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ComCiência

versão On-line ISSN 1519-7654

ComCiência  no.158 Campinas maio 2014

 

ENTREVISTA

 

Demi Getschko

 

Michele Fernandes Gonçalves

 

 

O Marco Civil, lei que define os princípios básicos da internet brasileira, acaba de ser sancionado pela presidente Dilma Rousseff. A partir de agora, novos desafios se estabelecem e outras discussões, como a da governança da rede, entram em destaque. Demi Getschko, diretor-presidente do Núcleo de Informação e Coordenação do ponto BR (NIC.br), conselheiro do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e professor universitário, comenta esses avanços da posição privilegiada de quem foi o primeiro brasileiro a fazer parte do Hall da Fama da Internet, que inclui nomes como Tim Berners-Lee, criador da World Wide Web, Vinton Cerf, um dos pais da internet, Linus Torvalds, criador do Linux e Jimmy Wales, fundador da Wikipedia. Getschko teve atuação fundamental na equipe que estabeleceu a primeira conexão em rede de internet no Brasil, em 1991, entre a Fapesp e a Energy Science Network, em 1991. Ele foi foi incluído no Hall da Fama na categoria "conectores globais", destinada a indivíduos reconhecidos por terem colaborado com o crescimento da rede ao redor do mundo.

 

Vivenciamos um processo histórico para a internet brasileira: a aprovação da Lei do Marco Civil da internet.  Por que é necessário regulamentar o uso e a distribuição da internet?

Eu não diria que estamos regulamentando. Na realidade estamos criando uma situação em que são defendidos conceitos e princípios da internet contra riscos de regulamentação excessiva ou inadequada que possa inibir a abertura da rede, aumentar a barreira de entrada, deformar a rede para o usuário final ou invadir sua privacidade. O que o Marco Civil tenta fazer é proteger os conceitos e princípios iniciais e básicos da internet de impactos de ideias futuras que, de alguma forma, possam ferir esses preceitos. O Marco tem três pilares básicos: neutralidade de rede, proteção à privacidade e responsabilização, e os três têm funções bastante claras para que a internet continue sendo como é, e não seja censurada, cortada, amputada ou entregue pela metade aos usuários, sem que eles tenham uma experiência completa da rede.

 

Quais são os princípios fundamentais da Lei do Marco Civil, e por quê?

Neutralidade de rede, proteção à privacidade e responsabilização são os princípios fundamentais. É difícil dizer qual é o mais importante, pois depende do que se quer examinar. Empreendedorismo, por exemplo. Se fora da rede um brasileiro tem uma grande ideia, como fazer uma nova estação de TV, sabe que será necessário passar por uma série de procedimentos como licenças de frequência, banda de transmissão, potência e concessão de canal. Ou seja, há muito a ser feito antes da materialização. Na internet basta uma ideia ser jogada na rede para descobrirmos se vai funcionar, sem nenhum tipo de autorização ou permissão. Como se preserva essa possibilidade? Garantindo, por exemplo, que o intermediário, quem teve a ideia, seja responsável apenas por ela, e não pelo que os usuários fazem com a mesma, na rede ou fora dela. Veja o caso do leitor de um blog que escreve uma barbaridade na aba de comentários. Se não houver uma regulamentação para que o dono do blog não seja automaticamente considerado cúmplice, as pessoas terão medo de criar blogs. Sem proteção, há um risco enorme de se sofrer com processos judiciais indevidos. O Marco Civil, nesse sentido, aponta que o intermediário não será responsabilizado, exceto no caso de ordem judicial. Isso traz segurança jurídica e também impede a autocensura automática, pois se o autor não estiver protegido, qualquer reclamação fará com que ele remova o conteúdo do blog, justa ou injustamente, para não ser envolvido em processos. Essa é a parte de responsabilização da rede, um dos pilares do Marco, e afeta basicamente quem gera aplicativos e conteúdos.

 

Como foi o processo de elaboração do Marco Civil até chegar à versão final? O senhor considera que esse processo foi efetivamente multissetorial?

Evidentemente que sempre é possível melhorar. Foram dois anos em exposição e foi também um aprendizado, afinal, ao abrir a primeira consulta pública a um projeto de lei, não há ainda a conscientização da população de que vale a pena dar suas contribuições. A chance de envolvimento logo de início é pequena, mas com o tempo as pessoas que se sentirem afetadas irão se envolver, desde que haja abertura. É o começo de um processo muito positivo. Foi o primeiro projeto de lei que ouviu quem queria falar.

 

De que maneira o Marco civil poderá contribuir para a democratização do acesso à internet no Brasil?

