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ComCiência
On-line version ISSN 1519-7654
ComCiência no.105 Campinas 2009
ARTIGO
Os cerrados e o fogo
Vânia R. Pivello
Assim como em todas as savanas tropicais, o fogo tem sido um importante fator ambiental nos cerrados brasileiros desde há muitos milênios e tem, portanto, atuado na evolução dos seres vivos desses ecossistemas, selecionando plantas e animais com características que os protejam das rápidas queimadas que lá ocorrem. Nas plantas, uma dessas características que talvez mais nos chame a atenção é a cortiça grossa das árvores e arbustos (lenhosas), que age como isolante térmico durante a passagem do fogo. Entretanto, um observador mais atento irá notar diversas outras respostas da vegetação ao fogo, como a floração intensa do estrato herbáceo e a rápida rebrota das plantas, dias após a queima, a abertura sincronizada de frutos e intensa dispersão de suas sementes, a germinação das sementes de espécies que são estimuladas pelo fogo. Ainda, o fogo promove todo um processo de reciclagem da matéria orgânica que, ao ser queimada, transforma-se em cinzas, que se depositam sobre o solo e, com as chuvas, têm seus elementos químicos solubilizados e disponibilizados como nutrientes às raízes das plantas.
Sendo assim, ao contrário do que muitos pensam, o fogo de intensidade baixa ou moderada não mata a grande maioria das plantas do Cerrado, que são adaptadas a esse fator ecológico. Pelo contrário, para muitas espécies, principalmente as herbáceas, o fogo é benéfico e estimula ou facilita diversas etapas de seu ciclo de vida, como mencionamos acima.
Também os animais do Cerrado estão adaptados para enfrentar as queimadas: dentre os vertebrados, muitos se refugiam em tocas ou buracos e ficam protegidos das altas temperaturas, pois, a poucos centímetros de profundidade, o solo nem chega a esquentar, devido à rapidez com que o fogo percorre os cerrados.
Mas por que as savanas e dentre elas, também os cerrados pegam fogo?
A distribuição esparsa das árvores e dos elementos lenhosos, que caracteriza as savanas, permite a chegada de insolação no nível do solo e promove o desenvolvimento de farto estrato herbáceo, formando um "tapete" graminoso. Devido ao seu ciclo de vida, essas gramíneas têm suas folhas e partes florais dessecadas na época seca que, na região dos cerrados, geralmente vai de maio a setembro. Esse material fino e seco passa a constituir um combustível altamente inflamável. Raios e também chamas e faíscas provenientes de ações do homem (queima de restos agrícolas, fogueiras, etc) podem iniciar a combustão da vegetação e, a partir de então, o fogo se propaga rapidamente.
As queimadas causadas por raios, ditas "naturais", geralmente ocorrem em setembro, sendo esse o mês que marca o início da estação chuvosa na região dos cerrados. É quando ocorrem chuvas fortes, com muitos raios, e também quando a biomassa herbácea está no auge do dessecamento, tendo suas folhas e ramos se transformado em material facilmente inflamável. As queimadas causadas pelo homem (antropogênicas) geralmente são acidentais, mas também podem ser intencionais. Em comparação com as queimadas naturais, as antropogênicas costumam ser antecipadas para julho ou agosto, pois é quando a maior parte dos agricultores queima os restos da colheita e prepara suas terras para novos plantios, causando o "escape" do fogo, ou quando os pecuaristas deliberadamente queimam o pasto nativo para promover o rebrotamento das gramíneas dessecadas e, assim, fornecer folhas frescas ao gado nessa época de escassez.
O fogo como instrumento de manejo
Em épocas remotas, antes do surgimento do homem, as queimadas em ambientes savânicos eram causadas basicamente por raios. Com o domínio do uso do fogo e o grande crescimento de suas populações, o homem passou a aumentar muito a frequência das queimadas nesses ambientes, além de alterar a época de ocorrência das queimadas naturais.
