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ComCiência
On-line version ISSN 1519-7654
ComCiência no.98 Campinas 2008
ARTIGO
Crime, violência e impunidade
Sérgio Adorno; Wânia Pasinato
Em agosto de 2000, o jornalista Pimenta das Neves, ex-editor chefe do jornal O Estado de S. Paulo, assassinou sua namorada em um haras, situado em Ibiúna a 70km da capital do estado de São Paulo. Segundo o que foi possível apurar, o móvel do crime foi passional. A vítima foi alvejada com tiros disparados de arma de fogo, sem qualquer possibilidade de defesa. Réu confesso, foi preso. Permaneceu nessa condição por pouco tempo, uma vez que logrou obter, junto à autoridade judiciária, o benefício de responder em liberdade. Julgado, foi condenado a 19 anos de pena de reclusão. Foi-lhe facultado, entretanto, aguardar em liberdade o julgamento de recurso impetrado junto à instância judiciária superior. O julgamento do recurso deve durar anos. O condenado, por sua vez, ao completar 70 anos, desfrutará de benefícios como o cumprimento parcial da sentença. Na prática, suspeita-se que a sentença jamais será executada e o jornalista, apesar de condenado, não cumprirá a pena a que foi submetido.
Aproveitando a conjuntura que repercutiu na mídia impressa e eletrônica o julgamento do jornalista, a Rede Globo de TV resolveu fazer um experimento. Verificou que, no mesmo dia em que o jornalista havia assassinado sua ex-namorada, haviam sido registrados no município de São Paulo 26 homicídios. Abertos os inquéritos correspondentes, 22 foram arquivados. Entre os quatro restantes, apenas 2 réus haviam sido condenados, pois os outros dois haviam morrido no curso do processo penal. Trata-se, por conseguinte, de uma situação mais habitual do que talvez se possa imaginar. Inúmeros outros casos, como o do jornalista Pimenta das Neves, poderiam ser invocados, já que corriqueiros no cotidiano das delegacias e postos policiais.
Não sem razão, é corrente o sentimento coletivo de que os crimes cresceram, tornaram-se mais violentos, porém não são punidos. É compreensível que esse sentimento suscite, em não poucos segmentos da sociedade, obsessivos desejos punitivos, que compreendem desde a reforma das leis penais no sentido de suspender benefícios, que hoje parecem proteger os criminosos, até a aplicação de medidas como a pena de morte ou a tolerância para com execuções sumárias de suspeitos de haver cometido crimes.
Uma pesquisa em andamento no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV/Cepid/USP) pretendeu justamente responder a tais inquietações presentes no debate e na opinião pública. Empiricamente a pesquisa consiste em estudo sociológico da impunidade penal no município de S. Paulo 1. Trata-se de caracterizar, entre um universo de crimes determinados, a desistência de aplicação de sanções penais. Busca-se isolar possíveis circunstâncias e/ou fatores que favorecem a distribuição seletiva da punição, bem como identificar as possíveis causas (ou conjunto associado de causas) que a explicitam.
A pesquisa avalia a hipótese segundo a qual elevada taxa de impunidade compromete a crença dos cidadãos nas instituições encarregadas de aplicar lei e ordem. Para tanto, está baseada na observação de ocorrências policiais no fluxo do sistema de justiça criminal (institutional follow-up), segundo o método longitudinal. Acompanha o movimento dos crimes em três fases: 1 policial (do registro da ocorrência ao inquérito policial); 2 judicial (do inquérito ao processo penal); e 3 desfecho processual com a decretação da sentença judicial. Na primeira fase (já concluída), o universo empírico compreendeu 344.767 boletins de ocorrência policial (BOS) registrados em 16 delegacias que compõem a 3ª. Seccional de Polícia, situada na região noroeste do município de S. Paulo, no período de janeiro de 1991 a dezembro de 1997. Compreendem crimes violentos (homicídio, roubo, roubo seguido de morte, estupro e tráfico de drogas) e não-violentos (furto, furto qualificado e consumo de drogas). Apenas 5,48% desses registros converteram-se em inquérito policial. Essa proporção é maior (8,14%) para crimes violentos, conforme dados contidos na tabela abaixo. E, entre os crimes violentos, as maiores proporções de registros convertidos em inquéritos correspondem ao tráfico de drogas (92,71%), em geral resultado de flagrante; aos latrocínios, isto é, roubos seguidos de morte (67,20%) e aos homicídios (60,13%).
