Mario Quintana tocando a infância
Por Pedro Marques
A sonoridade da versificação tradicional corre do cancioneiro popular à épica grandíloqua. Os tratados de metrificação destacam como musicalidade a competência para deslizar palavras em ritmo pré-estabelecido, num molde como o soneto. Hábil é o poeta que naturaliza o assunto em sons, acentos, sílabas métricas, vocábulos, frases sem atropelar o compasso fixo de um único decassílabo, por exemplo. Bastaria um tema bem orientado por dentro de um ritmo fluente para o poema cantar.
No verso-livre, a musicalidade nasce de bases menos dependentes da tradicional. O poeta traça uma rota poética a cada nova aventura. De saída, não dispõe de nenhuma célula rítmica, segue viagem sem estante prévia onde arrumar as palavras. Por isso a obsessão por toda possibilidade de recursos que, acomodados, fecham um circuito linguístico. Tudo lhe serve: aliterações, assonâncias, anáforas, recorrências vocabulares e imagéticas, paralelismos sintáticos e semânticos que vão definindo o contorno rítmico. Quando o poema soa convincente, como se não pudesse existir de outra maneira, o poeta estabeleceu um texto sinfônico sem nenhuma palavra à toa.
]]> Mais ainda que o metrificador, o versilivrista teme ver sua linguagem escapar para a prosa ou fala ordinária. Seu desafio consiste em estabilizar um arranjo linguístico cujas regras funcionam neste, mas para aquele poema já não prestam. Aqui, o poeta é tratadista da própria obra. Tem dupla profissão: arquiteto, ao cantarolar o poema; engenheiro, ao calcular as normas que sustentam o canto. Se o compositor organiza no tempo sons que, do contrário, sobrariam ruídos, o artista do verso livre conforma palavras que brilham porque estão dentro de uma constelação, isto é, de um poema. Daí Mário de Andrade (1893-1945) e, depois dele, T. S. Eliot (1888-1965) assaltarem a música para criar suas teorias de verso livre.Metrificados ou livres, os poemas mais sonoros de Mario Quintana (1906-1994) cheiram à meninice, infantilizam a percepção do mundo ou visitam a tenra idade. Trata-se de uma poética musical da infância, características que reunidas especificam a modernidade do bardo gaúcho. De fato, pelo menos desde Charles Baudelaire (1821-1867), o lírico moderno experimenta máscaras até então anti-convencionais, conquistando o direito de falar como lunático, louco, bêbado, drogado, mendigo, possuído, deprimido, sonhador e, justamente, como criança.
Ao assumir-se criança, o lírico consegue certo frescor na percepção, tudo que toca com os olhos é pela primeira vez, tudo que diz acabou de ser aprendido. Com licença para nomear tudo à vontade, esse poeta-menino tem a voracidade de Adão diante do paraíso. Quintana encena personas que se pronunciam crianças. Atraídas pelo ludismo na língua, testam os sons quase esquecendo os significados, divertindo-se com isso. É a música do aprendizado acústico que mesmo nós, adultos, às vezes praticamos. Inventar sintagmas impossíveis, repetir à exaustão frases conhecidas, transformar a linguagem num idioma mágico, mântrico.
Mario Quintana capricha na sonoridade ao colocar no centro do palco a infância. A estratégia amplifica a série imagística, porque as escolhas formais operam em consonância com a matéria em tom infantil. Conectada em paralelo à língua padrão e à tela descorada da vida automática, é como se a poesia pré-requeresse do visitante uma segunda alfabetização capaz, outrossim, de remoçar o dia-a-dia. Há poemas, como "Canção da garoa" ( Canções, 1946), que chegam mesmo a regredir ao balbuciar da criança, reconduzindo-nos ao gradus primus da língua materna: "Em cima do meu telhado, / Pirulin lulin lulin".
II
Dorme, ruazinha... É tudo escuro...
E os meus passos, quem é que pode ouvi-los?
Dorme o teu sono sossegado e puro,
Com teus lampiões, com teus jardins tranquilos...
Dorme... Não há ladrões, eu te asseguro... ]]>
Nem guardas para acaso persegui-los...
Na noite alta, como sobre um muro,
As estrelinhas cantam como grilos...
O vento está dormindo na calçada,
O vento enovelou-se como um cão...
Dorme, ruazinha... Não há nada..
Só os meus passos... Mas tão leves são
Que até parecem, pela madrugada,
Os da minha futura assombração...
( A rua dos cataventos, 1940)
O contorno musical harmoniza-se à matéria. Embora lançando mão do carrancudo soneto, espécie de bicho papão dos iniciantes, o poeta brota um estranho acalanto. Primeiro, por embalar um ser inanimado : a rua. Segundo, porque ela é a própria área do medo, do inesperado, reduto do homem-do-saco, de ciganos, de bichos e toda sorte de perigos a espreitar os pequenos. Ou seja, nina-se a ameaça e não a criança, como esperado. São pessoas que põem em risco a rua ( ladrões e guarda ). O poeta trata a rua como ente querido. Feita parente, diz que a visitará como " futura assombração ". A rua, enfim, lida bem com o sobrenatural criado pelos adultos para assustar a molecada.
Na estreia em livro ( A rua dos cataventos, 1940), Quintana exercita o soneto, para na segunda obra ( Canções, 1946) atirar-se ao modelo lírico mais musical de quantos haja. Dono de uma ternura perene, mesmo ao expressar rabugice, começa testando os instrumentos disponíveis. Sua musicalidade brasileira adapta-se, mas esgarça o soneto europeu, por isso vai caindo para uma canção plástica que lhe abrirá as portas do verso livre e, mais tarde, do poema em prosa. Experimentando dançar o vanerão ao piano, por assim dizer, viu que seu compasso chegava mesmo para acordeom. Daí assumir que a canção "já vem dançando, com as rimas de mãos dadas" ("Carta", in Caderno H, 1973).
A canção abusa de um princípio básico : a musicalidade flagrante num texto pouco extenso ou, no máximo, particionado em estâncias menores. Toda canção tende a nos envolver com ritmo, refrão, jogos anafóricos, redes de paralelismos sintático-semânticos, retomadas de ideias. Ela não abre mão de versos medidos ainda que em polimetria. A canção solicita a leitura em voz alta, ora repassando certos versos ou conjuntos, como no canto, ora pedindo duas ou três vozes. Nesse sentido, todas as formas fixas ou semi-fixas da lírica - balada, vilancete, madrigal, cantiga, soneto, etc - têm lá seu quinhão de canção, gênero entre poesia e música, artes mais ou menos próximas conforme épocas e culturas.
Canção de nuvem e vento
Medo da nuvem
Medo Medo
Medo da nuvem que vai crescendo
Que vai se abrindo ]]>
Que não se sabe
O que vai saindo
Medo da nuvem Nuvem Nuvem
Medo do vento
Medo Medo
Medo do vento que vai ventando
Que vai falando
Que não se sabe
O que vai dizendo
Medo do vento Vento Vento ]]>
Medo do gesto
Mudo
Medo da fala
Surda
Que vai movendo
Que vai dizendo
Que não se sabe...
Que bem se sabe
Que tudo é nuvem que tudo é vento
Nuvem e vento Vento Vento !
Esses versos polimétricos chamam-se canção por conta do jogo anafórico, da base rítmica tetrassilábica, dos gerúndios sustentando um sistema de rimas monocórdio se não simulasse o movimento do vento. O vocabulário seleto, recorrente e aliterante estabiliza um texto compacto e movente. O princípio da canção está, pois, a toda. A repetição exaustiva do vocábulo "medo" reforça aquele pavor de tudo que certas crianças desenvolvem, relacionado ao receio de crescer e desbravar o desconhecido com as próprias pernas. Henrique Mann, de certo, descobriu no texto essa partitura, verdadeira carta de navegação norteando a musicá-lo. Ouça-se o álbum Quintanares&Cantares, de 1986.
Sob a pauta infantil, além disso, é possível desabafar o grito contra a supressão da liberdade. O alvo seria um Estado Novo (1937-1945) que amedronta, paralisa e, por fim, infantiliza o cidadão para melhor dirigi-lo. Assim, o pai tirano que, na sua fraqueza de argumentos, reduz o filho ao "gesto mudo", à "fala surda". Tal recurso foi criativamente reciclado por artistas sobreviventes de outra ditadura, a militar (1964-1985). Ouçam-se as entrelinhas de trilhas como Vila Sésamo (1974), Os Saltimbancos (1977) e Arca de Noé (1980 e 1981).
Da paginação
Os livros de poemas devem ter margens largas e muitas páginas em branco e suficientes claros nas páginas impressas, para que as crianças possam enchê-los de desenhos - gatos, homens, aviões, casas, chaminés, árvores, luas, pontes, automóveis, cachorros, cavalos, bois, tranças, estrelas - que passarão também a fazer parte dos poemas... ( Sapato florido, 1948).
Embora esse ligeiro poema em prosa não arrume musicalidade especial, descortina um poeta cioso da recepção infantil. O próprio texto físico vem a ser o brinquedo com o qual a criança interage. A sugestão, na verdade, serve para qualquer leitor que se permita a puerícia no ato da experiência poética. De fato, com mais frequência que outros gêneros, a poesia restitui aos falantes do português utilitário o frescor da vida através de uma língua que transporta. Poeta e leitor fundem-se num concerto de significados, co-autores de um singular jogo de ganha-ganha.
O anjo da escada
Na volta da escada ]]>
Na volta escura da escada.
O Anjo disse o meu nome.
E o meu nome varou de lado a lado o meu peito.
E vinha um rumor distante de vozes clamando clamando...
Deixa-me!
Que tenho a ver com as tuas naus perdidas?
Deixa-me sozinho com os meus pássaros...
com os meus caminhos...
com as minhas nuvens...
( O aprendiz de feiticeiro, 1950)
]]> A musicalidade desses versos livres emana de uma rede paralelística: "na volta ", "da escada ", "o meu nome ", "clamando", "deixa-me" e " com os meus ". Ela funciona como armação musical do poema, o restante das palavras preenchendo o alicerce acústico. Como linhas melódicas de uma orquestração, cada um desses motivos jamais reaparece exatamente igual, mas variado, acrescido ou subtraído. Há ainda um traçado razoável de aliterações, assonâncias e rimas.O eu lírico vive ou rememora uma passagem. O menino se depara com o anjo que mais parece assombração. Susto e tremor enormes são convertidos em humor negro, diferente do terror típico de filmes como O sexto sentido (1999). A voz da entidade atravessa o corpo do moleque : "E o meu nome varou de lado a lado o meu peito." A situação, entretanto, está sob controle. Note-se que ele negocia com normalidade, não quer conversa, pois seus brinquedos, sua vida ganham em interesse do sobrenatural. No limite, a alma penada é sua camarada, é "o anjo da escada", com artigo definido e endereço fixo.
Os grilos
Os grilos abrem frinchas no silêncio.
Os grilos trincam as vidraças negras da noite.
E o silêncio das vastas solidões noturnas
é uma rede tecida de cricrilos... Mas
impossível que haja tantos grilos no mundo,
pensa o Doutor... Sim, talvez seja um problema do ]]>
labirinto,
retruco, telepático. Mas eu só acredito no que está
nos meus poemas,
doutor... Meus poemas é que são os meus sentidos
e não esses, tão poucos, que se contam pelos dedos
e não passam de um único bicho estropiado de cinco
patas,
com que mal pode se locomover.
Chego ao fim da consulta como chego ao fim deste
soneto. ]]>
Fecha-se a porta do poema e saio para a rua :... um pobre bicho perdido, perdido...
( Apontamentos de história sobrenatural, 1976)
Aqui, imaginamos um diálogo quase de via única. Um bate-papo entre o (im)paciente e o terapeuta. Sem contar as semi-linhas, o poema possui 14 versos tocados como soneto frustrado, como tentativa de entender os grilos, aflições do mundo. Quando o modernismo começou a engatinhar, sempre houve poemas em versos livres à sombra da forma soneto. Acostumados, educados, calejados nessa forma fixa, os poetas escreviam como que sonetos arruinados, simplificados ou dilatados. Com Mario Quintana, não foi diferente.
A musicalidade nasce do potencial que as palavras têm de sugerir grilos. O texto todo cricrila! Essa harmonia imitativa reforça a birra da pessoa lírica. É como se os grilos atravessassem a leitura. Não podemos silenciá-los. São os bichos, encanações desse eu-menino. Grilo (objeto) e poeta (sujeito) acabam abraçados, cinco patas com cinco sentidos num largo amplexo que, ainda assim, não dá conta da realidade que se deseja abarcar. Os sentidos humanos apenas podem intuir o universo sensível.
Diante da impossibilidade da significação total, abastecido por uma saraivada de grilos, o poeta fica literalmente grilado. Comunicando-se com o concerto do mundo, seu canto soa tanto mais forte se reconhecer-se parte da sinfonia total. Como sofre para passar do canto solo (egotismo) para o coro (sociedade), o poeta foge de casa, bicho-moleque perdido. Sai do confortável cercadinho poético ("só acredito no que está nos meus poemas"), como se banido do paraíso.
Pedro Marques é poeta, compositor e doutor em teoria e história literária pela Unicamp. Autor de Manuel Bandeira e a música (2008) e Olhos nos olhos (2008). Participou do volume Palavra cantada: ensaios sobre poesia, música e voz (2008) e, como letrista, do álbum A cidade e seus compositores (2009).
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