As informações disponíveis revelam que o uso do fogo era muito difundido entre todos os grupos indígenas que habitavam os cerrados. Por meio do fogo, eles manipulavam o ambiente e se beneficiavam de diversas maneiras: estimulavam a floração e a frutificação de plantas que lhes eram úteis, atraíam e caçavam animais que vinham comer a rebrota do estrato herbáceo, espantavam animais indesejáveis como cobras , livravam-se de algumas pestes (insetos, ácaros), "limpavam" áreas para instalar suas vilas e seus cultivos, além de se utilizarem do fogo para sinalização e em rituais religiosos.
Os indígenas tinham grande conhecimento dos efeitos que queimadas em diferentes épocas do ano, ou de diferentes intensidades, ou ainda em diferentes frequências anuais, podiam ter sobre cada grupo de plantas ou de animais. Por exemplo, sabiam que, se queimassem o Cerrado todos os anos, poderiam prejudicar espécies arbóreas, matando os indivíduos jovens, mas que, ao queimar a cada 2-3 anos, estimulavam a frutificação das arbóreas e davam tempo aos jovens para que desenvolvessem mecanismos de defesa contra o fogo (como cortiça grossa); geralmente queimavam o Cerrado na época seca, logo após o pequizeiro (Caryocar brasiliense) lançar seus brotos (agosto/setembro), a fim de não danificar sua floração e a produção de frutos, que se iniciam em outubro, após a primeiras chuvas de verão. A forma de precisar a época mais adequada para queimar era por meio de algumas espécies indicadoras (aquelas de seu interesse), como o pequi, cujo fruto era muito utilizado como alimento e recurso medicinal. Numa escala temporal mais refinada, também se guiavam pela formação de nuvens, pelo nível dos rios, ou pelo comportamento de alguns animais para saber quando melhor aproveitar os efeitos do fogo. Em geral, queimavam pequenas áreas, ou áreas maiores num sistema de mosaico, intercalando locais queimados com não-queimados, que serviam de refúgio à fauna e às espécies de plantas mais sensíveis ao fogo.
Parte desse conhecimento foi transmitida aos agricultores e pecuaristas, porém, ao contrário dos indígenas, seu estilo de vida sedentário não lhes permitia manter o sistema de queima em mosaico, nem esperar alguns anos para voltar a queimar o mesmo local, pois necessitavam maximizar, temporal e espacialmente, os benefícios do fogo. Disso resultou um aumento na frequência e na extensão das áreas queimadas, ocasionando, muitas vezes, a degradação do ambiente, em termos de esgotamento das terras, erosão, exclusão do estrato arbóreo, extermínio de espécies nativas, infestação por espécies ruderais, dentre outros.
Contudo, o mau uso do fogo não anula os benefícios que seu bom uso possa trazer. Nas savanas, o fogo é um instrumento de manejo precioso, que pode levar a uma grande gama de resultados ecológicos, em médio prazo. Lidando com os elementos que compõem o regime de uma queimada frequência, intensidade e época da queima se pode aumentar ou diminuir a produção de folhas e frutos, estimular ou excluir determinadas espécies de plantas e animais, aumentar ou diminuir os nutrientes disponíveis às plantas no solo, ralear ou adensar a vegetação arbórea. Assim, o uso adequado e planejado do fogo pode ser uma estratégia de manejo boa e barata para a manutenção de pastagens naturais e também de parques nacionais e reservas biológicas que se destinam à proteção dos ecossistemas do Cerrado.
A aversão ao fogo que hoje se vê nos órgãos ambientais e na mídia provém de informações equivocadas, que confundem conceitos válidos para as florestas tropicais com o funcionamento e a dinâmica do Cerrado, coisas completamente distintas. É uma pena, pois uma boa compreensão do papel do fogo e de seus efeitos nos ecossistemas de Cerrado, adquirida por meio da combinação de conhecimentos técnico-científicos gerados por pesquisadores e do conhecimento empírico acumulado pelos habitantes do Cerrado, possibilitaria a aplicação adequada dessa ferramenta, com bons resultados para a solução de diversos problemas que hoje atingem os cerrados naturais e semi-naturais.
Leia mais:
Pivello, V.R. 2006. "Fire management for biological conservation in the Brazilian Cerrado". In: Mistry, J. & Berardi, A. (eds.) Savanas and d ry forests - linking p eople with nature. Ashgate, Hants. pp. 129-154.
Vânia R. Pivello é professora do Departamento de Ecologia, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo