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ComCiência
On-line version ISSN 1519-7654
ComCiência no.106 Campinas 2009
REPORTAGEM
Saúde como direito humano
Ana Paula Morales
Saúde é o completo bem-estar físico, social e mental, segundo definição da Organização Mundial de Saúde (OMS, 1994). O direito de todos a desfrutar o mais alto padrão atingível de saúde física e mental, ou seja, o direito à saúde, foi reconhecido primeiramente pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, há sessenta anos. Para que os diversos fatores determinantes de uma saúde de qualidade, como cuidados médicos, saneamento básico, educação e informação sejam acessíveis a todos de uma maneira igualitária, é necessário um sistema público de saúde eficiente. No entanto, apesar de tratados e documentos internacionais reforçarem esse direito humano, o acesso à saúde de qualidade ainda está longe de ser uma realidade para uma grande parcela da população mundial. E, entre as diversas barreiras existentes, o acesso a medicamentos se configura como uma das principais delas.
A Declaração fornece a base para o código internacional dos direitos humanos, que consiste em um conjunto de normas acordadas internacionalmente para orientar e avaliar o comportamento dos governos em uma ampla gama de setores e tem uma relação direta com a medicina, saúde pública, bem como com o fortalecimento dos sistemas de saúde. No entanto, de acordo com documento publicado pela OMS, em 2007, os sistemas de saúde de muitos países são débeis e estão entrando em colapso. Apesar de ser uma exigência do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Organizações das Nações Unidas (ONU), apenas 57 países apresentam um plano de saúde nacional. Segundo a OMS, o desenvolvimento sustentável, incluindo o alcance das Metas de Desenvolvimento do Milênio, da ONU, depende de sistemas de saúde eficientes.
Em entrevista à ComCiência, Rajat Khosla, pesquisador sênior na Unidade sobre Direito à Saúde do Centro de Direitos Humanos da Universidade de Essex, analisa que "a saúde simplesmente não é prioridade política central para vários países. Países priorizam entre várias demandas competidoras pelos seus recursos disponíveis e tais processos de prioritização raramente dão atenção às preocupações da população sobre a saúde". Khosla é advogado em direitos humanos e autor de diversos trabalhos sobre a problemática dos direitos econômicos, sociais e culturais. Dentro da área do direito à saúde, dedica-se a pensar e pesquisar sobre o tema do acesso a medicamentos, entre outros.
No Brasil, o direito à saúde foi reconhecido apenas na Constituição Federal de 1988. Antes disso, o Estado apenas oferecia atendimento à saúde para trabalhadores com carteira assinada e suas famílias, e as demais pessoas tinham acesso a esses serviços como um favor e não como um direito. O artigo 196 de nossa Constituição em vigor preceitua que: " a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo, mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos, o acesso universal igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação". A criação do Sistema Único de Saúde (SUS), regulamentado pelas Leis 8.080/90 e 8.142/90, está diretamente relacionada à tomada de responsabilidade por parte do Estado no campo da saúde. Nesse contexto, o direito à saúde é parte de um conjunto de direitos chamados de direitos sociais, que têm como inspiração a igualdade entre as pessoas.
Direito à remédio!
"Um sistema de saúde é um investimento não menos importante que rodovias e pontes. Saúde é riqueza", afirma Paul Hunt, ex-relator especial das Organizações das Nações Unidas (ONU) para o Direito à Saúde. O tratamento médico, em caso de doença, bem como a prevenção, tratamento e controle de enfermidades são atributos centrais do direito à saúde. No entanto, os atributos mencionados dependem do acesso a medicamentos. Resoluções da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas confirmam que o acesso a medicamentos essenciais é um elemento fundamental do direito à saúde e está intimamente relacionado aos outros direitos, tais como o direito à vida. Para Hunt, "melhorar o acesso aos medicamentos é uma responsabilidade partilhada. Os governos devem desempenhar o seu papel; e as empresas devem desempenhar os seus, também".
