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ComCiência

On-line version ISSN 1519-7654

ComCiência  no.109 Campinas  2009

 

ARTIGO

 

Hipertensão arterial e AVC

 

 

Rubens José Gagliardi

 

 

O acidente vascular cerebral (AVC) é atualmente a principal causa de óbito no Brasil, bem como de sequelas incapacitantes em adultos. Tem fortíssimo impacto na população, devido a sua prevalência, morbidade e mortalidade. Acarreta também grandes gastos, tanto para o seu tratamento específico como para a reabilitação, ocasionando um ônus familiar e social elevados. Ao redor de 30% dos doentes que sofrem um AVC falecem no primeiro ano e 30% ficam com sequelas graves e/ou incapacitantes.

O principal fator de risco para o AVC é a hipertensão arterial, que, quando devidamente controlada, reduz significativamente as taxas de incidência dessa terrível doença. Apesar de todo avanço que se tem conseguido nos últimos anos referente ao tratamento do AVC, a sua prevenção é prioritária e, neste aspecto, o controle da pressão arterial (PA) tem papel eminente.

A hipertensão arterial (HA) é o principal fator de risco modificável para as doenças cerebrovasculares (DCV) principalmente para o AVC. Cerca de 80% dos AVCs estão relacionados à HA, que pode causar todos os diferentes tipos de AVC, como infarto, hemorragia, grandes AVCs ou lacunares e as demências vasculares. A detecção e controle da pressão arterial é um ponto básico e fundamental de qualquer programa de prevenção de AVC, devendo ser esse o maior foco.

Existe uma relação muito próxima entre DCV e HA: o cérebro, muitas vezes, é o causador da HA e ao mesmo tempo a principal vítima dessa doença. O cérebro é, em geral, o órgão que mais precocemente e mais intensamente sofre as conseqüências da HA. O comprometimento é precoce e progressivo; quanto maior o tempo de exposição à HA, maior o risco, e quanto maiores os índices da HA, igualmente maiores serão as complicações. Os estudos de Framingham comprovam esse risco progressivo. Uma constatação bastante interessante e ainda sem explicação adequada é que a HA normalmente é mais lesiva ao cérebro do que a outros órgãos. Vários estudos comprovam esse achado, como por exemplo, os resultados de Framingham que constataram que os hipertensos têm uma incidência duas vezes maior de infarto agudo do miocárdio e quatro vezes de acidente vascular cerebral, comparativamente aos normotensos 1.

Uma análise de R. Sacco, conceituado neuro-epidemiologista, mostra a relação entre os principais fatores de risco para AVC 2:

 

 

Peso

Risco relativo

Prevalência

hipertensão

++

3,0 a 5,0

25 a 40%

doença cardíaca

++

2,0 a 4,0

10 a 20%

fibrilação atrial

++

5,0 a 18,0

1 a 2 %

diabetes

+

1,5 a 3,0

4 a 8 %

tabagismo

+

1,5 a 2,0

20 a 40%

alcoolismo pesado

+/-

1,0 a 3,0

5 a 30%

dislipidemia

+/-

1,0 a 2,0

6 a 40%

estenose carotídea

+

1,0 a 2,0

1 a 5%

 

A aterosclerose carotídea, uma das principais causas de AVC e de DCV, também tem na HA o principal fator desencadeante. Mais de 30% dos indivíduos assintomáticos com placas ateroscleróticas nas artérias carótidas são hipertensos 3.

A HA pode comprometer todas as artérias cerebrais, como as de grande calibre (carótidas, cerebrais), as de médio calibre e as de fino calibre, como as artérias penetrantes. Pode também comprometer todas as estruturas que compõem as artérias, principalmente as camadas íntima e média. Nas artérias de grande calibre, o acometimento é predominantemente na camada íntima, provocando aterosclerose, e nas de pequeno calibre, a lesão se faz principalmente na camada média, ocasionando uma degeneração fibrinóide e lipohialinose 4. Tratam-se de variações histopatológicas de lesão arterial, e todas podem ser causas de AVC ou de outra forma de DCV, como, por exemplo, crise isquêmica transitória e demência.

