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ComCiência

versión On-line ISSN 1519-7654

ComCiência  no.159 Campinas jun. 2014

 

ENTREVISTA

 

Elizete Aparecida de Andrade

 

 

Cláudia Carnevalli

 

 

O bullying, principal tema desta entrevista, é uma palavra de origem inglesa usada para definir todas as atitudes agressivas, intencionais, repetidas e sem motivação evidente, explica a médica hebiatra (especialista em saúde do adolescente) Elizete Aparecida de Andrade. Segundo ela, o bullying tem como uma das suas causas a intolerância. As consequências são sentidas no corpo de suas vítimas, muitas vezes por meio de doenças, que variam desde uma dor de cabeça até – conforme o tempo e a intensidade da agressão – transtornos de ansiedade, síndrome do pânico e depressão. O interesse no assunto motivou a pesquisa de mestrado de Andrade, que está em fase de análise de dados, e será intitulada: "Perfil de adolescentes agentes e vítimas de bullying e de seus pais". A dissertação será defendida na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, sob a orientação de Lilia Freire Rodrigues de Souza Li, do Departamento de Pediatria da FCM, responsável pelo Ambulatório de Saúde do Adolescente do Hospital das Clínicas da Unicamp. Formada em medicina pela PUC de Campinas, com residência médica em pediatria e neonatologia, ambas pela Universidade de São Paulo (USP) e especialização em hebiatria, também pela USP, Andrade ministra palestras na área de saúde do adolescente e trabalha como médica hebiatra voluntária no Ambulatório de Saúde do Adolescente da Unicamp, que funciona às segundas-feiras no período da tarde e atende jovens de 10 a 20 anos e seus pais. O atendimento leva em conta a saúde integral do adolescente e trabalha temas de relevância, como tabagismo e outras drogas, violência, sexualidade, entre outros.

O bullying, atualmente, é muito discutido na sociedade. A maioria das crianças e dos adolescentes consegue ter a percepção de que isso não é uma brincadeira e sim uma violência ou é preciso discutir mais sobre o tema? Em que faixa etária o problema começa?

Eles geralmente não percebem, por isso, apenas o bullying que gera a violência física é percebido. O bullying pode acontecer quando as crianças ainda são bem pequenas. Em termos de percepção da criança, acredito que aos cinco ou seis anos a violência torne-se mais evidente para ela. Mas também pode acontecer antes. Colovini e Costa falam em seu artigo justamente sobre isso, quando citam estudos americanos que identificam a prática do bullying em crianças a partir dos três anos de idade. Esses autores também citam estudos que relatam a presença do bullying, tanto em escolas públicas como em particulares, e dizem que o problema tende a aumentar com a idade dos alunos.

A intolerância está na raiz desse tipo de violência?

Acredito que a intolerância nasça da relação que a família tem com a sociedade. Uma família intolerante forma filhos intolerantes. O mesmo ocorre com a escola. Dessa forma, a intolerância a uma opção sexual, por exemplo, pode motivar o bullying. No que diz respeito à opção sexual, é preciso lembrar que na adolescência a criança ainda está fazendo as suas escolhas, por isso é bastante comum que o adolescente faça experimentações homo e heterossexuais. Não necessariamente essas experimentações resultam numa relação sexual e é comum que esse comportamento seja interditado pela sociedade. Entre as meninas, ele é mais aceito, por isso vemos meninas andando de mãos dadas, passando a mão no cabelo da outra etc. Já entre os meninos, qualquer comportamento assim pode ser visto como uma tendência homossexual, fazendo com que ele sofra o bullying.

Quais são os tipos de bullying e as características de cada um deles? Há casos que aparecem com mais frequência?

Existem três tipos de bullying. O primeiro é o verbal, que ocorre por meio de zombarias, apelidos, comentários sexuais inapropriados, ao estressar ou ameaçar uma pessoa. O segundo tipo é o bullying social ou de exclusão, que se manifesta ao se isolar uma pessoa do grupo, ao dizer para outras pessoas do grupo não serem amigos dela, ao espalhar rumores negativos ou embaraçar essa pessoa em público. E o outro tipo é o bullying físico, que acontece ao danificar o corpo da pessoa ou seus bens, ao bater, chutar, beliscar, cuspir, empurrar, pegar ou quebrar alguma coisa de alguém ou ainda gesticular de maneira rude ou obscena. No meu ponto de vista, o bullying mais lesivo para a criança e o adolescente é o que gera a exclusão.

