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ComCiência
On-line version ISSN 1519-7654
ComCiência no.106 Campinas 2009
ARTIGO
A tutela do direito à educação nas negociações internacionais
Nina Beatriz Stocco Ranieri
Desde a inclusão do ensino como item de serviços no Acordo Geral sobre Comércio e Serviços (Gats), da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1996, cerca de trinta países-membros decidiram participar das negociações, propondo liberalizar ao menos um setor de seu sistema educacional.
No âmbito do Gats, a palavra "serviços" abrange qualquer serviço, em qualquer setor, exceto aqueles subvencionados ou fornecidos pelo Estado e que, por esta razão, não são executados em bases comerciais nem de forma competitiva. O setor de serviços educacionais abrange educação primária, secundária, pós-secundária e educação de adultos, além de cursos profissionalizantes, inclusive na área de esportes.
A política de liberalização da OMC teve o objetivo de melhorar o acesso aos mercados mediante a expansão de compromissos e a superação de barreiras nacionais ao livre-comércio. No caso dos serviços educacionais, essas barreiras podem ser resultantes de subvenções públicas para o setor e da tributação sobre a remessa de lucros ou sobre a importação de material escolar. Podem, também, estar associadas à necessidade de vistos, reconhecimento e revalidação de diplomas, limitações à celebração de convênios, autorização para funcionamento das instituições de ensino, avaliação da qualidade dos cursos etc.
O subsetor de ensino superior é o que concentra as melhores oportunidades de comercialização de serviços, pois, além de não ser financiado ou subvencionado pela maioria dos estados, alcança, via de regra, as camadas economicamente mais favorecidas da população e atende às demandas de ensino continuado e ao aprimoramento profissional das corporações multinacionais.
Em síntese, tais propostas realçam o papel dos estados na oferta e financiamento da educação nacional bem como a importância da educação pública e dos seus reflexos no desenvolvimento de cada país. As propostas variam, em termos de abrangência, no que diz respeito ás áreas alcançadas. Na Austrália, além dos ensinos médio e superior, existem "outros serviços educacionais", ou seja, aqueles não definidos por nível de ensino e os que, tendo primeiro e segundo níveis, não têm classificação precisa. A educação na Nova Zelândia inclui cursos de treinamento de curta duração, de idiomas, cursos práticos de aperfeiçoamento e, genericamente, "outros serviços educacionais". Já nos Estados Unidos, há o ensino superior, inclusive o corporativo, a educação de adultos e o treinamento. Quanto ao Japão, é nítida a preocupação com a qualidade do ensino superior, tanto na importação quanto na exportação dos serviços.
Considerando as modalidades de fornecimento de serviços adotadas no Gats, é possível às instituições de ensino de diversos países-membros entre si oferecerem serviços educacionais por via eletrônica ou presencial, mantendo-se ou não sedes ou filiais no país receptor, e ainda por meio de convênios ou contratos de prestação de serviços. A novidade consiste no deslocamento da instituição em direção ao aluno, ao invés de o aluno dirigir-se à instituição, como tradicionalmente ocorre.
Na era da informação e do comércio internacional, o desenvolvimento do ensino, sob as mais variadas formas, potencializado pelo forte uso de computadores nas escolas e pelo e-leaning (ensino realizado através de meios eletrônicos), é tão inevitável quanto a mercantilização dos serviços educacionais o que já vem ocorrendo no sistema privado brasileiro. Não sendo possível ignorar essas circunstâncias, o ponto nuclear estaria no seguinte aspecto: a inserção do setor de serviços educacionais no Gats promove o direito fundamental à educação?
Alguns analistas dos efeitos do livre-comércio na garantia dos direitos humanos argumentam que esse fenômeno tende, geralmente, a promover esses direitos. Entendem que, no aparente confronto, as tensões são mais bem resolvidas por intervenções diretas do que pelo sacrifício das amplas vantagens do livre-comércio. Destacam, em apoio às suas teses, as melhoras dos índices de Desenvolvimento Humano e Econômico em países que praticam esse sistema de trocas comerciais.
A educação não está imune ao capital especulativo. Ela também foi alcançada pela nova economia organizada em tomo de redes que atuam por toda a parte e em todos os setores da vida social. Frutificar o investimento no setor educacional supõe, como nos demais, produtividade, competição e informação adequada sobre investimentos e planejamento de longo prazo.
Considerar a educação como mercadoria, contudo, pode ser danoso para o alcance dos objetivos educacionais do país, sob vários aspectos. Desvinculada a educação do dever de garantir a promoção do indivíduo e do desenvolvimento nacional, quais são os valores que a informam? Em que medida pode ser garantida, por seu intermédio, a identidade e a cultura nacional? Se no capitalismo contemporâneo o conhecimento e a inovação tecnológicos requerem competitividade e inserção global, como garantir esses fatores com a indiscriminada abertura do "mercado" do ensino superior? Quem produz e detém o conhecimento? Como serão distribuídos os seus benefícios?
