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ComCiência
versão On-line ISSN 1519-7654
ComCiência n.99 Campinas 2008
REPORTAGEM
O intrincado quebra-cabeças da crise dos alimentos
Rodrigo Cunha
Periodicamente, a Organização das Nações Unidas (ONU) faz balanços e mapeamentos sobre a situação da fome no mundo, traça possibilidades de cenários futuros e estabelece metas e prazos para os países combaterem as causas do problema. Uma dessas metas é a erradicação da pobreza, e por mais paradoxal que possa parecer, a atual crise nos preços de alimentos no mercado internacional, que fez a ONU lançar mais um sinal de alerta sobre o risco da fome voltar a crescer, tem como uma de suas principais causas dentre várias justamente o aumento do número de pessoas que têm deixado a linha de pobreza nos países mais populosos do mundo. O crescimento vertiginoso de emergentes como a China e a Índia, e até o tímido crescimento do Brasil, têm gerado mudanças substanciais nos padrões de consumo, particularmente o de alimentos.
"Os países emergentes populosos, de um modo geral, têm aumentado sua demanda por alimentos e, concomitantemente, alterado o seu perfil de consumo, com o aumento da participação das proteínas de origem animal na dieta dessas populações", observa Denise Viani Caser, diretora do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento de Informações Estatísticas dos Agronegócios, do Instituto de Economia Agrícola (IEA). Segundo ela, o Brasil tem respondido adequadamente ao aumento da demanda por alimentos. De acordo com a Food and Agriculture Organization (FAO), braço da ONU para a questão dos alimentos, entre 1995 e 2004 a China e a Índia aumentaram a sua produção de alimentos praticamente na mesma proporção em que suas populações cresceram. Isso, contudo, não foi suficiente para atender a demanda gerada pelo aumento do poder de compra que chineses e indianos tiveram com o crescimento contínuo da economia desses países. Já o Brasil, embora sua economia tenha crescido em ritmo menor, teve no mesmo período um aumento na produção de alimentos 0,6% maior que o crescimento da população.
A mudança no perfil de consumo e o aumento da procura por fontes de proteína como carne e ovos têm uma relação direta com outro fator apontado como vilão das altas de preços dos alimentos: a política de redução da dependência do petróleo pela substituição gradual por biocombustíveis, particularmente o etanol produzido a partir do milho nos Estados Unidos. Além de ser alimento humano e ser usado como ração animal, o milho passou a ser destinado para a produção de combustível com o incentivo do governo. "A parcela de responsabilidade dos Estados Unidos, por deslocar grande parte do plantio de milho para a produção de etanol, é grande, uma vez que eles são os maiores produtores desta commodity", opina José Maria Gusman Ferraz, da Embrapa Meio Ambiente. Caser, do IEA, completa: "O destino de grande volume de milho na fabricação de etanol nos Estados Unidos acarretou em diminuição drástica na oferta do produto no mercado mundial, principalmente de rações, que associada à maior demanda de países emergentes por proteína animal, fortaleceu a elevação de preço da commodity milho no mercado".
Disputa com biocombustível
Embora a alta do milho tenha sido crescente desde 2006, e a FAO tenha registrado um aumento do produto em 53% nos últimos 12 meses, Sérgio Salles Filho, do Instituto de Geociências da Unicamp, observa que ele é apenas um dos diversos fatores envolvidos na atual crise de preços. "Sem dúvida, o emprego crescente do milho para a produção de etanol combustível contribui para a alta dos preços dos alimentos. Quanto contribui, é difícil dizer, porque embora seja um produto central na formação de preços agrícolas, como alimento humano e animal, o milho é um só dentre muitos produtos que influenciam preços", pondera. "Acho que essa ênfase no milho para combustível é uma onda e, como tal, passageira. Em breve as tecnologias de produção de álcool a partir de celulose estarão em regime de viabilidade e serão predominantes. Seu aperfeiçoamento é questão de tempo", acrescenta (leia reportagem sobre essas tecnologias).
