisa ser desenvolvida ao longo da sua formação, através dos conteúdos que vai aprendendo e das matérias que vai cursando e que não corresponde a nenhum conteúdo específico que possa ser incluído na ementa fixada.

Daí necessidade de colocar foco também no desenvolvimento de habilidades e competências usando os conteúdos para esse fim, e não somente foco na ementa, de modo que o foco seja balanceado entre essas duas dimensões transversais, a do domínio de conteúdo e a do desenvolvimento de habilidades e competências

 

Metodologias ativas: alternativas que contemplam as exigências do presente

É visível que os alunos de hoje têm um perfil diferente dos de décadas atrás. Não só os alunos mudaram, mas a sociedade mudou e tem passado por transformações que requerem mudanças no processo de ensino-aprendizagem. É necessário adotar técnicas e embasamentos pedagógicos novos mais compatíveis com esse novo aluno. Assim como em outras áreas do conhecimento, os cursos da área engenharia e de ciências aplicadas necessitam se adaptar às exigências atuais. Professores dessas áreas de conhecimento muitas vezes estão envolvidos com tecnologias de ponta em suas áreas de atuação e não é razoável que não consigam superar a resistência à tecnologia e à mudança, adequando-se às novas necessidades do sistema educacional.

Cada vez mais, o foco do ensino deixa de ser o professor e passa a ser o aluno. Esse novo enfoque exige que os professores se preocupem mais com o aprendiz, respeitando sua individualidade, seus estilos de aprendizagem e suas capacidades. É preciso aproveitar os vários estímulos proporcionados pelas redes sociais da internet, onde jovens e adultos se associam e interagem em comunidades com variados objetivos, para ampliar o uso de metodologias ativas de aprendizagem; tem-se a aprendizagem colaborativa, por meio da qual todos contribuem para o desenvolvimento coletivo do conhecimento.

Os países europeus estão atualmente num processo de reflexão e mudança devido, principalmente, à adaptação necessária à normativa de homologação de títulos conhecida como Plano Bolonha. Nesse processo, pretende-se levar em conta mais do que a quantidade de horas de aula ministradas em planos de estudo já estabelecidos. Pretende-se creditar o esforço do estudante com base nos resultados da aprendizagem, levando em conta, por um lado, a quantidade de horas que um estudante-padrão vai trabalhar e, por outro, o resultado da aprendizagem obtido nesse tempo.

Possibilidades e alternativas em metodologias ativas

Sem a ambição de apresentar uma enumeração completa, destacamos algumas alternativas de metodologias ativas e novas ferramentas para o ensino com expressivo emprego nos cursos superiores, com o objetivo de apresentar um panorama na área de engenharias e ciências aplicadas. Tal panorama é exemplificativo, não taxativo, pois metodologias e ferramentas encontram-se continuamente em fase de criação e desenvolvimento.

 

Aprendizado Baseado em Problemas ( Problem-based Learning )

A Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP) é uma das formas que vem se adequando a esse novo papel perante às necessidades do novo aluno. O ABP definido por Mayo e sua equipe em 1993 (1) é uma "estratégia pedagógica que apresenta aos estudantes situações significativas e contextualizadas no mundo real. Ao docente, mediador do processo de aprendizagem, compete proporcionar recursos, orientação e instrução aos estudantes, à medida que eles desenvolvem seus conhecimentos e habilidades na resolução de problemas".

Esse modelo pedagógico é uma das abordagens inovadoras surgidas nos últimos anos, que vem ocupando espaço cada vez maior em algumas das principais universidades de todo o mundo. A proposta das disciplinas "resolução de problemas" oferecidas na EACH/USP adota como princípio o papel ativo dos estudantes na construção do conhecimento. Trabalhando em pequenos grupos e coletivamente, os alunos devem pesquisar e resolver problemas complexos, relacionados à realidade do mundo em que vivem.

Outra modalidade de ABP é a Aprendizagem Baseada em Problemas e Projetos, (ABPP) onde o objeto de estudo é um projeto a ser desenvolvido. Esta modalidade é muito útil e aplicável aos cursos de engenharia e ciências aplicadas.

