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ComCiência
On-line version ISSN 1519-7654
ComCiência no.99 Campinas 2008
ARTIGO
A ficção como vitrine
Heloisa Buarque de Almeida
Estas reflexões advêm de uma pesquisa etnográfica método de pesquisa usado pela antropologia, que consiste em conviver com as pessoas pesquisadas, fazendo "observação participante" que foi parte de minha tese de doutorado. Convivendo com famílias de classe média e classe trabalhadora em Montes Claros (MG), com as quais eu acompanhava uma novela das 21hs, exibida pela Rede Globo, pude inicialmente notar como as pessoas interagiam, debatiam com a novela, e chocavam-se com a moral sexual ali representada. As novelas da Globo referem-se a um mundo cultural dos grandes centros urbanos, da classe média e alta carioca e paulista, e muitas vezes suas imagens e histórias chocam-se com a moral, o contexto cultural e social de outras partes do país, como outras pesquisas antropológicas já tinham demonstrado.
Entretanto, outro tema ganhou importância a partir de sua relevância na vida cotidiana das pessoas, particularmente relacionado à interação com a mídia. Como as pessoas consomem a própria novela e a partir dela, como são promovidos ideais de corpo e de beleza, como se cria o desejo de comprar certos bens, como roupas da moda ou fazer dietas e ginásticas, ou adquirir s bens de consumo muito associados ao espaço doméstico. Um dos pontos de debate constante com a televisão e com as novelas da Globo, e inclusive uma forma de crítica por esses espectadores, é o quanto elas mostram um mundo repleto de bens, gerando o desejo de comprar e consumir nos espectadores.
Durante a pesquisa de campo, este era o aspecto em que a mídia parecia ter mais poder: o consumo, a promoção e venda de vários tipos de bens (inclusive bens culturais) e serviços. A novela ensina e prepara o espectador para entender e atuar numa sociedade de consumo e auxilia na compreensão de linguagens, valores e estilos de vida usados na publicidade. Passei a estudar a esfera da produção da televisão comercial aberta em sua interface com a publicidade e com a forma de funcionamento simbólico da propaganda.
Na análise sobre a televisão brasileira e seu modelo comercial, tanto no universo acadêmico como no empresarial, ressalta-se a questão da imbricada associação entre televisão e publicidade, com a formação mais ampla, desde meados dos anos 60, do mercado consumidor nacional (por exemplo, o trabalho de Kehl, 1986). No jargão do meio publicitário, a TV facilita a criação de "novos comportamentos", ou seja, novos hábitos de consumo e de atitudes do cotidiano que impulsionam a compra e o uso de novos produtos. Isso constitui inclusive um senso comum no meio publicitário, segundo profissionais que entrevistei, que afirmam que a TV permite construir "padrões de comportamento". A televisão seria parte integrante do desenvolvimento do país, transformando a população em mercado consumidor ativo, criando uma "disposição ao consumo" nos termos dos próprios profissionais do meio publicitário ou televisivo.
Há mecanismos acionados pela novela para promover o consumo, além de mostrar um estilo de vida consumista das classes médias dos grandes centros urbanos, e da promoção objetiva de moda e bens ligados diretamente às novelas (como as trilhas sonoras ou o merchandising). A novela parece ter um funcionamento semelhante ao da publicidade na promoção de bens e serviços. A publicidade vende diversos produtos, mas como fenômeno social ela vai além, promovendo mais do que os produtos, o hábito de comprar, o consumo.
O trabalho de Stuart Ewen (1976), que analisa o caso dos Estados Unidos no início do século XX, trata o fenômeno da publicidade como processo de educação e socialização que ensina os cidadãos a consumir, criando consumidores. A publicidade é, assim, um braço fundamental da expansão do processo de industrialização, incentiva a formação de consumidores para os bens, promove novas construções de espaço doméstico e de cuidados pessoais que precisam destes bens para se efetivar. O discurso dos empresários analisados por Ewen afirma literalmente que a entrada no mercado consumidor é uma "experiência civilizadora". A família e o espaço doméstico é o centro do consumo nesse processo inicial de formação de uma sociedade de consumo. E a televisão parece ser, no Brasil, o meio ideal para efetuar essa mudança de comportamentos, esse "processo civilizador".
