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ComCiência
versão On-line ISSN 1519-7654
ComCiência n.100 Campinas 2008
ARTIGO
Dispersões, distenções e(m) emoções: arte, ciência, ser-á?
Elenise Cristina Pires de Andrade; Érica Speglich; Alda Romaguera
Manoel de Barros em verso, o artista catarinense Walmor Corrêa em pranchas de seres do folclore brasileiro, o naturalista Afonso d'Escragnolle-Taunay com seres fantásticos do Brasil e nossas pesquisas com imagens em superfícies, acompanhando Gilles Deleuze e a Lógica do sentido (2003), arrastarmo-nos e movimentarmo-nos pelo entre, nem um nem outro. Poema, teses, pranchas e litogravuras a darem visibilidade ao quase, que habita por entre as entranhas de uma humanidade quase, que coloca em movimento um quase coisa/quase bicho/quase gente, que a gente vê, diz que existe e aprende que viu. Pesquisou? Existiu? Ninguém sabe, ninguém viu...
Escolhas por outros campos, tempos e seres para ampliações e retrações no movimento de produção de pesquisas acadêmicas e suas divulgações em congressos, seminários, defesa de teses e dissertações, artigos em revistas científicas. Com o auxílio das imagens dos séculos XVI a XVIII coletadas por Afonso d'Escragnolle-Taunay sobre a fauna fantástica brasileira e as criações de Walmor Corrêa no século XXI, fugir das delimitações, territórios de arte/ciência. Convidamos os/as leitores/as a prazeres e perigos do escape e do embaçamento das fronteiras com/nessas imagens que são construídas pela composição, pela junção de pedaços de animais, de seres humanos, hibridização, contaminação arteciência; ciênciaarte em (des)montagens realidades-imaginários.
Preguiça-fera ou preguiça gente feliz? Curupira imaginário ou real porque decomposto em suas interioridades? Explosões de sentidos que pulsam dessas imagens é o que nos propusemos como pontos de discussões e tensões. Escolhemos apostar nessa explosão e no estraçalhamento que as produções/criações artísticas intensificam e que, muitas vezes, o conhecimento científico pretende expulsar. Foi com essa vontade que Walmor Corrêa nos invadiu ao materializar o imaginário na desmontagem anatômica em Cryptozoology1. Parece-nos que a intenção do artista é essa provocação pelo embaçamento, pela descrença na materialização como concretude de uma realidade assim como nos sentimos ao entrar em contato com a Zoologia fantástica e monstros e monstrengos do Brasil de Taunay.
Para nós, Walmor procura o que comumente é denominado de "aberrações" pelas multiplicidades que elas podem suscitar, desmoronar, instigar ao liberar o pensamento das comparações, das pedagogias morais, da possibilidade como limite. Para a exposição Cryptozoology, o artista escolheu somente seres fantásticos de várias regiões do Brasil, recolhendo-os em uma série por ele associada à Unheimlich - termo utilizado por Freud em 1919 para designar o que era estranho e familiar ao mesmo tempo. "Aberrações" que berram também nos monstros e nas maravilhas que povoam os registros dos viajantes que passaram pelo Brasil até meados do século XVIII, recolhidos e organizados por Afonso Taunay (1876-1958) ao procurar os registros do estranho, do inacreditável, do alguma vez real. Monstros e monstrengos que habita(m)(vam) os diferentes cantos do Brasil retratados, vistos e relatados por índios, negros, brancos, viajantes, naturalistas.
Estes seres monstruosos e maravilhosos recolhidos por Afonso Taunay foram considerados (até meados do século XVIII) raros, misteriosos e reais, e ajudavam a construir os tênues e dispersos limites entre natural e não-natural, conhecido e desconhecido, cultivado e vulgar à medida que são registrados ou apagados das anotações, desenhos e livros dos naturalistas ao longo dos séculos (Daston & Park, 1998:17). Seres que "perdem a graça" a partir do século XVIII, ainda para Daston & Park (1998:18), que entendem que tal perda esteja menos relacionada a um triunfo da racionalidade iluminista e mais a uma grande mudança na auto-definição dos intelectuais: " para eles, as maravilhas ficaram, simplesmente, vulgares ". Seres que parecem reverberar e transmutar-se na arte de Walmor Corrêa, maravilhamento resgatado pelo artista. Seres que são convidados nesse texto a perambular pelas nossas apostas de (des)encontros com as imagens, as realidades e os imaginários em pesquisa no campo educacional.
Imagens que nos tiram o fôlego na impossibilidade da metáfora, da comparação. Nem um animal, nem outro, nem um terceiro. Nem fantasia, nem anatomia. Invenções. A assunção da existência pela experiência de uma memória nunca vista em sua concretude na proposta da subversão de uma relação linear entre o modelo/realidade e a cópia/representação. Não estaríamos, ao tentar fixar, delimitar, conceituar, apreender a realidade por meio de imagens - palavras, pinturas, fotografias, filmes, softwares, fórmulas - possibilitando "apenas" a nós mesmos, e não à realidade em si, um certo controle sobre o excesso de caoticidade do mundo?
Excesso de mundo no mundo, sem a necessidade (ou seria imprescindibilidade?) de garantir antecipadamente os limites entre certo/errado, visível/invisível, realidade/imaginário. Experimentar a produção de conhecimento pelo deslizamento nas superfícies das imagens. Manifestações criadas, pensadas, vistas e impressas em curupiras, iaras, preguiças gigantes nos anunciam embaçamentos entre categorias: o mundo dos seres fantásticos e dos seres verídicos dobrando-se e criando outras pregas de possibilidades para o existir, para o ver, para a ciência, para a arte. Arteciência. Ciênciaarte.
Elenise Cristina Pires de Andrade, Érica Speglich e Alda Romaguera fazem parte do Grupo Olho e Grupo Transversal, da Faculdade de Educação da Unicamp. Contatos: nisebara@uol.com.br; speglich@unicamp.br; aldaromaguera@uol.com.br
Notas
1 Exposição no Battes College, Maine, EUA.
Referências bibliográficas
Corrêa, Walmor. Cryptozoology In: http://www.walmorcorrea.com.br, acesso em maio de 2007.
Daston, Lorraine & Park, Katharine. Wonders and the order of nature (1150-1750). Zone Books - New York, 1998.
Deleuze, Gilles. Lógica do sentido. 4.ed., 2.reimpressão. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003.
D'Escragnolle-Taunay, Afonso. Del Priore, Mary (Org.). Monstros e monstrengos do Brasil: ensaio sobre a zoologia fantástica brasileira nos séculos XVII e XVIII. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
D'Escragnolle-Taunay, Afonso. Zoologia fantástica do Brasil (séculos XVI e XVII). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Museu Paulista da Universidade de São Paulo, 1999.