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ComCiência

On-line version ISSN 1519-7654

ComCiência  no.161 Campinas Sept. 2014

 

RESENHA

 

Conto de Memórias... reais ou não

 

 

Kátia Kishi

 

 

"Mas afinal, o que é a felicidade? Será que ela surge ao acaso? Pode ser conquistada? Ou será que tudo não é uma questão de perspectiva?" Temas universais como esses são o pano de fundo das histórias do livro Felicidade demais, da contista canadense Alice Munro, premiada com o Nobel da literatura em 2013. Essa aproximação dos pensamentos e ações dos personagens cativa os leitores e tira a ideia de narrativa regional, apesar de alguns textos apresentarem características geográficas específicas do Canadá; esse é o laço empático, ainda que um pouco frouxo, criado pela autora com o leitor.

Nessa obra, é notável a predominância de personagens femininas, gerando questionamentos, na imprensa e entre críticos literários, se a autora não desenvolve uma espécie de autobiografia em suas breves histórias; talvez essa sensação seja gerada apenas por uma habilidade em unir a ficção com alguns fatos reais. O trabalho de mescla fica evidente na história que carrega o título desse seu livro de contos, publicado no Brasil em 2010 pela Companhia das Letras.

O livro já traz um título intrigante, mas apesar de não escancarar a felicidade em sua escrita, ela está lá, presente nos detalhes de fundo da narração dos dez contos que o compõem. Logo na primeira história ("Dimensões"), a felicidade (ou infelicidade) se mostra presente na relação de Doree e Lloyd. Com uma carta inesperada do assassino de seus três filhos, Doree consegue se livrar da dor que a sufocava e atinge uma felicidade similar ao alívio: " Todo mundo está procurando a solução. Suas cabeças estão doendo (de tanto procurar). É tanta coisa atropelando e machucando as pessoas. Dá para ver na cara delas que estão machucadas e sentindo dor. Incomodadas. Apressadas. … Eu cheguei na paz e agora estou são. … eu queria que você pudesse ter essa mesma oportunidade porque é uma questão de mérito, de modo que você merece mais do que eu. … espero que isso alivie seu coração" (31-36p.).

Não é um guia com táticas de como se chegar à paz de espírito ou euforia total, mas reflexões sobre imprevistos que modificam algum aspecto da vida de suas personagens, uma epifania. Alice Munro consegue explorar esses insights em sua escrita não linear formada pelas memórias dos protagonistas, também presente na narração em terceira pessoa, com a amálgama criada entre a personagem e o narrador, de maneira que o leitor quase se sente na mente do protagonista.

São memórias que vão, voltam e se misturam, direcionando a atenção para as aflições de seus protagonistas sobre algum mistério ou fraqueza, como o segredo entre duas amigas, em " Brincadeira de infância", que vem à tona no leito de morte e frequentemente é renegado pela protagonista. Ou um lenhador que, no conto "Madeira", tem um interesse particular pelas árvores e se considera um conhecedor da mata, sabedoria vinda principalmente pelo contato com a casca das árvores, contando em detalhes o corte das verônias, cerejeiras, macieiras, freixos, plátanos, faias, olmos e carvalhos. O conhecimento que ele tem sobre as árvores é uma metáfora de sua relação com a esposa e com a depressão dela, que se mantém na superficialidade da casca, tratando com banalidade os mistérios íntimos do que seria uma floresta fechada, até ele sofrer um acidente.

Outras tantas situações com pontos epifânicos são abordados no livro: a disputa sutil pela atenção alheia, em " Algumas mulheres"; a aceitação das memórias de infância, em " Rosto"; os lampejos de admiração e a manipulação de uma felicidade temporária, em " Ficção"; uma vingança após a humilhação de uma universitária, em " Wenlock Edge"; as traições no casamento e o contato com o perigo e a morte, em " Radicais livres"; a alegria por viver, a felicidade pelo presente e (por que não?) formas de felicidade diferentes do senso comum, em " Buracos-profundos".

"Felicidade demais" , último conto e o que nomeia o livro, tem como ponto de partida cartas e diários da matemática, romancista, jornalista e divulgadora científica, Sophia Kovalevsky. É improvável considerar o conto como biográfico ao invés de ficcional, pois Alice Munro dá voz a muitas ilusões e pensamentos da personagem Sophia, de difícil comprovação. No entanto, sua ficção está emaranhada a muitos fatos da vida dessa cientista russa que faleceu de pneumonia com 41 anos após uma viagem. É apresentada, na narrativa, sua relação com os pais, irmã e cunhado, marido, amante e orientador, além de fatos como as premiações por seus estudos (Prêmio Borodin, 1888, na Suécia, e Bordin, 1889, na França) e sua importância na representação feminina, com a quebra do estereótipo masculino no meio acadêmico, tendo sido a primeira professora mulher de matemática na Europa pela Universidade de Estocolmo. A narrativa percorre sua viagem de Paris a Estocolmo, com uma enxurrada de lembranças, ideias e sensações que a dominam antes de sua morte, de certa forma, estonteante, com a efusão de uma excessiva felicidade.

É importante ressaltar que Alice Munro não escreve um livro de auto-ajuda e nem desvenda os mistérios profundos da filosofia humana; porém, fisga o leitor com temas de interesse comum e universal, estrutura eventos e reações de seus personagens e abre espaço para o leitor refletir e imaginar os próximos recortes ocultados no conto de memórias... sejam essas reais ou não.

Felicidade demais
Autora: Alice Munro 
Companhia das Letras 
Ano: 2010
341 p.