O resultado mais surpreendente, até o momento, foi constatar a baixa disposição da agência policial em investigar crimes de autoria desconhecida. A autoria desconhecida está presente na maior parte das ocorrências: são 93,3% dos crimes violentos e 94,93% dos crimes não violentos. A princípio, a inexistência de informações sobre o autor do delito não deveria dissuadir os agentes policiais em suas tarefas de localizar e identificar responsáveis, como aliás recomenda o Código de Processo Penal. Contudo, a análise dos boletins de ocorrência que se converteram em inquéritos policiais sugere que a investigação de crimes de autoria desconhecida constitui exceção na atividade policial.
Tudo indica que a natureza da autoria é, sob o ponto de vista da agência e dos atores policiais, uma norma orientadora da conduta do que deve prosseguir no fluxo do sistema de justiça e o que deve ser desprezado. Mais do que isso, traduz o entendimento, de parte desse segmento corporativo do sistema de justiça criminal, de como deve operar o aparelho policial, o quanto e quais energias devem ser mobilizadas, o que vale a pena ou não investir. No limite, pode traduzir uma concepção do que, sob a ótica dessa agência e de seus atores, merece ser objeto de punição.
As rotinas de investigação policial parecem estar habituadas e burocraticamente conformadas em investigar crimes de agressores já conhecidos do aparelho repressivo. Agentes e agências policiais limitam seu raio de ação aos estreitos domínios ditados pela cultura organizacional, constituída, modelada e reproduzida, segundo a lógica de "caçar bandidos". Essas rotinas exploram o óbvio, são pouco permeáveis aos desafios enfrentados não apenas pelo crescimento dos crimes como também pela mudança de qualidade da violência, representada pela emergência do crime organizado e pela explosão de graves violações de direitos humanos. Ao preterir o maciço volume de ocorrências com autoria desconhecida, agentes e agências policiais, contribuem para produzir elevadas taxas de impunidade penal. E, como revelam os resultados da pesquisa, têm elevada responsabilidade institucional nesse processo.
Sérgio Adorno é professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV-Cepid/USP), coordenador da Cátedra Unesco de Direitos Humanos, Educação para a Paz, Tolerância e Democracia, sediada no Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP) e pesquisador I-B do CNPq. Email: sadorno@usp.br
Wânia Pasinato é doutora em sociologia (USP), pesquisadora sênior do NEV-Cepid/USP e pós-doutoranda junto ao Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, da Unicamp, com apoio da Fapesp. E-mail: waniapasinato@uol.com.br
1 Cf. Estudo da impunidade penal no município de S. Paulo, 1991-1997, em andamento. Sob coordenação de Sérgio Adorno, Wânia Pasinato e atualmente Cristina Neme, a pesquisa contou com a participação de Carlos Henrique Ferreira, Carlos Eduardo Barbalarga, Cássia Santos Garcia, Cristiane Lamim de Souza Aguiar, Dalila Vasconcellos, Diego Jair Vicentin, Helena Bartolomeu, João Marcelo Gomes, Mariana Mendonça Raupp, Marcelo Santana de Oliveira, Otávio Albuquerque, Renato Oliveira de Faria e Ricardo Rosa, Patrícia Carla e Marcelo B. Nery. Projeto financiado pela Fapesp (NEV-CEPID/USP, www.nevusp.org) e pelo CNPq.