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ComCiência
On-line version ISSN 1519-7654
ComCiência no.104 Campinas 2008
ARTIGO
Comunicação e governança do risco: um debate necessário
Gabriela Marques Di Giulio; Bernardino Ribeiro de Figueiredo; Lúcia da Costa Ferreira
A complexidade dos problemas e riscos enfrentados pela sociedade, geralmente caracterizados por fatos incertos, controvérsias, decisões urgentes e apostas elevadas, e as incertezas científicas inerentes ao conhecimento científico, às substâncias químicas e às questões ambientais têm levado pesquisadores, governantes e representantes de órgãos governamentais a refletirem sobre a necessidade de colocar em prática uma nova abordagem no enfrentamento dos riscos.
Essa nova abordagem deve levar em conta que o risco vai além de uma situação ou evento onde algo de valor humano (inclusive a vida humana) está em jogo e onde o resultado é incerto. Como é observado e mensurado dentro de um contexto, o risco e a respostas a uma situação de risco devem ser entendidos como construções sociais, já que interagem com processos psicológicos, sociais, institucionais e culturais. Os riscos são parte da experiência cotidiana e, por isso mesmo, todos os atores envolvidos podem reivindicar legitimamente a sua autoridade na definição e solução dos problemas identificados. É preciso, assim, prever a necessidade do diálogo com aquelas pessoas que vivenciam de fato os riscos que favoreça a sua participação e influência na definição dos assuntos a serem discutidos e nas decisões a serem tomadas.
Esse diálogo tem de ser permeado pela premissa de que o conhecimento leigo não é irracional e que julgamentos de valor e influências subjetivas estão presentes em todas as fases do processo de gestão de riscos, dividindo também os peritos. É preciso lembrar que para problemas complexos como aqueles que caracterizam as situações de risco há mais de uma solução técnica e que a opção entre elas, longe de ser exclusivamente técnica, é também política, social, cultural ou econômica.
O desafio lançado, como propõe a socióloga Júlia Guivant, está diretamente relacionado com a percepção de que as controvérsias sociotécnicas, comuns em situações de risco, devem ser vistas como oportunidades para explorar alternativas possíveis e que o interesse coletivo é produto de negociações, conflitos sociais e alianças. Está relacionado também com a prática de uma comunicação de risco que não se limite ao modelo do déficit de conhecimento, no qual os peritos comunicam os conhecimentos e suas "verdades científicas" para os leigos para evitar que estes permaneçam na ignorância e irracionalidade. Ao contrário, o enfrentamento dos riscos exige um exercício de comunicação que envolva orientações e ferramentas estratégicas para que cientistas, governantes, técnicos e comunicadores saibam como construir uma atmosfera de confiança com todos os atores sociais envolvidos.
O interesse pela comunicação de risco vem crescendo nos últimos anos e é resultado do debate que tem ocorrido nas sociedades sobre abertura do processo decisório, justiça, confiança, participação pública e democracia; temas que têm tido papel central no desenvolvimento das agendas de pesquisa e política. É resultado também da consciência de que é possível lidar de forma mais eficaz com as respostas públicas dadas ao risco se, às pessoas afetadas pelas decisões sobre riscos, é dada a oportunidade de participarem efetivamente do processo decisório, ensejando assim um processo analítico e deliberativo, no qual os efeitos da amplificação do risco são incluídos como um elemento importante nas decisões que são discutidas e tomadas. Entende-se por amplificação social do risco o fenômeno pelo qual os processos de informação, as estruturas institucionais, o comportamento do grupo social e as respostas individuais dão forma à experiência social do risco, contribuindo para suas conseqüências.
A comunicação de risco ganhou força e passou a ser considerada como algo importante na avaliação e gerenciamento do risco com o acidente de Chernobyl, ocorrido em 1986 na Ucrânia. O acidente evidenciou o despreparo das autoridades e organizações responsáveis pela segurança no enfrentamento de situações de risco e a dificuldade que os pesquisadores, sobretudo, têm em comunicar informação técnica sobre riscos ou sobre falhas nas estimativas de riscos e de abrir um diálogo com o chamado público leigo.
Entre os principais objetivos da comunicação de risco é possível destacar a promoção de um diálogo sensível às necessidades da comunidade que vivencia situações de riscos, o estabelecimento de uma relação de confiança entre comunidade, pesquisadores e autoridades e a integração do público no processo de gerenciamento do risco (promovendo, assim, a chamada governança do risco).
Apesar do avanço no debate e do reconhecimento da importância desse processo comunicativo, o tema ainda é pouco abordado em estudos científicos. Na prática, o enfrentamento dos riscos ambientais, tecnológicos e de saúde mostra que as autoridades responsáveis enfrentam dificuldades no que concerne à comunicação, haja vista as situações de catástrofes naturais recentes, como o tsunami registrado no continente asiático em 2005; os impactos advindos com as mudanças climáticas, retratados no último relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), divulgado no primeiro semestre de 2007; e os casos de doenças infecciosas, como a recente gripe aviária, que tem demandado maior atenção dos órgãos responsáveis pela vigilância sanitária. São situações que evidenciam a falta de estratégias para lidar com os riscos que se apresentam, a ausência de um planejamento sobre como comunicar as informações para a comunidade local e para a mídia e o uso de uma abordagem de gerenciamento de risco ainda muito técnica, desconsiderando a necessidade de obtenção de input do público antes que sejam tomadas decisões.
Mesmo em situações nas quais a comunicação de risco tem sido considerada como parte integrante do processo de avaliação e gestão do risco, os esforços não têm obtido grande sucesso porque falham em considerar e relacionar os diversos fatores psicológicos, sociais e políticos que estão envolvidos nas percepções e atitudes das pessoas. Esses fatores familiaridade, controle, potencial catastrófico, equidade, nível de conhecimento, cultura, crenças, justiça, moral, participação dos interessados, legitimidade das instituições são determinantes na superestimação ou subestimação de determinados riscos, assim como a forma como os meios de comunicação divulgam determinados riscos.
Considerar, assim, a dimensão social e a questão da subjetividade no gerenciamento do risco é fundamental para a abertura do diálogo e para a conquista da participação pública no processo decisório. O paradigma clássico da avaliação e gestão do risco ambiental que inclui estimativas numéricas que relacionam a intensidade da poluição a potenciais riscos e medidas para reduzir as ameaças de risco à vida, à propriedade e ao ambiente apresenta diversas deficiências. A principal delas é não levar em conta como as populações percebem e convivem com tais riscos.
Governança de risco
A discussão sobre comunicação de risco enseja a abordagem de um outro tema governança do risco. Entende-se por governança um novo arranjo institucional no qual o processo decisório é coletivo, envolvendo atores governamentais e não governamentais. Na governança do risco, a forma como as informações são coletadas, analisadas e comunicadas estão no centro da atenção, assim como a idéia de que o conhecimento leigo não é irracional e de que os julgamentos de valor estão presentes em todas as fases do processo de avaliação e gestão de risco, por parte dos especialistas e do público.
Apesar das críticas quanto ao emprego da palavra governança (com diferentes significados e usada para diferentes situações), o termo governança do risco é adotado com base na idéia de um processo decisório democrático e participativo relacionado ao gerenciamento do risco, entendendo participação como o compartilhamento do poder decisório do Estado em relação às questões de interesse público e como condição necessária para assegurar que as instituições governamentais atuem de forma responsável perante seus cidadãos, criando possibilidades para que indivíduos e grupos influenciem as decisões que os afetam (promovendo assim competência e capacidade para isso) e contribuindo para a estabilidade do sistema democrático.
Em situações de risco, a prática de um processo decisório mais aberto e participativo, que inclua de fato as percepções, necessidades e interesses das comunidades afetadas, tem-se mostrado cada vez mais relevante. As justificativas estão embasadas na premissa de que, quanto mais envolvida estiver uma comunidade no processo decisório, maior será a possibilidade de preservação do ambiente local, maior é a possibilidade de induzir o público geral a agir individualmente ou coletivamente para reduzir o risco e maiores serão as chances de evitar que uma determinada comunidade ou local sejam estigmatizados em decorrência dos riscos que enfrenta. Os pesquisadores James Flynn e Paul Paul, autores do artigo "Avaliações dos peritos e do público acerca dos riscos tecnológicos" (referência abaixo), reconhecem que, no nível prático, o envolvimento do público pode melhorar a relevância e a qualidade das análises técnicas e, sobretudo, pode aumentar a legitimidade e a aceitação pública das decisões finais.
A participação de uma comunidade na discussão dos seus problemas e na elaboração de possíveis ações também tem implicação direta no desenvolvimento de potenciais democráticos. Mesmo que os desejos e aspirações dessa comunidade não sejam plenamente alcançados no enfrentamento do risco, o fato de algumas pessoas se envolverem, participarem do debate e se unirem em modelos associativos a partir de um projeto político em comum, por si só, já é um ganho. Representa a chance de desenvolver, naquela comunidade, capacidades pessoais de análise e argumentação, o exercício de deliberação, a tolerância e a solidariedade.
Essa participação pode acontecer através de exercícios de consulta aos cidadãos (consulta pública, debate público e uso de grupos focais para definição de políticas públicas), avaliação participativa de tecnologias (com as conferências de consenso ou de cidadãos, fóruns de discussão e júri de cidadãos), desenvolvimento participativo de tecnologias, investigação participativa, entre outros. Essas formas de participação, como observa o pesquisador português Boaventura de Souza Santos, da Universidade de Coimbra, podem aparecer em versões que reforcem os modos hegemônicos de conhecimento e de exercício do poder político, organizadas de "cima para baixo". Mas podem surgir também sob formas contra-hegemônicas, organizadas de "baixo para cima" com critérios mais amplos de inclusão. De todo modo, para que o enfrentamento do risco seja participativo e democrático é importante que os grupos cujos interesses são afetados e estão em pauta estejam bem representados nos processos decisórios.
No enfrentamento dos riscos, a participação dos cidadãos mais do que um direito é uma necessidade. Como são agentes conhecedores (porque convivem com os riscos e enfrentam as diversas conseqüências advindas deles), esses indivíduos são capazes de discutir os problemas e de lutar para que o poder de pensamento e ação para definir o que será feito para resolver ou mitigar os problemas que vivenciam não fique apenas nas mãos dos stakeholders da ciência, da política e da economia. Para isso, a prática de uma comunicação de risco que, de fato, considere os elementos sociais, culturais e econômicos envolvidos, parta do pressuposto de que aquelas pessoas afetadas pelas decisões devem estar envolvidas no processo de sugestões e escolhas de alternativas e instaure uma estratégia aberta e coletiva de produção de conhecimento é fundamental. É preciso, como lembra o pesquisador Boaventura de Souza Santos, construir uma rede de intervenção, na qual todas as formas de conhecimento técnico, leigo, tradicional, local possam construtivamente participar em função da sua relevância para a situação em causa.
Breve comentário sobre a experiência internacional no tema
Nos Estados Unidos, em situações de risco relacionadas à contaminação ambiental e exposição humana a substâncias perigosas, a prática da comunicação de risco é motivada e, geralmente, ocorre como resultado das leis e regulamentações existentes. Exemplo disso é a lei federal conhecida como Cercla (abreviatura em inglês de Comprehensive Environmental Response, Compensation and Liability Act), que criou a taxa do Superfund para ser usada para investigar e limpar sítios com resíduos perigosos abandonados ou sem controle. A lei requer, dentro dos procedimentos de avaliação de risco, que as relações com a comunidade sejam levadas em conta. Na prática, há a necessidade de haver um plano de relações com a comunidade que incorpore a obtenção de informação sobre o lugar, os interesses dos moradores em relação às ações de remediação, suas crenças e preocupações sobre o local onde vivem e métodos de comunicação que serão usados para envolver o público no processo de recuperação da área.