A comercialização de serviços educacionais, sobretudo, tende a aprofundar as diferenças de oportunidades educacionais existentes no país, pelo critério econômico, acentuando problemas recorrentes da educação nacional, como equidade, qualidade e eficiência, e o chamado gap tecnológico.
Conclui-se, então, que a educação fica submetida ao investimento especulativo e aos interesses mercantis que orientam as iniciativas dos investidores. Ou seja, compromete-se a qualidade da educação (pautada pela relação custo/benefício), a segurança do aluno e dos profissionais de educação (considerando a possibilidade de se encerrarem as atividades da instituição de ensino, devido à falta de rentabilidade do capital) e das próprias instituições de ensino nacionais, diante da competitividade externa. Estes não são problemas triviais, tanto do ponto de vista do desenvolvimento, como do direito à educação e da proteção aos profissionais do setor.
A educação superior, em particular, não foi atribuída a nenhum dos entes federados como encargo específico. A União o faz em caráter supletivo; os estados, em caráter de liberalidade, uma vez que não são obrigados a fazê-lo, como ocorre em relação ao ensino-médio; os municípios, por sua vez, devem oferecer a educação fundamental e a infantil.
Em tese, todas as modalidades de ensino poderiam ser incluídas no âmbito das negociações da OMC, da básica à superior, da profissionalizante à educação de adultos, desde que atendidas as condições e os requisitos constitucionais para tanto o atendimento das normas gerais de educação, a autorização e a avaliação de qualidade pelo poder público (art. 209).
Da parte do Brasil, os âmbitos de eventuais negociações encontram-se limitados pelas obrigações que decorrem do dever do Estado para garantir o direito à educação, elencadas nos artigos referentes à proteção da cultura, ciência e tecnologia. E, ainda, pelos fins que orientam a organização econômica do Estado, que visam, em última análise, o interesse público e a satisfação das necessidades do povo. Todas essas disposições estão submetidas ao princípio fundamental do artigo 3a, que traça os objetivos da República. Estão igualmente limitadas pelos princípios que informam a ordem econômica, notadamente os da soberania nacional e da livre concorrência.
Em suma, a prevalência das normas constitucionais sobre os tratados garante que os serviços educacionais, que venham a ser oferecidos no Brasil, por meio de negociações na OMC ou no Mercosul, submetam-se à legislação interna e também à autorização e avaliação de qualidade pelo poder público; com a ressalva de que as suas regulamentações legal e administrativa estão sujeitas à alteração através de tratados.
No nível da legislação ordinária não há, a meu ver, barreiras significativas ou intransponíveis à liberalização dos serviços, excluídas as resultantes das normas e princípios educacionais constitucionais, principalmente se considerarmos o amplo espaço conferido ao governo federal para regulamentar a matéria.
A garantia do direito fundamental à educação, nesse quadro normativo, está, justamente, na efetividade das normas e princípios constitucionais.
Dentre esses, assume especial relevância, para os fins aqui propostos, o princípio da garantia de padrão de qualidade (art. 206, VII), fundamento da intervenção do Estado na atividade educacional, pública e privada, baseada no controle.
A intervenção mediante controle é favorecida pela Lei 9.394/96 e, em minha opinião, compatibiliza os princípios educacionais aos princípios da ordem econômica expressos na Constituição Federal.
Com efeito, como regra geral, a livre iniciativa na ordem econômica é precedida de autorização nos casos previstos em lei (parágrafo único do art 170). A atividade econômica educacional, realizada por instituições privadas, mereceu tratamento diferenciado: o art 209, além de reforçar a necessidade de autorização, impõe-lhe outros requisitos e condições: a) o cumprimento das normas gerais da educação nacional; b) a autorização; e c) a avaliação de qualidade pelo poder público (incisos I e II). Repita-se que qualquer instituição de ensino que venha a oferecer serviços educacionais no país deverá submeter-se a esses requisitos e condições, independentemente do nível de ensino em que venha atuar e sob quais formas de prestação de serviços.
O problema está no fato de serem vagas as determinações legais relativas à autorização e controle, permitindo a proliferação ilimitada de normas regulamentares fluidas e voláteis, muitas vezes de conteúdo exorbitante em relação à norma legal. Este mecanismo não tem favorecido o controle de qualidade. Pelo contrário, enseja questionamentos acerca da legalidade e legitimidade do controle que exercem. Isso não só o enfraquece como provoca um alto grau de incerteza relativa aos referenciais legal e administrativo inseridos no sistema jurídico. O procedimento desencadeia táticas defensivas por parte dos grupos afetados e tende a relativizar o direito em sua generalidade abstrata.
O ensino é um bem intangível, heterogêneo, de conceituação díspar nas diversas culturas e, por isso, de difícil negociação e avaliação. Basta analisar o conteúdo das propostas de início referidas e a própria definição dos serviços educacionais empregada pela OMC, nos quais se incluem os relativos à prática de esportes.
A autorização e a avaliação de qualidade, sob este aspecto, também assumem relevância frente à garantia da defesa do consumidor, princípio informador da ordem econômica (art 170, V), beneficiando-se da sua categorização como serviço.