Ano passado, Hunt apresentou à Assembléia Geral da ONU o documento "Orientações de direitos humanos para as empresas farmacêuticas em relação ao acesso a medicamentos". Essas orientações estabelecem diversas ações de uma companhia farmacêutica, para garantir o direito aos medicamentos. O documento foi baseado na ideia de que uma empresa farmacêutica, que possui uma patente, tem um contrato social que permite que a empresa obtenha lucro, desde que medicamentos relevantes sejam acessíveis para o máximo de pessoas possível. "As companhias devem ser ousadas e criativas e pôr em prática acordos licenças voluntárias comerciais e não-comerciais, programas de doação, preços diferenciais entre países e dentro deles, e assim por diante que tornam a droga acessível ao maior número possível de pessoas", explica Hunt.
O modelo atual de patentes originou-se no Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Trips, sigla em inglês), de 1994, que se tornou uma condição para a entrada dos Estados na Organização Mundial do Comércio (OMC). Com o Trips, estabeleceu-se a obrigatoriedade de reconhecimento da propriedade intelectual para todos os campos tecnológicos, incluindo o setor farmacêutico. Para Hunt, o alto custo para o desenvolvimento e aperfeiçoamento de novos medicamentos não permite que a inovação farmacêutica seja sustentável em um sistema de livre mercado, já que a competição entre fabricantes logo baixaria o preço de um medicamento novo e a empresa inovadora nem chegaria perto de recuperar seu investimento em pesquisa e desenvolvimento (P&D). No entanto, o resultado dos monopólios formados pelas patentes é um preço de venda artificialmente aumentado que possibilita que essas empresas inovadoras recuperem seus gastos de P&D, mas que mantém os medicamentos avançados fora do alcance de pacientes pobres. Além disso, as pesquisas geralmente são voltadas para doenças que atingem países mais ricos, negligenciando doenças concentradas nas populações maiores e mais pobres.
Em um capítulo do livro Exploitation and developing countries: the ethics of clinical research, Thomas Pogge, professor de filosofia e assuntos internacionais na Universidade de Yale, sugere uma nova estratégia que, em sua avaliação, supriria as falhas da política atual de patentes: a criação de um Fundo de Impacto sobre a Saúde Global (Health Impact Fund), que daria àqueles que detêm a patente dos medicamentos a opção de oferecê-los a preço de custo, em troca de uma recompensa monetária anual baseada no impacto desses medicamentos na saúde global. Assim, de acordo com o mecanismo proposto, todos os esforços que obtivessem sucesso no desenvolvimento de medicamentos considerados essenciais, ou seja, que tratam de doenças que colocam em risco a vida humana, seriam considerados como bens públicos e poderiam ser usados por diferentes indústrias farmacêuticas, sem cobrança. Um desafio, como coloca Pogge, seria criar um mecanismo justo para avaliar o impacto dos novos medicamentos, que levasse em conta os pesos dos diferentes remédios que combatem uma mesma doença, bem como os diversos medicamentos que compõem os coquetéis, como no caso da Aids.
O Acordo Trips, no entanto, inclui algumas flexibilidades ou salvaguardas que visam abrandar os impactos negativos na saúde pública. Essas flexibilidades permitem que os países membros possam adotar medidas necessárias para proteger a saúde pública e para promover o interesse público em setores de importância vital para seu desenvolvimento econômico e tecnológico (Artigo 8). O direito de utilizar as flexibilidades do Trips já foi reforçado inúmeras vezes em âmbito internacional, sendo inúmeras as resoluções adotadas pela ONU, OMS e pela própria OMC, sendo a mais importante a Declaração de Doha sobre o Acordo Trips e saúde pública de 2003.
Aids
Uma das flexibilidades previstas no Acordo Trips é a licença compulsória, através da qual o governo autoriza um terceiro a explorar o objeto da patente sem o consentimento prévio do detentor da mesma. A licença compulsória do medicamento Efavirenz, emitida em maio de 2007, foi a primeira e única medida desse tipo adotada no Brasil. A patente desse medicamento, utilizado no tratamento da Aids, pertence ao laboratório Merck Sharp & Dohme e representava ao Brasil, na época, um gasto total de R$ 85 milhões ao ano 10% do orçamento total do Ministério da Saúde para compra de medicamentos anti-retrovirais (ARVs). O Brasil passou a comprar uma versão genérica do medicamento produzida pelo laboratório indiano Ranbaxy e, apenas em 2008, a economia financeira ultrapassou R$ 60 milhões. Em 26 de janeiro de 2009, foi anunciada a autorização pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para a produção da versão genérica brasileira, que será inicialmente produzida pelo laboratório público Farmanguinhos, da Fiocruz. Segundo dados do Programa Nacional DST/Aids, é estimada uma economia financeira de mais de R$ 500 milhões até 2012, ano em que a patente do Efavirenz expira no Brasil.