Não há, em minha opinião, contribuição direta nessa área. Ele não vai contribuir diretamente para melhoria de segurança, acesso e difusão da rede, mas vai impedir que medidas ruins sejam tomadas. Sem o princípio de neutralidade, por exemplo, pode haver casos nos quais a internet seja fornecida em pacotes. Uma empresa provedora poderá oferecer uma banda pequena com direito a acesso apenas a correio eletrônico. Isso, obviamente, não introduz um indivíduo à internet. Mesmo em conexões de bandas pequenas deve haver a possibilidade de o indivíduo ter uma experiência completa. É claro que se ele quiser pagar uma mega banda e ver rapidamente muitos vídeos, ele pode; se, entretanto, quiser continuar com seu acesso mais econômico e usar só o correio eletrônico ou ver um vídeo de vez em quando, ele pode também. Ele tem, em ambos os casos, opção de escolha. É importante, portanto, que a experiência de internet fornecida a um usuário, independentemente da velocidade de conexão, seja uma experiência integral. E essa é uma das possibilidades que se garantem com o Marco.

 

Quais serão os principais desafios a partir de agora que o Marco foi votado?

O primeiro desafio é que ele seja entendido adequadamente, para não ser considerado como censura ou como conjuntos de diretrizes contrárias ao que de fato defende. É importante explicar sua aplicação, critérios nos quais será efetivo para proteger os usuários, exceções possíveis etc. No Brasil abriu-se uma exceção aos princípios básicos da internet, por exemplo, quando se fechou o uso da porta 25, apesar de ser uma porta padrão da internet, porque aqui era usada para disseminar spans. Esse é um exemplo de exceção ao princípio da neutralidade que precisou ser feito por juízo. Outro exemplo é a filtragem de alguns endereços para que as chamadas máquinas zumbis não invadam sítios determinados. Essa filtragem, apesar do princípio de neutralidade (que garante que não se impeça o acesso a nenhum sítio da internet), não significa a filtragem de pessoas ou conteúdos, mas a proteção diante de uma situação específica. As exceções devem ser cuidadosamente examinadas para que não se perca todo o princípio.

 

O país acaba de sediar o NetMundial, evento que tratou dos princípios de governança da internet. Em sua opinião, quais foram os principais pontos levantados nas reuniões? Comparado a outros países, como o senhor vê a trajetória do Brasil nas discussões?

O Brasil teve uma grande participação. Tudo o que foi discutido tinha uma participação metade brasileira e metade internacional. O NetMundial teve discussões específicas, mas o mais importante foi eleger um conjunto de princípios universais que norteiem a internet. Houve participação multissetorial e no fim do evento esses princípios foram, de fato, geridos. Outras discussões também importantes e que ganharam destaque foram segurança, preservação de informação pessoal (privacidade), neutralidade e aspectos relacionados à governança participativa multissetorial no que tange à infraestrutura técnica da internet. Sobre o último ponto o evento deu sequência às discussões da reunião de 2013, no Uruguai, que gerou a Declaração de Montevidéu, na qual um conjunto de instituições da área de recursos básicos da internet convocou a globalização de sua gestão, posto que, por motivos complexos e históricos que precisariam ser elencados com muito cuidado, havia, até então, participação majoritária do governo norte-americano nessa gestão. No NetMundial as discussões apontaram para diversos aspectos e, especificamente neste caso, as diretrizes propostas já estão se moldando, visto que a agência norte-americana reguladora de infraestrutura na rede (NPIA) anunciou que não renovará o contrato de supervisão dos serviços, que ficarão a cargo da comunidade (como acontecia até 1998).

 

O senhor foi o responsável pela primeira conexão de internet do país, em 1991. Como foi participar do "nascimento" da internet brasileira?