Além dos Estados Unidos, maior consumidor de combustíveis fósseis do mundo, as nações ricas que compõem a Comunidade Européia também têm adotado políticas para reduzir sua dependência de petróleo, outro produto em alta no mercado internacional. Por isso, ressalta Ferraz, "os países da Europa também têm sua contribuição nesse quadro, uma vez que destinaram áreas que antes produziam alimento para produção de colza e canola para biodiesel". A redução da área de plantio de alimentos diminuiu os excedentes que em parte os europeus tradicionalmente destinavam para doações a países pobres, influenciando, com isso, o comportamento dos preços de alimentos no mercado mundial. "A decorrente restrição dessas doações para ajudas humanitárias contribui para o crescimento da demanda mundial por alimentos e, consequentemente, para pressionar os preços internacionais", afirma Caser, do IEA.
A priorização de terras de plantio voltado para produção de biocombustíveis, associada a adversidades climáticas decorrentes do aquecimento global, como secas e enchentes, contribuiu consideravelmente para a redução geral dos estoques reguladores. Segundo a FAO, o volume de grãos estocados em todo o mundo caiu de 640 milhões de toneladas em 2000 para 405 milhões de toneladas em 2007. Mas o alerta da ONU encontrou ecos no continente europeu, cujo parlamento já sinaliza mudanças. "A recente proposta de alteração na política agrícola comum da União Européia, de eliminação de subsídios para produção de energético e de estímulo ao aumento da produção de alimentos, se implementada, deverá contribuir para alterar o quadro atual", aposta Caser.
A crítica feita pelo relator especial para o direito à alimentação, da ONU, Jean Ziegler, sobre a disputa de espaço entre a produção de alimentos e a de biocombustíveis, também respingou na crescente produção do etanol de cana-de-açúcar do Brasil. A cana brasileira estaria também tomando lugar da produção de alimentos, como na Europa e nos Estados Unidos, e consequentemente influenciando nos preços de grãos? De acordo com o Ministério da Agricultura, a área de plantio de cana-de-açúcar no Brasil aumentou 46% de 2000 a 2006, superando os 7 milhões de hectares. Mas segundo a União da Indústria da Cana-de-Açúcar, a cana voltada para a produção de álcool ocupa atualmente apenas 1% das terras agricultáveis do país e ainda têm muito espaço para expansão, podendo chegar a 3% do total, não devendo passar disso.
"É verdade que a cana ocupa uma área 'pequena' das terras agricultáveis. O problema é a sua alta concentração em algumas regiões, notadamente no estado de São Paulo, que é responsável por aproximadamente 60% da área plantada em todo o território nacional", lembra Ferraz, da Embrapa. E expandir ainda mais a área de plantio voltada para a produção de combustível implica em mudanças na produção de alimentos. "Triplicar a área produzida da cana, sem dúvida, trará algum impacto no mercado interno", observa Salles Filho, da Unicamp, e explica: "porque desloca culturas e criações, altera os preços relativos de insumos, produtos e terra, implicando maior pressão sobre os preços em geral. O quanto isso pode ser absorvido sem maiores impactos nos preços de alimentos e, mais que isso, no acesso aos alimentos pelas populações mais carentes, não se pode dizer nada em definitivo. Se a renda aumentar proporcionalmente, o problema se dissipa".
Além do aumento de renda da população, a produtividade do agronegócio, melhorada com avanços científicos e tecnológicos, também pode atenuar esses impactos. Caser aponta um estudo realizado recentemente pelo IEA segundo o qual a expansão da cana-de-açúcar no estado de São Paulo maior produtor de álcool do país afetou pouco a produção total de alimentos, exceto para feijão e arroz, embora a redução de área das culturas alimentares em algumas regiões do estado ter sido significativa no período de 2001 a 2006. "Nos últimos sete anos, por exemplo, a área de milho decresceu 18,6%, mas a produção cresceu 2,5%, visto que a produtividade aumentou 26%. O mesmo ocorreu para outras culturas alimentares, em função de ganhos tecnológicos", explica.