Na Europa, embora os países respondam de maneira particular aos diversos aspectos e gestão de áreas contaminadas, há uma concordância em alguns princípios fundamentais, como o princípio do poluidor pagador, e há também um direcionamento para a promoção de um debate mais aberto que, de fato, dê maior atenção aos conhecimentos tidos como tradicionais e às experiências locais. Países como o Reino Unido e a França já contam com legislação que estabelece como necessária a obtenção de input do público antes que sejam tomadas decisões em áreas de incertezas.
O Brasil, entretanto, apesar de possuir uma ampla legislação em aspectos ambientais, esta, muita vezes, não é levada a termo. Sobre áreas contaminadas especificamente, o país não tem desenvolvido uma legislação específica, recorrendo a normas legais que indiretamente estão regulando a gestão de sítios contaminados por resíduos perigosos. No caso de resíduos perigosos à saúde humana, o Ministério da Saúde aplica, desde 2002, a metodologia de avaliação de risco da Agência de Registro de Substâncias Tóxicas e Controle de Doenças (ATSDR, na sigla em inglês).
A metodologia da ATSDR inclui avaliação da informação do local, respostas às preocupações da comunidade, seleção dos contaminantes de interesse, identificação e avaliação das rotas de exposição, caracterização das implicações para a saúde e conclusões e recomendações. Segundo documento do Ministério da Saúde, ao término do estudo de avaliação de risco a equipe de investigadores, seguindo a metodologia, deve fazer uma reunião com a população, com o objetivo de transmitir todo o conteúdo dos estudos.
No caso da avaliação de risco de contaminantes ambientais, a referência no Brasil são os procedimentos adotados e divulgados pela Companhia de Tecnologia e Saneamento Ambiental (Cetesb) do estado de São Paulo. A Cetesb foi o primeiro órgão ambiental a introduzir o tema da avaliação de riscos em nível nacional e o primeiro a criar uma unidade específica para tratar do assunto. O interesse pela avaliação de risco foi motivado pelo acidente em Cubatão, em 1984. A partir daí, a Cetesb passou a incorporar estudos de análise de riscos no processo de licenciamento ambiental, visando a prevenção de grandes acidentes e, em 1990, editou o Manual de Orientação para Elaboração de Estudos de Análise de Riscos, que passou por duas revisões, em 1994 e em 2000. Apesar da relevância das orientações da Cetesb quanto à prática da avaliação e gerenciamento de risco, observa-se que no Brasil a discussão sobre comunicação de risco e sobre a necessidade de envolver a comunidade, em situações de risco ambiental, ainda é escassa.
Para saber mais:
- Brasil. 2006. Diretrizes para elaboração de estudo de avaliação de risco à saúde humana por exposição a contaminantes químicos. http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/diretrizes_%20avaliacao_%20de_%20risco.pdf
- Flynn, J. & Slovic, P. 2000. "Avaliações dos peritos e do público acerca dos riscos tecnológicos". In: Gonçalves, M.E. (org). Cultura científica e participação pública. Celta Editora, Oeiras, p. 109-128.
- Guivant, J.S. 2004. A governança dos riscos e os desafios para a redefinição da arena pública do Brasil. In: Ciência, tecnologia + sociedade. Novos modelos de governança. Brasília, 06 a 11 de dezembro. http://www.nisra.ufsc.br/pdf/A%20governa%5B1%5D...pdf
- Kasperson, R. et al. 2005. "The social amplification of risk: a conceptual framework". In: Kasperson, J. & Kasperson, R.. The social contours of risk: publics, risk communication and the social amplification of risk. London: Earthscan. p. 99-114.
- Santos, B.S.(org). 2005. Semear outras soluções os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.
Gabriela Marques Di Giulio é jornalista e mestre em política científica e tecnológica e é doutoranda em ambiente e sociedade, ambos pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Bernardino Ribeiro de Figueiredo é geólogo e coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam) da Unicamp.
Lúcia da Costa Ferreira é ecóloga, doutora em ciências sociais e pesquisadora do Nepam.