Houve uma grande equipe envolvida e fui apenas um dos elementos a contribuir para esse processo. Alguns pontos importantes marcaram o início, um deles foi uma reunião na Poli (USP) em 1987, na qual estavam presentes muitos interessados nas ligações acadêmicas; outro foi a escolha da Fapesp como ponto central para ligar as três grandes universidades do país, USP, Unesp e Unicamp, como forma de economia de recursos e gestão coletiva. A Fapesp já tinha alguma experiência com ligações entre computadores com as primeiras conexões com terminais (rede USP) e havia também um bom contato com o CERN, que foi a porta de entrada para as redes. Historicamente, a primeira conexão internacional foi feita no Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC) no Rio de Janeiro, e nós fomos a segunda, mas estivemos em evidência porque ligamos, de forma coordenada, um conjunto de cinco computadores à rede, na época a Bitnet. Foi uma espécie de "redinha", chamada de rede Ansp. No mesmo ano (1989) cadastramos o domínio BR pra dar nome às máquinas no Brasil e foi criada a RNP, que era responsável pela disseminação de redes acadêmicas no país, tendo a Fapesp como centro de operações. Já naquela época soubemos que a Bitnet seria lentamente absorvida por um novo modelo de rede, a internet. A internet tinha seu próprio protocolo (TCP/IP) e rodava em qualquer máquina, enquanto as outras redes só rodavam em máquinas de determinados fabricantes. A internet veio, então, de forma neutra, sobrepor-se como alternativa às redes dependentes de fabricantes. O CERN logo migrou para a nova rede e, em janeiro de 1991, a Fapesp migrou também, e começamos a trocar pacotes de TCP/IP no Brasil, trazendo definitivamente a internet. Ela rapidamente virou a escolha e a Bitnet sumiu definitivamente em 1997. Em 1992 houve um papel importante da internet no Brasil, quando se realizou a Eco 92 e houve conexão disponível para os participantes.

 

Na sua opinião, a internet é, de fato, democrática no que se refere à circulação de informação?

A internet é a coisa mais aberta e acessível em termos de prover acesso à informação e voz ao usuário. Com a entrada da web, a rede deixou de ser apenas usada nos círculos acadêmicos e permitiu o surgimento de redes sociais e também conteúdos gerados por usuários, o que mudou significativamente o modelo de informação. Qualquer indivíduo com celular e câmera hoje pode fotografar um crime ou um acidente e repassar para a rede em segundos. Houve, portanto, uma mudança geral em como a informação é gerada, verificada e circulada. É evidente, entretanto, que no Brasil, com regiões longínquas que não possuem sequer fibra óptica, haverá dificuldade na democratização do acesso. Então, nossa briga deve ser para haver possibilidade de conexão nessas regiões. Quando o indivíduo começa a sentir o gosto pela informação aberta, seja ela verdadeira ou não (e com o tempo o usuário aprende a separar isso), sua vida muda significativamente. Se desconectado, ele perde muito em termos de potencial de direito e de ação.

 

O senhor vê diferença entre a veiculação de informação, papel atribuído de forma amplamente aceita à internet, e a disseminação de conhecimento?

Este é um assunto bem delicado. A rede é ainda ininteligível, está em construção e nós estamos vendo seus alicerces. Entretanto, o que posso garantir é que certamente tudo começa pela informação. E há coisas incríveis como, por exemplo, uma enciclopédia montada pela colaboração de usuários (a Wikipedia), que pode ser tão ou mais confiável que a enciclopédia britânica. Estamos no meio dessa construção e ela se inicia dessa forma, com boatos e misturas de todos os tipos. Depois, é claro, é necessário evoluir, depurar aquilo que é veiculado. O conhecimento já é o "tratamento" desse processo inicial, a intelecção da informação a níveis não triviais. Mas se não começar pela informação, não se tem nada. Não vou dizer que a internet trouxe o conhecimento para resolver os problemas mundiais, mas é certamente um caminho que levou a uma situação muito melhor.

 

É possível apontar as "tendências" da rede?

Não é fácil prever. A rede sempre sobrevive a grandes alterações, e quando achamos que está no limite, ela supera e se expande novamente. Quando houve a conexão na Fapesp em 2mb, por satélite, considerávamos uma velocidade altíssima. Entretanto, depois de o país ter se equipado com fibra óptica, a velocidade aumentou vertiginosamente. A capacidade de armazenamento de dados e de processamento também aumentou de uma forma incrível. Então, o que é possível notar é que, do ponto de vista de infraestrutura, a lei de Moore (que diz que, a cada ano e meio, tudo dobra de capacidade pelo mesmo valor) está valendo já há 40 anos (acreditava-se, inicialmente, que ela não valeria por mais que vinte anos). Por outro lado, em termos de aplicativos, passamos, com a entrada da web, de texto para imagem, de imagem para vídeo, de vídeo para filme, e houve mudança nos horários de pico de tráfego, que antes era em torno de quatro da tarde, horário comercial, e hoje é de madrugada, devido ao uso para entretenimento. Hoje 70% da rede é dedicada ao entretenimento. É muito difícil prever, mas acho que teremos cada vez mais aplicações interativas, bandas maiores para entretenimento em jogos etc. É claro que a área acadêmica não vai ficar apenas observando essas tendências e há grandes chances de surgirem outras tecnologias e outros padrões para supri-la também.