Ferraz, que tem ampla experiência na área de ecologia, faz outra associação entre a expansão da cana e o acesso das famílias brasileiras aos alimentos: "O perigo é que a cana está se expandindo não sobre áreas degradadas de pastagens, como se alardeia, mas sobre áreas férteis, ocupadas pela agricultura familiar, e por áreas de outras commodities como citrus e soja", afirma. Segundo ele, embora as grandes produções de commodities como soja, milho e citrus sejam provenientes do agronegócio, 70% dos alimentos que compõem a mesa dos brasileiros vem da agricultura familiar. "Para que haja uma segurança alimentar em seu contexto mais amplo, são necessárias políticas públicas para a agricultura familiar", defende.
Dependência do petróleo
Há ainda outro paradoxo que afeta indiretamente a questão dos alimentos, lembra Ferraz: o biocombustível também requer o uso de derivados do petróleo, utilizados para elaboração de adubos nitrogenados e os agrotóxicos usados nas culturas. Isso se aplica não só ao plantio de cana ou soja para produção de combustível, mas a toda a cadeia de produção e venda de alimentos. A alta do barril do petróleo afeta o custo para quem usa seus derivados em insumos, máquinas colheitadeiras e nos caminhões que transportam os alimentos aos centros consumidores e aos portos de exportação.
Segundo Denise Caser, que atua com economia agrícola, os preços de combustíveis e fertilizantes, que vêm encarecendo a produção de alimentos, devem continuar ascendentes. "Embora os atuais preços das commodities possam estimular os produtores para os próximos cultivos, há de se considerar o movimento contrário, dado pela perspectiva de maior elevação dos custos de produção, inclusive pela menor oferta no mercado mundial de fertilizantes, levando à menor adoção de tecnologia, com provável reflexo negativo, como a diminuição dos níveis de produtividade, sobre as safras vindouras em países importantes na produção de alimentos básicos", alerta.
Se o caso dos fertilizantes é mais crítico, com o avanço das pesquisas há, pelo menos, a perspectiva de que máquinas agrícolas e caminhões também possam vir a usar o biodiesel, que já faz rodar frotas de ônibus em algumas grandes cidades. "Tanto biodiesel como álcool, embora para esse último as mudanças tecnológicas tenham que ser mais expressivas", observa Salles Filho. Ainda assim, a dependência ao petróleo e as conseqüências das altas do barril ainda devem durar um bom tempo, o que requer outras saídas. "As decorrências da elevação do preço do petróleo sobre os custos de produção agrícola poderão ser amenizadas pela adoção de políticas que estimulem o emprego de sistemas alternativos, como o de produção orgânica, que se não apresenta os mesmos resultados em níveis de produtividade do sistema convencional, é certamente menos impactante sobre a produção final do que a provável redução no emprego de insumos químicos", acredita Caser.
Especulação em bolsas
Como se não bastasse, além da alta do petróleo, da disputa de espaço com o biocombustível e da explosão de consumo em países emergentes e extremamente populosos, o preço dos alimentos também é afetado pela especulação em bolsas de mercado futuro, como a Chicago Board of Trade, nos Estados Unidos. "As operações especulativas no mercado futuro estão presentes sempre que os mercados dão sinais de maiores ganhos relativos, atual condição para as commodities agrícolas. O movimento nas bolsas de commodities cria uma demanda virtual que também afeta o mercado físico", explica Caser.
Como a China ainda não dá sinais de redução significativa em seu crescimento econômico, o barril de petróleo só recua a sua cotação quando o dólar (já bastante desvalorizado) sobe um pouco, e os biocombustíveis estão apenas começando a conquistar seu mercado, os governos de cada país tentam tomar suas iniciativas para se precaver. A Argentina, para frear a inflação que atingiu 9,1% em 2007, tentou garantir o abastecimento do mercado interno tributando as exportações. O tiro saiu pela culatra e os agricultores fizeram greve até a suspensão da medida. Já o Brasil segurou a exportação apenas dos estoques de arroz que pertencem ao governo. Enquanto o Banco Mundial projeta uma alta de 52,3% para o arroz em todo o mundo em 2008, por aqui o acumulado de 12 meses está em 9,27%.