Qual a dinâmica desse bullying por exclusão?

Vale ressaltar que é importantíssimo para o desenvolvimento do adolescente participar de um grupo, pois é nele que ele obtém a sua identificação. Esse tipo de bullying é o pior e o que causa mais sequelas a longo prazo, sendo também difícil de se identificar. O bullying de exclusão é mais comum entre as meninas. Quando observamos um pátio de uma escola, podemos notar grupos de meninas de um lado e do outro uma menina sozinha, olhando o celular ou sentada, triste, num canto. Muitas vezes, esse comportamento é percebido, até mesmo pela escola, como sendo culpa do excluído, que não se esforça para fazer parte do grupo. Em crianças menores, a vítima de exclusão é impedida de se sentar próxima às demais para comer o lanchinho, por exemplo. Outro lugar da escola onde podemos notar esse comportamento é durante as aulas de educação física, quando ninguém escolhe ou deseja que aquela criança ou adolescente participe de um time.

Como a tolerância pode ser trabalhada para amenizar o problema e quais outros valores são necessários?

Não tem nada mais libertador do que o conhecimento. Se pesquisar no dicionário, a palavra que mais se opõe à "violência" é justamente "tolerância". Penso que um primeiro caminho seja discutir isso. "Tolerar" pode passar a ideia de "suportar", num sentido depreciativo, do tipo "não concordo, mas tolero". Não é isso. Tolerar é aceitar, é algo capaz de mudar a nossa percepção e nos fazer aceitar realmente algo. O exemplo vem sempre de casa, por isso, para resolver o bullying na escola, é necessário resolver primeiro na família. E essa resolução nem sempre é fácil. Os estudos indicam que o ideal não é agir em quem pratica ou sofre o bullying, mas em quem o assiste, a plateia. Pois não existiria bullying caso não houvesse plateia. Quem faz o bullying usa a vítima apenas como um meio para se promover. Ambos estão doentes e precisam de tratamento. A escola deve, cada vez mais, falar sobre o assunto para fazer com que a plateia perca sua força, conscientizando de que assistir ao bullying é tão nocivo quanto praticá-lo.

As diversas formas de intolerâncias (religiosa, sexual, racista etc.) começam a surgir desde a infância e a adolescência?

Não sou especialista na área, mas acredito que se iniciam desde cedo com a família e são reforçadas na escola. Existe uma pesquisa americana que tenta descobrir o que faz o adolescente beber. O pesquisador queria saber se o adolescente era influenciado a consumir álcool ou se escolhia consumir simplesmente. A conclusão do estudo é que ele realmente decidia beber. Mas escolhia primeiro um grupo, que possuía o hábito de beber, o que demonstrava afinidade. E esta última é influenciada desde cedo pela família.

Os casos de bullying têm se tornado mais frequentes ou eles sempre ocorreram, mas ultimamente têm ganhado mais visibilidade?

Não há pesquisas anteriores, por isso é difícil afirmar, mas acredito que eles aumentaram ultimamente. Na minha dissertação de mestrado, estou avaliando a percepção que os alunos têm do bullying, o que acham, se sofrem ou praticam. Paralelamente, procuro comparar se os pais tinham a mesma percepção do bullying quando eles estudavam. A pesquisa está na etapa de análise dos dados ainda. E também estou ouvindo os professores para saber o que eles pensam sobre o assunto.

Fale mais sobre sua pesquisa.

