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ComCiência

On-line version ISSN 1519-7654

ComCiência  no.109 Campinas  2009

 

ARTIGO

 

A vivência dos familiares de pacientes no processo de adoecer e morrer

 

 

Marcos Antonio Barg

 

 

Se quem chegou partiu
Se quem virá já foi
Só para quem fica
Os dias são todos iguais

Mil sonhos para enterrar
Corpo e alma vergam
Se os anos pesam demais
No coração

Marcus Viana

 

Todos nós passamos pelo ciclo do nascimento, vida e morte. As transformações que vivenciamos, no decorrer de nossa existência, são necessárias e envolvem mudanças que, se por um lado, são vividas como situações de crise, por outro, promovem a ampliação dos recursos internos para fazermos frente às novas demandas, permitindo, então, nos adaptarmos adequadamente às novas situações.

A esse processo de mudança e crescimento, incluímos a passagem da infância para a adolescência, a entrada na universidade, o ingresso na maturidade, com o casamento e o nascimento dos filhos, a terceira idade etc. São mudanças estruturantes, o que envolve deixarmos condições anteriores e aventurarmos em novos desafios, adquirirmos novas habilidades, etc. Essas mudanças, de certa forma, são esperadas e fazem parte de nossas expectativas sobre como o mundo deve ser, favorecendo a sensação de que vivemos em mundo seguro, onde podemos planejar nosso futuro e nada de ruim vai nos acontecer.

Entretanto, nem sempre as coisas acontecem como planejamos. Sabemos, hoje, que aquelas mudanças repentinas, inesperadas, cujas consequências podem se tornar permanentes e que afetam profundamente um grande número de crenças e concepções sobre como o mundo deveria ser, podem ter um impacto negativo na saúde mental dos indivíduos. Pesquisadores e estudiosos desse tema, ao definirem o conceito de transição psicossocial, apontam também para a questão da magnitude ou amplitude dessas mudanças, no sentido de que muitas áreas do funcionamento do indivíduo podem ficar afetadas.

As presenças de uma doença grave e a perda do ente querido podem ser consideradas, eventos dessa natureza, principalmente, quando surgem de forma dramática e inesperada, afetando profundamente a vida dos indivíduos. Em um curto espaço de tempo, o paciente e seus familiares são arremessados em um turbilhão de fatos, que começam com o início abrupto de uma cefaléia intensa acompanhada por alterações da fala e perda da consciência, a necessidade de ser levado com urgência a um pronto socorro, o som da sirene da ambulância, o temor pela vida da pessoa, etc. Nessa situação traumática, luta-se contra o tempo, enquanto paciente e familiares procuram entender o que está acontecendo. De repente, o mundo muda drasticamente, como se aquilo não estivesse acontecendo, produzindo uma sensação de irrealidade. Nesse momento, são comuns frases do tipo: "eu nunca imaginei que isso pudesse acontecer um dia", ou então, "a gente acha que essas coisas só acontecem com os outros", mostrando que ainda persiste um certo grau de resistência em lidar com mudanças.

Dependendo de um conjunto de condições, como a região do cérebro atingida, a extensão da lesão, o tipo do evento, a idade do paciente, condições de saúde/doença, os indivíduos poderão receber o diagnóstico de que se trata apenas de um evento transitório e devem seguir para uma investigação ambulatorial, ou então, de que se trata de um caso de maior gravidade, no qual o sujeito deverá ser internado e submetido a uma cirurgia de urgência de alto risco. Nesses casos, que necessitam de internação, o período de estresse para o paciente e familiares se prolonga. A preocupação volta-se, agora, para a imediata realização da cirurgia, o sucesso dos seus resultados, e a rápida recuperação do paciente.

O período em que os familiares passarão a comparecer ao hospital inaugura um novo tempo marcado pela ansiedade e pelo medo do futuro, pela discrepância entre o tempo da família e o tempo do hospital e, em um do futuro próximo, deverão aprender também a diferenciar a esperança da ilusão. As mudanças significativas nas rotinas e na dinâmica familiar podem ter um profundo impacto na vida de seus familiares e emerge da necessidade de se redistribuir responsabilidades e de refazer planos anteriormente estabelecidos, de assumir novos papéis, de considerar a importância das decisões a serem tomadas no presente e no futuro que envolve a manutenção e os cuidados com a vida do paciente. A ausência do ente querido nas atividades habituais do dia a dia, nas coisas que faziam juntos, aumenta a solidão e as vivências de múltiplas perdas.