O Programa Nacional de Aids foi criado em 1986 e o Brasil é um dos poucos países do mundo que mantém uma política de acesso universal e gratuito para tratamento da Aids. O primeiro medicamento aprovado para o tratamento da Aids, em 1987, foi a Zidovudina (AZT) e a sua disponibilização pelo Ministério da Saúde foi efetivada em 1991. No entanto, o ritmo de surgimento de novos produtos e a necessidade de novos tratamentos para indivíduos já intolerantes aos existentes não era acompanhado pela incorporação de novos medicamentos no âmbito de sistema público de saúde. Dessa forma, a viabilização do acesso aos medicamentos foi conseguida por vários pacientes por vias judiciais, o que levou à aprovação da Lei 9.313 em 1996. Esta Lei fortalecia a garantia legal de acesso a medicamentos ARVs, que começaram a ser produzidos no Brasil no início da década de 1990. No entanto, também em 1996 foi aprovada no país a nova Lei de Propriedade Industrial (Lei 9.279/ 96), que buscava adequar-se às regras de direito internacional estabelecidas pelo Acordo Trips da OMC. Assim, a política de acesso universal a medicamentos foi abalada, devido ao aumento no custo de medicamentos sujeitos à proteção patentearia.
"Os ganhos para o Brasil, e para o fortalecimento da política nacional de acesso a medicamentos, com a licença compulsória do Efavirenz, vão muito além da economia de recursos, uma vez que a produção nacional de medicamentos estratégicos ampliará a credibilidade do governo para negociar preços de outros medicamentos e estimulará o fortalecimento da indústria nacional e a transferência de tecnologia", avalia Marcela Fogaça Vieira, advogada do Programa de Justiça da Conectas Direitos Humanos. "Não se pode negar que o objetivo fundamental de nossas lutas é a garantia do acesso a medicamentos às pessoas que deles necessitam", complementa. A possibilidade de emissão de licença compulsória para outros medicamentos, tanto ARVs como medicamentos de alto custo utilizados no tratamento de outras doenças, foi sinalizada pelo presidente Lula no discurso feito durante o ato de emissão da licença compulsória do Efavirenz.
As possíveis dificuldades apontadas, mediante tal postura do governo brasileiro, são pressões e má vontade por parte da indústria farmacêutica nacional e dos países nos quais tais companhias são politicamente poderosas. Para Pogge, "é improvável que a ação do Brasil, por si só, faça muita diferença na vontade da indústria farmacêutica de empreender pesquisas sobre Aids; mas se a licença compulsória se tornar comum, isso enfraqueceria iniciativas de P&D".
"Vontade política"
Para que um medicamento seja aprovado, e a indústria farmacêutica passe a comercializá-lo, é necessário comprovar a sua eficiência no tratamento da doença em questão, por meio de estudos clínicos. Essas pesquisas realizadas com seres humanos são, na grande maioria dos casos, patrocinadas pelas próprias indústrias farmacêuticas. Questões éticas intimamente relacionadas com os direitos humanos são constantemente levantadas na análise desses protocolos de pesquisa clínica, principalmente no que toca à população que será objeto de estudo e o tipo de tratamento que os grupos envolvidos na pesquisa receberão.
Diversos avanços já foram alcançados na defesa dos direitos humanos em relação às pesquisas clínicas. A Associação Médica Mundial desenvolveu a Declaração de Helsinque como uma declaração de princípios éticos para fornecer orientações aos médicos e outros participantes em pesquisas clínicas envolvendo seres humanos. Segundo a declaração, o placebo só pode ser usado como controle em pesquisas onde não existe nenhum método profilático, diagnóstico ou terapêutico comprovado para a doença. Caso contrário, os resultados das pesquisas com o novo remédio devem ser comparados com os resultados do melhor método de tratamento comprovado até o momento.