 

Educação à distância e tecnologias de informação e comunicação

Educação a distância (EAD) é um método de ensino bastante antigo. Só para exemplificar, vale lembrar dos cursos por correspondência via correio. Mas, com o passar dos tempos as Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) se desenvolveram a tal ponto que se inseriram em praticamente todas as atividades humanas, inclusive a educação. Desta forma, a EAD se apropriou das TICs, se expandiu e está cada dia mais consolidada. As TICs têm hoje um papel fundamental na educação, seja para apoiar a educação presencial, semi-presencial ou totalmente a distância.

A educação presencial, em sala de aula, pode ser apoiada por TICs, das mais variadas formas (e-mails, acesso à internet etc), mas toda carga horária de aulas ainda é presencial. Esta é, provavelmente, a forma mais comum atualmente.

Na educação totalmente a distância, aluno e professor não se encontram presencialmente. Existem várias formas de fazê-lo e há duas características importantes a serem consideradas. A primeira se refere à sincronia entre aluno e professor, que depende da característica da TIC que será utilizada para a comunicação entre ambos. Depende, também, do período de sincronização, que se refere ao tempo transcorrido entre dois momentos de comunicação síncrona (ao mesmo tempo) no curso. A segunda se refere à assistência ao aluno. Está relacionada à existência de um professor, ou instrutor para assistir e dar apoio aos alunos. Essa modalidade é a menos utilizada, pois, requer grande investimento financeiro e domínio pleno das TICs.

Na educação semi-presencial, parte da carga horária é presencial e parte é à distância. Este modelo parece ser muito interessante e parece ser um dos mais adequados atualmente, especialmente para cursos de engenharia e de ciências aplicadas onde é muito importante a presença do aluno em aulas práticas e permite que uma parte teórica seja aprendida a distância.

 

Jogos digitais

Atualmente jogos digitais com finalidades específicas de ensino ( serious games ) são utilizados como metodologia ativa na educação, por exemplo, em práticas de cidadania, educação no trânsito etc. No entanto, devido às diversas etapas desenvolvidas em equipe, a própria criação e desenvolvimento desses jogos dependem de aplicação de técnicas de metodologias ativas de ensino estimulando o processo criativo/adaptativo e o trabalho em equipe, como, por exemplo a técnica de Programação Extrema (XP) – em substituição aos processos clássicos de engenharia de software – para desenvolver software de maneira flexível, em casos em que o cliente apresenta requisitos vagos, imprecisos ou em constante mudança.

 

Engenharia reversa

Visa proporcionar a compreensão do todo, das suas aplicações para motivar o aluno a buscar o aprofundamento nos detalhes, abordando as propriedades, a origem dos fenômenos, métodos de fabricação e suas relações com as características dos sistemas e dispositivos estudados. Consiste em usar a criatividade para, a partir de uma solução pronta, retirar todos os possíveis conceitos novos ali empregados. É o processo de análise de um artefato (um aparelho, um componente elétrico, um programa de computador etc) e dos detalhes de seu funcionamento, geralmente com a intenção de construir um novo aparelho ou programa que faça a mesma coisa, sem realmente copiar alguma coisa do original.

 

Jogos de empresas

Os jogos de empresas são uma modalidade de simulação da realidade através de um modelo computacional, dinâmico, interativo que busca retratar alguns aspectos do ambiente empresarial focado em um determinado setor da economia e que proporcionam aprimoramento de habilidades técnicas individuais e das relações sociais entre as pessoas, não apenas simulando o funcionamento de uma empresa, mas a forma de gerenciamento interno e de relacionamento externo. Durante a aplicação do jogo, para atingir seus objetivos, os participantes passam por um processo de comunicação intra e intergrupal, em que é exigido de todos usarem habilidades como: ouvir, processar, entender e repassar informações; dar e receber feedback de forma efetiva; discordar com cortesia, respeitando o outro; adotar posturas de cooperação; ceder espaço aos colegas; mudar de opinião e tratar ideias conflitivas com flexibilidade.

Que caminho seguir?

Foram apresentadas aqui algumas das metodologias ativas mais promissoras para os cursos de engenharia e de ciências aplicadas. Mas, com tantas opções disponíveis até mesmo os professores mais experientes e adeptos dessas metodologias podem ficar em dúvida sobre o caminho a seguir e sobre qual delas adotar. Cada professor ou conjunto de professores deve avaliar o caminho que mais se adequa às suas condições e necessidades e fazer planejamentos de curto, médio e longo prazo com metas para cada etapa. O que se pode recomendar fortemente, é caminhar para o novo e jamais ficar parado ou acomodado na abordagem da educação tradicional.