Desde esse período, a mulher é vista como a consumidora por excelência, pois é ela que compra a maior parte dos produtos e para o lar. Tanto aqui, como na discussão sobre a novela, há uma associação simbólica constante entre família, espaço doméstico e feminilidade. A novela é também pensada, pelo meio industrial e publicitário, como um produto feminino. É na esteira da associação entre mulher e consumo que a telenovela surge (e se mantém) como um programa especialmente adaptado a vender uma grande variedade de produtos e estilos, dado que o gênero narrativo já era visto como feminino. Novelas, para o meio publicitário, ainda que femininas, são vistas como capazes de atingir "todo mundo", "a família toda" que assiste à TV, todas as classes sociais, o Brasil em geral. Há inclusive uma constante confusão entre "familiar" e "feminino", ou seja, a própria esfera das relações familiares, especialmente tomadas como dentro do espaço doméstico, é feminilizada.
As ações de merchandising (inclusão de produtos anunciados no meio da narrativa) permitem que a novela use de um recurso muito comum nos anúncios de televisão: o que os publicitários denominam de "demonstração" do uso do produto, muito citado nos manuais de publicidade. Também o modelo de anúncio denominado "problema e solução do problema" pode surgir no merchandising.
Outro importante aspecto da questão comercial das novelas são os subprodutos lançados em cada narrativa. O disco com a trilha sonora é um dos produtos mais diretamente vendidos. No entanto, um dos pontos mais reconhecidos na associação entre novela e consumo é aquele que é mais uma vez feminilizado: a moda, as roupas, os estilos dos personagens. Na maioria dos casos, a moda da novela está de acordo com o que está em voga no período de sua exibição, no entanto, nem tudo que é lançado dá certo. É necessário que o produto tenha uma "imagem de marca" que freqüentemente é criada pelo usuário do produto, no caso o personagem da novela que crie simpatia no público que quer atingir.
A moda sofre um processo de popularização através da novela que na verdade é a contrapartida da questão de distinção discutida por Bourdieu. O que antes era uma moda européia e de elite, populariza-se com a novela, e ao final da narrativa está nas lojas populares. Nas novelas, pode surgir uma moda específica, associada a um personagem ou narrativa, mas na maior parte das vezes trata-se apenas da popularização de um estilo que pode ter se iniciado uma estação antes, na França por exemplo. O mesmo tipo de roupa que havia sido moda um ano ou um semestre antes nas revistas européias mais elitizadas como Vogue ou Elle. No começo da novela, as revistas femininas nacionais para camadas médias e altas divulgam o mesmo que está na tela da Globo, que também vemos nas vitrines dos shopping centers voltados às camadas mais altas, mas ainda não nas lojas populares. Ao decorrer da novela, o estilo se populariza e ao seu final a mesma moda torna-se acessível às camadas populares, mas já é considerado "fora de moda" para as camadas mais altas.
Em cada novela, são vários desses estilos que são mostrados, inclusive usados para diferenciar os personagens entre si. As roupas constróem a personalidade e o estilo de cada personagem; demonstram de modo rápido e visual como os indivíduos se diferenciam e se destacam numa sociedade de consumo.
O tema dos produtos lançados e sua publicidade (que pode ser indireta) mesclam-se à questão dos personagens com os quais os produtos podem ser identificados. O problema remete a um tema típico da publicidade, ou seja, da identificação que o anúncio tenta criar entre usuário do produto e pessoa com a qual o consumidor pode se identificar, sentindo-se valorizado e projetado no produto. A personalidade ou estilo do usuário ajuda a construir a imagem de marca do produto e, por outro lado, o uso de certos produtos é parte da composição do personagem, como os casos de roupas citados acima. Aliás, é por favorecer-se dessas associações simbólicas que muitos atores estrelam anúncios de diversos produtos, por vezes até agregando a imagem de personagens ao produto.
Wernick (1991) lembra que a estrutura básica da mensagem publicitária consiste na associação entre o produto e um segundo nível, seu significado, ou qual significado o anúncio (ou toda história de suas campanhas) constrói para o produto (a "imagem de marca" ou "personalidade" do produto de que tratam os manuais de publicidade). O passo central desse processo é uma associação entre mercadoria e sentido que se enraíza, e todos os significados se confundem com o próprio produto. O objeto em si, sem sentidos agregados, já não existe mais ele e seus sentidos tornam-se uma só entidade. E estes sentidos, para que o anúncio cumpra a sua função, precisam atrair os consumidores, ter a capacidade de criar uma identificação com seu público alvo.