Esse tipo de medida evita que países pobres ou em desenvolvimento, que não têm acesso a determinados tratamentos já disponíveis, sejam explorados. Apesar de não se tratar da visão dominante, alguns ainda "acreditam que estudos com placebo como controle são permissíveis em países pobres com pacientes que, na ausência do estudo, permaneceriam sem tratamento", afirma Pogge. Em um caso recente, a empresa D-Lab faria os testes do seu medicamento Surfaxin com crianças bolivianas portadoras da Síndrome do Desconforto Respiratório Agudo (ARDS) usando o placebo como controle, ou seja, deixando parte das crianças do estudo sem tratamento algum enquanto outras receberiam o seu medicamento. Quando pressionada para alterar o protocolo da pesquisa e passar a tratar o grupo controle de crianças com os medicamentos atualmente em uso, a empresa mudou a sua pesquisa para os Estados Unidos.
Para José Araújo, membro e representante do usuário na pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), a vontade política é determinante para que países mais pobres não sejam explorados. "Lamentavelmente, em alguns países do mundo, a carência é tão grande que se aceita qualquer coisa", diz. No Brasil, para que pesquisas clínicas de empresas farmacêuticas multinacionais sejam realizadas devem ser aprovadas pelo Conep. O processo ético para aprovação desse tipo de pesquisa no Brasil é bastante rigoroso e reconhecido internacionalmente. A Resolução 196 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que aponta as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos, e as resoluções complementares, permeiam os conteúdos da Declaração de Helsinque, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e até mesmo do Direito do Consumidor. "A única preocupação é o retrocesso que a declaração de Helsinque sofreu com a última revisão, do ano passado", diz Araújo. Para ele, na revisão o placebo não é tão condenado como deveria ser. Outro ponto importante e que deve constar no protocolo da pesquisa para que esta seja aprovada no Brasil é a continuidade do tratamento dos indivíduos que participam do estudo clínico, mesmo após o término do estudo.
Consentimento informado
"O respeito devido à dignidade humana exige que toda pesquisa se processe após consentimento livre e esclarecido dos sujeitos, indivíduos ou grupos que, por si e/ou por seus representantes legais, manifestem a sua anuência à participação na pesquisa". Esta afirmação, retirada da Resolução 196 do CNS, define o termo de consentimento como obrigatório para qualquer pesquisa que envolva seres humanos. "A exigência do consentimento informado é geralmente benéfico para os participantes dos ensaios clínicos, desde que eles realmente recebam informações completas sobre os riscos e benefícios de sua participação", ressalta Pogge.
Segundo Araújo, o termo é cuidadosamente analisado durante o processo de aprovação do protocolo de pesquisa, e a sua forma ou tipo de linguagem deve estar de acordo com o grupo que será estudado. No entanto, o termo muitas vezes confunde o usuário. "Estão usando a própria Resolução 196, que exige clareza, para confundir. Não sei se é intencional ou incompetência de quem redige o termo de consentimento", afirma Araújo. Muitas vezes os termos apresentam muitas páginas, quando poderiam ser bem mais resumidos, induzindo o paciente a ir direto para a página de assinatura. Ou ainda, alguns termos são traduções literais dos utilizados em outros países e não estão adaptados para o público que será objeto de estudo.
Em artigo publicado na Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões em 2007, Maria de Lourdes Pessole Biondo-Simões e colaboradores buscaram reconhecer o grau de entendimento sobre o termo de consentimento de indivíduos que participam de uma pesquisa ou de um tratamento. O trabalho explicita a dificuldade de entendimento que grande parte dos pacientes apresenta, mediante um termo de consentimento classificado como muito fácil e elaborado com linguagem clara e acessível para o estudo.
Leia mais
Acesso a medicamentos como um direito humano
Paul Hunt e Rajat Khosla
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1806-64452008000100006&script=sci_arttext
Para trabalhos de Paul Hunt como relator da ONU
http://www2.essex.ac.uk/human_rights_centre/rth/
Responsabilidade de direitos humanos de assistências internacionais e cooperação em saúde
http://www2.essex.ac.uk/human_rights_centre/rth/docs/Sida.doc
http://www2.essex.ac.uk/human_rights_centre/rth/docs/Final%20pdf%20for%20website.pdf
Human rights guidelines for pharmaceutical companies in relation to access to medicines. These guidelines
http://www2.essex.ac.uk/human_rights_centre/rth/reports.shtm
Health systems and the right to health: an assessment of 194 countries. Revista Lancet, dez 2008.
http://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(08)61781-X/fulltext
Compreensão do termo de consentimento informado
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-69912007000300009