A Lei de Diretrizes e Bases especifica a formulação constitucional, distinguindo, claramente, dentre as instituições privadas de ensino (art 20), aquelas que visam apenas o oferecimento dos serviços (as particulares, em sentido estrito), as que têm representantes da comunidade na mantenedora (comunitárias), as que atendem orientações confessional e ideológica específicas (confessionais) e as filantrópicas.
Com efeito, a informação adequada e clara sobre os serviços, a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos são direitos básicos do consumidor (art. 6a). E, também, do aluno de ensino superior, por determinação específica do artigo 47, § 1º, da Lei de Diretrizes e Bases, que exige que as instituições de ensino, antes de cada período letivo, informem aos interessados: os programas dos cursos e demais componentes curriculares; bem como a duração; os requisitos; a qualificação dos professores; os recursos disponíveis; e critérios de avaliação, obrigando-se a cumprir as respectivas condições.
Para ter garantia diante dos serviços educacionais, poderá o consumidor valer-se de ações judiciais individualmente propostas e, também, de ações coletivas, visando proteger interesses ou direitos difusos e coletivos, ditos transindividuais, de natureza indivisível, dependendo dos requisitos e condições expressos no artigo 81, I e II.
Ainda nesse quadro, sobreleva notar a categoria dos interesses ou direitos individuais homogêneos, decorrentes de origem comum, que se beneficiam da ação civil coletiva de responsabilidade pelos danos individualmente sofridos, conforme previsto no artigo 91 do Código de Defesa do Consumidor. A ação pode ser proposta em nome próprio ou no interesse das vítimas e seus sucessores atingidos pelo serviço, como prefigurado na hipótese do artigo 17, supramencionado.
A defesa do consumidor não é incompatível com a livre iniciativa e o crescimento econômico, dizem a Lei e a Constituição Federal. O que não isenta o Estado, absolutamente, de garantir a qualidade, até porque este não pode, mesmo na figura do juiz, interferir na estrutura dos contratos a ponto de alterar o regime de obrigações estabelecido pelas partes em razão da necessária harmonização de interesses, como assinalado.
A tutela do direito à educação pela via judicial, em situações de omissão, incapacidade ou negligência do Estado na aferição da qualidade de ensino, também pode ser feita por meio dos chamados direitos instrumentais para a garantia dos direitos sociais.
Em síntese, são amplas as possibilidades de defesa do consumidor em juízo, unto em face do prestador quanto do próprio Estado.
O conhecimento é e sempre foi universal. A internacionalização é, simultaneamente, causa e efeito dessa condição e bem assim o exercício remunerado da atividade intelectual na área da educação. No final do século XX, na medida em que a educação encontrou novas formas de expressão e expansão, próprias da globalização econômica e inerentes à era da informação, o dever do Estado e a tutela do direito à educação assumiram novas feições.
Considerando que os processos de liberalização comercial têm, geralmente, aprofundado os desequilíbrios regionais, cumpre garantir nas negociações a distribuição dos seus benefícios e a divisão das responsabilidades sociais para a proteção e promoção dos direitos humanos. Este é um dever indeclinável do Estado. Sob esse aspecto, não é relevante o fato de haver ou não, no Brasil, outorga legal de mandato negociador aos membros do poder executivo, visando orientá-los na celebração de acordos internacionais na área do comércio.
Considerando-se, ainda, que o dever do Estado, no campo da educação, concretiza-se por intermédio de obrigações de comportamento e que das negociações excluem-se a educação financiada ou subvencionada pelo Estado, centra-se esse dever em garantir a qualidade dos demais serviços educacionais que venham a ser comercializados no país. A essas obrigações, de extração constitucional, deverá ser atribuído o sentido que mais eficácia lhes der, com o objetivo de garantir a efetividade das normas constitucionais e legais de proteção ao direito à educação e ao consumidor de serviços educacionais.
Essas são as garantias dos brasileiros e estrangeiros residentes no país e os limites constitucionais do negociador.
Negociações internacionais de serviços educacionais, na OMC ou no Mercosul, não são, necessariamente, inconciliáveis com o direito à educação, tomado em seu sentido mais amplo. Tudo depende da forma como serão liberalizados. Além disso, o ensino é um bem intangível, heterogêneo, de conceituação diferente nas diversas culturas e nos diferentes países sendo, por esse motivo, de difícil negociação, avaliação e controle.
Notas
O presente artigo tem base no artigo publicado no livro Estudos em homenagem professora Ada Pellegrini Grinover organizado por Flávio Luiz Yarshel e Maurício Zanoide de Moraes, em único volume. A obra reúne estudos dos nomes mais expressivos do direito e aborda questões atuais relativas ao direito do consumidor, direito administrativo, direito processual penal, direito internacional, direito processual civil, entre outros temas de grande relevância para o direito.
Nina Beatriz Stocco Ranieri é professora doutora do Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e secretária adjunta da Secretaria de Ensino Superior do Estado de São Paulo.