O que se focaliza de modo bastante óbvio em vários anúncios e também nas novelas de modo indireto com todos os bens que os personagens consomem é um estilo para o/a consumidor/a daquele produto. Em outras palavras, a "imagem de marca" que os publicitários gostam de destacar é muitas vezes construída pelo estilo de vida mostrado pelo usuário do produto, e que remete a um estilo de vida para aquele que consome determinado produto o que na novela é parte da construção do personagem.
Alguns desses produtos promovidos pelas novelas podem ser direcionados para as camadas de maior poder aquisitivo, ao passo que a moda feminina e as trilhas sonoras pretendiam atingir uma população mais ampla. Há assim uma divisão entre aqueles produtos que estão sempre presentes nas novelas como as trilhas sonoras e alguns mais específicos que podem se dirigir a públicos considerados mais particulares de uma dada narrativa.
A questão da moda e dos estilos dos personagens não é mera estratégia de promoção está presente mesmo quando não se pretende vender um produto qualquer, mas apenas pela própria construção das personagens e pode gerar um processo mais amplo, pois ensina aos espectadores de todo o país, de todas as camadas sociais e mesmo aqueles de baixo poder aquisitivo, o que é e como atuar numa sociedade de consumo. Os estilos mostram as diferenças entre as pessoas numa sociedade de consumo, ensinam os espectadores a "ler" as distinções sociais pela moda e pelas roupas que vestem como o fato de usar roupas na "última moda" era destacado pelas personagens femininas de maior poder aquisitivo.
Numa sociedade de consumo, o estilo do que é usado e vestido costuma ser associado a uma marca de individualidade, de distinção e autonomia. Embora a cultura de consumo, como denomina Featherstone (1995), seja uma forma de classificar o mundo social em categorias de pessoas, promovendo marcas visíveis de distinção e prestígio. Ela, ao mesmo tempo, usa imagens e símbolos que sugerem imaginariamente ao consumidor que é ele que escolhe o quer consumir de acordo com seus desejos e sonhos mais íntimos, como uma realização de si mesmo. Por este motivo, as roupas são um dos sinais mais fortes na tentativa de distinguir-se e assumir um estilo individual. Aquilo que está na "última moda", embora possa tornar várias consumidoras semelhantes entre si, tem, no entanto, vários sentidos simbólicos: ser moderno, estar atualizado, cuidar-se, manter-se bonita, entre outros. Recusar a moda pode ser uma forma de criar um estilo particular.
A novela efetua assim o papel de uma vitrine viva, que familiariza o espectador com diversos estilos e modas. Através dos personagens e de toda sua história na narrativa, os estilos de vida que incluem roupas, entre outros produtos e serviços que cada personagem utiliza são aos poucos compreendidos pelo público. A novela tem muito mais tempo do que os anúncios e atenção mais garantida dos espectadores para poder explorar esses diversos estilos, que mostram muitas vezes como os personagens vestem-se, portam-se, o que consomem em suas casas em termos de bens duráveis, a que tipo de serviços recorrem, e tudo isso é associado a que tipo de pessoas são, suas particularidades construindo assim "estilos de vida" em conjunto com o uso de determinado produtos. Os mesmos estilos podem depois ser usados nos anúncios de modo bem curto e rápido, sem muita explicação, pois o espectador já se familiarizou com eles pela novela (e igualmente por outros programas, como os filmes e seriados).
Referências bibliográficas
ALMEIDA, Heloisa Buarque: Telenovela, consumo e gênero: "muitas mais coisas", Bauru, EDUSC, 2003.
BOURDIEU, Pierre. Gostos de classe e estilo de vida. In Bourdieu, Col. Grandes Cientistas Sociais, São Paulo, Ática, 1983.
BOURDIEU, Pierre: Distinction: a social critique of the judgement of taste, Cambridge, Harvard University Press, 1984.
EWEN, Stuart: Captains of consciousness advertising and the social roots of the consumer culture, New York, McGraw-Hill, 1976.
FEATHERSTONE, Mike: Cultura de consumo e pós-modernismo, São Paulo, Studio Nobel, 1995.
KEHL, Maria Rita: "Eu vi um Brasil na TV" in: Costa, Simões, Kehl: Um país no ar: história da TV brasileira em três canais, São Paulo, Brasiliense, 1986.
WERNICK, Andrew: Promotional culture advertising, ideology and symbolic expression, London, Sage, 1991.
Heloisa Buarque de Almeida é professora do departamento de Antropologia da USP e pesquisadora associada ao Pagu, Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp.