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ComCiência

versão On-line ISSN 1519-7654

ComCiência  no.164 Campinas dez. 2014

 

ENTREVISTA

 

Carlos Navia Ojeda

 

 

Juliana Passos

 

 

O físico Carlos Navia Ojeda conheceu César Lattes na década de 1960, quando se mudou da Bolívia para o Brasil para cursar mestrado e doutorado na Unicamp. Nesta entrevista, Navia, atualmente professor do Departamento de Física da Universidade Federal Fluminense, relata os incidentes que levaram Lattes a não receber o Nobel, para o qual foi indicado sete vezes, e o mistério da carta deixada por Niehls Bohr sobre Lattes não ter sido laureado. Navia também comenta sobre a relação da política de Ciência e Tecnologia brasileira com o Nobel.

 

Niehls Bohr escreveu uma carta sobre os motivos de Cesar Lattes não ter ganho o Nobel. Poderia contar essa história?

No livro The history of modern science, sem tradução em português, lançado pela Oxford Companion, está um pouco dessa história e tenho a página digitalizada. No finalzinho da página 462, está um pouco da história da primeira possibilidade de Nobel para Lattes. Após o final da Segunda Guerra Mundial, o professor César Lattes se une a Giueseppe Occhialini para atuar como estagiários no laboratório do professor Cecil Powel na Universidade de Bristol, na Inglaterra. O intuito era aperfeiçoar a detecção de partículas utilizando uma nova emulsão fotográfica produzida pela Ilfor (empresa inglesa dedicada à produção de material especializado para fotografia). Lattes sugeriu que fosse feita a exposição das placas a raios cósmicos. Occhialini levou as placas preparadas por Lattes para os Pirineus e o brasileiro levou outras para os Andes bolivianos. Com a adição de boro na emulsão preparada por Lattes, foi possível demonstrar a existência do meson pi. Em 1950, Powell recebe o Nobel pela descoberta, por ser o líder do projeto. Nem Occhialini, nem Lattes são mencionados. Segundo o livro, Niehls Bohr teria escrito uma carta sobre o assunto em 1952 e que teria permissão para ser aberta 50 anos depois. Na página do Instituto Niehls Bohr, é possível fazer diversas requisições de documentos da correspondência de Bohr, porém, só da parte já digitalizada. A informação obtida no começo de 2013 indica que a referida carta escrita por Bohr está microfilmada, porém ainda não teria sido digitalizada.

Ao deixar a Inglaterra, Lattes vai para Berkeley (na Califórnia, Estados Unidos) para trabalhar com o professor Eugene Gardner e, juntos, eles obtêm a primeira evidência experimental da produção do meson pi no acelerador de partículas, isto é, obtido de forma artificial. No retorno ao Brasil, Lattes assume o posto de professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Porém, um tempo depois, ele se transfere para a Universidade Estadual de Campinas, ajudando a consolidar a sua fundação e o Instituto de Física. A academia sueca escreveu uma carta a Lattes endereçada para a UFRJ pedindo mais informações sobre a descoberta em Berkeley para avaliar uma possibilidade de premiação com o Nobel. Infelizmente, essa correspondência só chega às mãos de Lattes após um ano. Não se sabe se alguém a engavetou propositalmente ou se foi simplesmente um descuido. A falta de uma resposta e especialmente a morte do professor Gardner, nesse período, inviabilizaram essa possibilidade de ele ser premiado.

O senhor conviveu com César Lattes? Como foi a reação dele após esses incidentes?

Quando vim da Bolívia para o Brasil, fui muito bem recebido pelo professor Lattes. Ele costumava tratar muito bem os estudantes estrangeiros. Também era conhecido pelo gênio difícil e lembro de dois casos de professores que discordaram dele e acabaram saindo do grupo, pois a permanência deles ficou muito difícil. Sobre sua reação por não ter ganhado o Prêmio Nobel, imagino que ficou muito chateado. Principalmente, dessa segunda vez por não ter recebido a carta a tempo.

Qual o legado para ciência latino-americana deixada por Lattes?

O legado é muito valioso, Lattes é um dos fundadores do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. Ajudou a consolidar a Universidade Estadual de Campinas e é também um dos fundadores do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Ele deu uma contribuição muito grande à pesquisa científica na América Latina, em especial, com a fundação do Laboratório de Física Cósmica na Bolívia.

A maioria dos vencedores do Nobel está na Europa e nos Estados Unidos. Ganhar o Nobel está relacionado a uma determinada política de educação e investimento em C&T?

Eu acho que tem que ter um pouco de política. Dificilmente tem um país de terceiro mundo (entre os premiados). A exceção é a Índia, com dois prêmios Nobel. Por outro lado, não vejo grandes experimentos na América Latina, isto é, projetos genuinamente latinos. Porém, já existem planos, como o Projeto Andes (para construção de um acelerador de partículas entre a Argentina e o Chile). O Brasil tem uma participação importante em grandes projetos internacionais, tais com o Projeto Auger (um observatório de raios cósmicos idealizado pelo físico norte-americano James Cronin, ganhador do Nobel em 1980). Entretanto, em alguns casos, é apenas uma participação coadjuvante nas pesquisas. Temos que tentar de ser o ator principal. Por exemplo, existe a possibilidade do Brasil se tornar membro efetivo do Cern - Organização Europeia para Pesquisa Nuclear, responsável pelo Grande Colisor de Hádrons (LHC, na sigla em inglês), mas isso depende da votação dos deputados para aprovar uma verba de US$ 15 milhões anuais. Acho que o Brasil pode fazer isso e, assim, termos uma participação mais efetiva no Cern, mas depende da Câmara dos Deputados e não sabemos quando isso irá sair. A situação é parecida com a participação brasileira nos projetos da ESA (Agência Espacial Europeia).

Quais são as possibilidades, hoje, de um Nobel para o Brasil?

Posso estar cometendo injustiças, me limitarei a dar a minha opinião na minha área, a física de partículas, e não vejo possibilidades de Nobel nessa área. Acho que o país precisa de mais investimentos não apenas em ciência aplicada, mas também é necessário investir em ciência pura. Os grandes laboratórios que temos são multiusuários, de uso compartilhado. Em geral, essa modalidade prioriza a ciência aplicada, a tecnologia de ponta, o que é muito bom, mas falta ciência básica. A história da humanidade mostra que grandes descobertas foram feitas através da ciência básica.

No campo da astronomia, fala-se numa corrida, visando o Nobel, para o grupo que trouxer evidências sobre o que é a matéria escura. O senhor acredita que isso possa prejudicar o compartilhamento de dados nesse campo?

Concordo que o próximo Nobel esteja provavelmente aí. Atualmente, existem cerca de 80 laboratórios procurando uma resposta para essa questão. Entre alguns "grandes" pesquisadores, existe a chamada "febre de Estolcomo", pois ganhar o Prêmio Nobel significa muita projeção e prestígio. No entanto, não acredito que isso atrapalhe significativamente na colaboração entre pesquisadores. Essa corrida também leva à super exploração de descobertas, como a suposta primeira evidência da inflação cósmica do Universo após o Big Bang, anunciada por pesquisadores do Centro de Astrofísica Harvard-Smithsonian (dos Estados Unidos), em abril deste ano. Todo mundo, tanto a mídia quanto uma parte da comunidade de pesquisadores, acreditava que isso traria o Nobel para a equipe - inclusive se cogitaram alguns nomes -, mas agora há evidências mais fortes trazidas pelo satélite Max Planck, da Agência Espacial Europeia, de que os dados coletados na verdade seriam devidos à poeira cósmica.