A centralização de esforços voltados apenas para o tratamento da doença e os cuidados individuais com o paciente pode não reconhecer o processo de desequilíbrio que afeta também a família e o grupo social que o cerca. Relegada a um plano secundário, e sob o risco de seus membros serem considerados apenas como personagens subsidiários, ignoram-se as profundas experiências emocionais vividas pelos familiares no processo do adoecer do ente querido. Decisões unilaterais podem ser pouco aceitas, por não serem bem compreendidas, de modo que manter um contato mais próximo – marcado não apenas pelo conhecimento e questões técnicas, mas também pela empatia e compaixão –, convidando-os a participar de reuniões com a equipe médica e os profissionais de saúde, pode ser útil, pois esclarece dúvidas sobre o grau de consciência do paciente, se ele pode ouvir, quanto à interrupção de tratamentos inúteis, sobre ressucitação cardíaca, corrige distorções e fantasias, reduz o medo, etc. Nesses encontros, podem manifestar o que consideram mais adequado, não apenas para o paciente, mas para eles também, diminuindo a sensação de vulnerabilidade. Não podemos desconsiderar que, se essa mesma família tem o direito de decidir sobre a doação de órgãos, e quais órgãos serão doados, também deve ter o direito de ser ouvida em outras situações.

Em alguns casos, apesar da cirurgia e dos esforços despendidos por toda equipe multidisciplinar, o quadro pode se complicar e o paciente evoluir para uma condição denominada morte encefálica. Essa condição, avaliada através de exames e testes específicos – denominados protocolo de morte encefálica –, mostram que o cérebro já não apresenta mais condições de funcionamento que sustente a vida do sujeito. O organismo passa a depender de meios externos para evitar o colapso total. Isso implica na difícil tarefa do médico comunicar e explicar aos familiares que o fato do corpo estar funcionando não implica que o sujeito esteja vivendo, e que em breve nada mais poderá evitar a morte do paciente. Podem surgir dificuldades dos familiares em entender (aceitar) as explicações do médico sobre o diagnóstico de morte encefálica, apontando para a existência de um processo de negação (em parte, esperado nessas situações). Nesse momento, poderiam ser utilizados alguns elementos de cuidados paliativos, oferecendo a eles suporte emocional, com o objetivo de ampliar a percepção e aprofundar a consciência sobre o que está acontecendo, ajudando-os a desenvolver recursos internos para lidar com situações de perda e luto, tolerância à dor psíquica, a compreender que o seu ente querido está próximo do fim do seu ciclo vital. Essas informações podem desencadear nos familiares sentimentos de muita ambivalência – manter o doente ou deixá-lo ir, pensar no paciente como alguém que está vivendo ou se preparar para o desligamento – e desencadear reações de luto antecipatório, provocadas pela consciência de que a morte é inevitável. O luto antecipatório tem sido definido como o conjunto de reações de luto vivenciadas pelo paciente e familiares que ocorrem antes da perda real ou quando a morte é esperada. Apresenta algumas fases como: choque, negação, ambivalência, revolta, negociação, depressão, aceitação e adaptação.

O fato de o paciente se encontrar inconsciente (ou com a consciência rebaixada) impossibilita não só sua comunicação com o cônjuge e familiares, como eles ficam impedidos também de compartilhar a sua dor, expressar admiração, elaborar questões pendentes e mal resolvidas, se perdoarem mutuamente, conversando sobre coisas que foram importantes no relacionamento, enfim se despedirem. Nesse aspecto, o cônjuge e os familiares vivenciam o luto sem a participação do paciente. Sabemos, hoje, que nessa situação, propor algum ritual de despedida – a verbalização de sentimentos ou rituais religioso – pode ter um efeito terapêutico, ajudando-os a entrar em contato com a realidade da morte que se anuncia, a expressarem sentimentos de raiva, desespero, tristeza pela separação/morte. Compartilhar a experiência da perda pode contribuir para aproximar emocionalmente a família, além de ter um aspecto preventivo no luto pós-óbito, ajudando a aliviar sentimentos de culpa, possibilitando reorganizar objetivos de vida no pós-óbito, etc.

Pelo exposto até aqui, podemos chegar a algumas conclusões sobre a ocorrência de doenças que evoluem para óbito, como um acontecimento capaz de produzir profundas mudanças em nossas vidas, auxiliando-nos a desenvolver uma concepção de mundo mais realista, pela qual não somos imunes ou onipotentes como gostaríamos, já que é impossível uma existência sem dor, sem ter angústias, conflitos. A través do corpo, fica evidente a fragilidade humana, e a doença, mais que um dano à saúde, pode ter implicações mais amplas na vida das pessoas.

 

 

Marcos Antonio Barg é psicólogo do Departamento de Neurologia da Unicamp, mestre em psicologia clínica pela PUC de Campinas com especialização em psicologia hospitalar.