Lembra-se que até mesmo a HA discreta ("borderline") traz risco ao tecido cerebral e à função neuronal, e deve ser cuidadosamente acompanhada e conduzida 1. É fundamental que todo médico esteja atento aos níveis pressóricos dos doentes, não se admitindo a sua falta de detecção e/ou a sua falta de controle adequado.

As principais complicações clínicas da HA são:

•  infarto cerebral

•  hemorragia cerebral

•  déficits cognitivos

O infarto cerebral (clássico AVCi) e as hemorragias cerebrais (os clássicos AVCh), são situações normalmente dramáticas, com alto índice de sequelas e de óbito. A figura 1 abaixo mostra um clássico infarto cerebral em paciente hipertenso, e a figura 2 mostra o comprometimento da artéria carótida, com placas ateroscleróticas, também devidas à mesma doença.

 

 

O AVC é a principal causa de sequelas em adultos e de morte, no Brasil 5. As alterações cognitivas são menos mencionadas, comparativamente aos AVCs, porém também são importantes complicações da HA. O "Flamingham Heart Study" correlacionou os piores resultados cognitivos com a persistência da HA; no "Honolulu Ásia Aging Study" (HASS), os doentes foram avaliados a cada cinco anos desde 1965; para cada 10 mmHg de aumento da HA houve aumento de 7% de perda cognitiva moderada e de 5% de perda cognitiva grave. No ensaio clínico "Atherosclerosis Risk in Communities" (ARIC), a presença de diabetes e HA foram importantes preditores de declínio cognitivo; no "Systolic Hypertension in Europe Sys-Eur", um estudo duplo cego placebo controlado, o tratamento da hipertensão sistólica em pessoas com mais de 60 anos mostrou redução na incidência de demência de 7,7 para 3,8 por 1000 pessoas/ano.

Tanto a HA sistólica (HAs) como a diastólica (HAd) são lesivas ao cérebro e ambas devem ser avaliadas e controladas. A HAs isolada, que não é um achado raro nos indivíduos idosos, traz risco da AVC e de DCV 6,7 e deve ser cuidadosamente manuseada. O tratamento da HAs isolada reduz todos os tipos de AVC 8. A HAs isolada casual é um preditor de AVC maior do que HAd. HAs isolada aumenta 2 a 4 vezes o risco de AVC 2. O estudo SHEP ("Prevention of Stroke by Antihyertensive Drug Treatment in Older Persons with Isolated Systolic Hypertension ") 9 mostrou que o controle da HAs reduz em 36% a incidência de AVC, 24% a incidência de crise isquêmica transitória e em 40% a mortalidade.

Apesar dos grandes riscos da HA, ela ainda não é devidamente encarada com a necessária seriedade (6,9). Acredita-se que apenas 53% dos hipertensos estão em tratamento, e destes, apenas 68,5% estão devidamente controlados 6,10. Há recentes estudos clínicos que demonstram que o controle da HA é eficaz em reduzir o risco de AVC e DCV. Várias análises longitudinais de comunidades provam, através de evidências, que o controle da PA é importante para reduzir AVC e deficits cognitivos. Collins e colaboradores demonstraram uma redução de 30 a 45% na incidência de AVC e de 45% na mortalidade 11; Gorellick constatou uma redução de 50% na incidência de AVC e uma economia de US$ 12,3 bilhões/ano 12; Isso e colaboradores: 75% na incidência de AVC (campanha de 1960 a 1987) 13; Arakawa e colaboradores constataram queda de 50% no ressangramento após hemorragia cerebral 7.

Com relação à redução do risco relativo de AVC e redução da pressão arterial, os estudos mostram que quando há uma redução de 2 mmHg, o risco relativo cai 4%; de 3 mmHg, o risco relativo cai 8%; e de 10 mmHg, o risco relativo chega a cair 33%. Trata-se de um benefício eficaz e efetivo até se chegar a níveis de 115 x 75 mmHg. Abaixo disso não há mais benefício 11,14,15.

Quanto aos resultados do controle da HA nos deficits cognitivos, os achados também são bastante animadores 13,14,15,16,17,18,19,20,21,22. Chui salienta que o controle da PA é fundamental para reduzir taxas de demência e perda cognitiva; Tzorio constata 13,9% na incidência de demência em populações sob controle da HA; Sacco, 25% na incidência de défict cognitivo; Di Bari, confirma esses resultados, mesmo em populações de idosos.