Participam do estudo 147 alunos, 88 pais e 10 professores de um total de 20, todos da Escola Estadual Prof.ª Dora Maria Maciel de Castro Kanso, localizada no bairro Village, em Campinas. A coleta de dados foi feita por meio de questionários e a participação foi voluntária. A minha previsão é que a dissertação seja defendida no final deste ano. Uma das minhas dificuldades foi encontrar uma escola que quisesse participar, pois uma pesquisa como essa acaba alterando a rotina da escola. Contudo, a diretoria dessa escola mostrou-se bastante favorável. Assim pude me apresentar aos alunos e desenvolver algumas palestras sobre a saúde do adolescente, para depois convidá-los a participar da pesquisa. Antes de começar a aplicar os questionários nessa escola, fiz um pré-teste em duas escolas de Americana, mas os resultados não foram conclusivos, porque a adesão à pesquisa foi baixa. Acredito que isso aconteceu porque lá não tive a mesma abertura que tive na Dora Kanso e não pude me apresentar aos alunos. Por esse motivo, no Village, a incidência de casos de bullying será bem maior, quando comparada a das escolas do pré-teste. Por isso, os dados deverão ser tratados com ressalva e não como um problema dessa escola. Devemos vê-los como uma qualidade da escola, que incentivou os alunos a falarem.

É possível adiantar alguns resultados?

Até o momento, os pais não relatam ter sofrido muito com o bullying na infância, mas eles acreditam que seus filhos sofram. O mais interessante é que os alunos não admitem que sofrem, mas dizem que praticam o bullying, principalmente em relação à intolerância da opção sexual.

E durante a revisão bibliográfica da pesquisa, algum dado lhe chamou mais a atenção?

Sim, na revisão bibliográfica há vários trabalhos científicos recentes, ligados à área de neurociência, que indicam que na adolescência ocorre uma reorganização cerebral. Simplificando, os estudos dizem que na infância o cérebro possui milhões de neurônios e que durante a adolescência acontece uma "poda", ou seja, uma seleção desses neurônios. Essa seleção é influenciada pelas experiências vividas. Por exemplo, se a criança era estimulada a estudar e recebia bons exemplos dos pais nesse sentido, na adolescência ela eliminará aqueles neurônios que não influenciam no estudo. Ou seja, os neurônios que foram bem cultivados na infância, como os que incentivam o estudo, têm mais chances de permanecer na vida adulta. Além disso, durante a adolescência ocorrem reorganizações de áreas importantes do cérebro. A área do córtex pré-frontal, responsável pelas decisões rápidas, como as decisões de risco, é a última área a ser reorganizada na adolescência, o que pode ocorrer até os 25 anos, mais ou menos. Por isso, muitos adolescentes costumam se arriscar mais, dirigir em alta velocidade, não consideram os riscos do uso de drogas etc. O problema é que qualquer violência vivida nessa fase e também na infância pode interferir nessa reorganização cerebral e comprometer a vida adulta depois, levando ao surgimento de doenças psiquiátricas, de forma grave e incapacitante, como a depressão e a síndrome do pânico, principalmente.

Então, podemos dizer que a violência causada pelo bullying pode marcar as vítimas para resto de suas vidas?

Muitas pessoas me questionam por que uma médica está estudando bullying, um tema que parece ligado à psiquiatria, à psicanálise e à educação. Eu falo sobre isso porque eu lido com os traumas da violência causada pelo bullying, os sintomas que surgem no nosso organismo. Os primeiros sinais podem ser problemas de aprendizagem na escola, irritação, dores de cabeça, dores de estômago. Como médica, devo descartar sempre o problema orgânico primeiro, mas lembrar que esses sintomas podem ser indicativos de que algo de ruim está acontecendo, como uma depressão causada devido ao bullying ou a outros tipos de violência. O relatório "Health for theworld's adolescentes – a second chance in theseconddecade", divulgado neste ano pela Organização Mundial da Saúde, afirma que a terceira causa de morte entre adolescentes no mundo é o suicídio, perdendo apenas para os acidentes e o HIV/Aids. Não tenho dados para comprovar qual o peso do bullying nesses casos, mas basta pensar que a vida dos adolescentes divide-se em duas áreas, escola e família. Então, um problema na escola já representa quase a metade da vida deles.

 

Para saber mais:

Colovini, C. E.; Costa, M. R. N. O fenômeno bullying na percepção dos professores. ULBRA, Guaíba, 2007.

Osgood, D. W.; Ragan, D. T.; Wallace, L.; Gest, S. D.; Feinberg, M. E. & Moody, J. "Peers and the emergence of alcohol use: influence and selection processes in adolescent friendship networks". Journal of Research on Adolescence, 2013.