O estudo Scope 17 mostrou redução do declínio cognitivo com a queda da pressão arterial. O estudo Progress 18 mostrou 21% de redução do risco relativo nos hipertensos controlados. Em um braço do estudo Scope 19, composto por aproximadamente 250 pacientes, no qual foi analisada a relação déficit cognitivo e tratamento específico com antagonista do receptor da angiotensina versus outro grupo mantido com pressão arterial controlada sem esse tipo de fármaco. O seguimento mostrou que nos doentes do grupo tratado com o antagonista do receptor da angiotensina, houve melhora significativa da velocidade de cognição, da atenção e da memória episódica, três aspectos entre os que foram testados. Por que isso ocorreu, se nos dois grupos do estudo a pressão estava semelhante? Provavelmente o determinante não seria apenas o fator mecânico da hipertensão. Uma das propostas que os autores desse estudo fizeram é que a angiotensina II poderia inibir funções cerebrais colinérgicas, atividade que está diretamente relacionada com a cognição e demência. Sabe-se que os doentes com Alzheimer têm uma falha colinérgica muito significativa e a base do tratamento tem sido a tentativa de aumentar essa atividade. Hadjiev &Minerva 22, citam que a redução da PA abaixo de certo nível crítico, em pacientes idosos com hipertensão crônica, pode aumentar o risco de hipoperfusão cerebral e declínio cognitivo, particularmente nos casos com fatores de risco adicionais. Os mesmos autores defendem a necessidade de individualização da terapia. Os possíveis mecanismos desses efeitos ainda não estão esclarecidos.

A evolução da estenose carotídea também tem melhor comportamento em indivíduos com pressão arterial controlada 23. Os doentes com a pressão arterial controlada têm menor comprometimento das placas ateroscleróticas e maior taxa de regressão dessas placas e recuperação do grau de estenose, comparativamente aos doentes que não têm a sua PA controlada 20. Além do controle da PA, que é de fundamental importância, os antagonistas do receptor da angiotensina e os inibidores da enzima de conversão da angiotensina, têm importantes funções vaso-protetoras e anti-aterogênicas que auxiliam na prevenção e tratamento da doença aterosclerótica carotídea 19,21.

O controle da pressão arterial é um item fundamental e prioritário na prevenção primária ou secundária dos AVCs. Deve ser feito de modo exaustivo e contínuo, e, assim, estaremos oferecendo uma boa proteção aos nossos pacientes, frente a essa terrível doença que é o AVC. No Brasil, estima-se uma prevalência de HA em torno de 36% entre os diabéticos de 78% 24.

Esses dados analisados se referem aos principais efeitos que a HA pode causar no cérebro, visando fundamentalmente à prevenção das doenças cerebrovasculares. Não foram considerados os aspectos do tratamento da HA na fase aguda do AVC, que tem uma abordagem distinta 25 e muitas vezes diferente da proposta preventiva. Esse item deve ser estudado separadamente no manejo da fase aguda do AVC, que, nesta etapa, requer acompanhamento específico 25.

 

Referências bibliográficas

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23. Gagliardi, R.J.; Damiani, I.T.; Guedes, M.L.S. et al. "Spontaneous evolution of atherosclerosis of the carotid arteries in asymptomatic individuals, in São Paulo, Brazil ". Neurology, 1999; 58 (s2): A443.

24. www.datasus, 2006

25. Gagliardi, R.J.; Raffin, C.N.; Fabio, S.R.C. "Primeiro consenso brasileiro do tratamento da fase aguda do acidente vascular cerebral". Arquivos de Neuropsiquiatria, 2001; 59: 972-980.

 

 

Endereço do autor
Dr. Rubens José Gagliardi
Av. Angélica 916 Conj 305
CEP 01228-000 São Paulo-SP
Tel: 11 3825-0423 Fax: 11 3826-1288
E-mail: rubensjg@apm.org.br

 

 

Rubens José Gagliardi é professor titular de neurologia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, chefe da disciplina de neurologia da Santa Casa de São Paulo e vice-presidente da Academia Brasileira de Neurologia.