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ComCiência

On-line version ISSN 1519-7654

ComCiência  no.155 Campinas Feb. 2014

 

ARTIGO

 

Eram os deuses biografados?

 

 

Por Miguel Ângelo Montagner

Sociólogo, doutor em saúde coletiva e professor na Universidade de Brasília

 

 

As chamadas ciências sociais – sociologia, antropologia e ciência política, notadamente a primeira, desenvolveram-se e se consolidaram destacando e analisando as características dos grupos sociais ou das sociedades que se repetem de forma mais ou menos regular. Essa repetição representa a regularidade do fato social, passível de estudo.

Assim, a conjuntura de criação e desenvolvimento das ciências humanas implodiram ou dificultaram a possibilidade de tomar as vidas das pessoas, em sua forma cotidiana, como material de análise. Com exceção da história, que privilegiou por algum tempo justamente essas histórias pessoais como objeto privilegiado, se alongando sobre as minúcias e proezas das grandes personalidades.

Os grandes clássicos das ciências sociais tomaram para si a análise, seja da materialidade do mundo social (Karl Marx), seja a capacidade de coerção do mundo social face aos indivíduos (Émile Durkheim) ou a importância dos símbolos sociais e sua lógica nas sociedades modernas (Marx Weber). Como vemos, grandes temas com alto grau de representatividade coletiva. Já na antropologia, as estruturas societárias ou as culturas foram o interesse maior até tempos recentes.

Apontar a sistematicidade do fato social significa colocar as ciências sociais na trilha de objetos de estudo que escapariam dessa forma da singularidade do sujeito individual, isto é, as particularidades e idiossincrasias das pessoas não seriam fontes de dados, mas acontecimentos aleatórios, impossíveis de generalização.

A relação entre biografia e história insere-se em um conjunto mais vasto de dualidades que percorrem as ciências sociais desde muito tempo, baseadas na exploração da dialética indivíduo/sociedade, ação individual/coletiva, liberdade/determinismo, individual/coletivo, estrutura/indivíduo e outras. Essa dialética pendular entre a manutenção no indivíduo de componentes subjetivos sociais e ligados ao grupo onde ele vive e a busca do que é extremamente único e pessoal dentre um aparato mais vasto de representações da memória, internalizadas a partir da sociedade.

A retomada das fontes pessoais e cotidianas de dados, como por exemplo os diários, cartas, narrativas pessoais, entrevistas e outras fontes, voltou à baila com o advento de um conjunto de estudos denominados qualitativos a posteriori de suas realizações. Isso aconteceu em especial nos trabalhos da chamada Escola de Chicago. O filósofo William Thomas, em especial, foi o orientador e influenciou uma série de pesquisadores que trabalharam a partir da virada do século XX, marcadamente dos anos 1920 a 1930 na Universidade de Chicago. Vale ressaltar que esse grupo nunca foi realmente uma escola e nem mesmo tinha métodos harmonizados, mas os resultados dos seus trabalhos acabaram por apontar uma nova forma de abordar o mundo social.

Dentre aqueles influenciados por William Thomas, o primeiro autor a tomar as biografias ou histórias de vida como fonte ou material de análise foi o polonês Florian Znaniecki, autor à quatro mãos com Thomas de O camponês polonês na Europa e nos Estados Unidos (The polish peasant in Europe and America). Nessa obra, publicada de 1918 a 1920, o material analisado foi composto de matérias "pessoais" como as cartas dos imigrados e outros documentos. Para tanto, o autor utilizou cerca de 15000 cartas trocadas pelos imigrados que viviam na América do Norte. O interesse dado às histórias de vida fundou e sistematizou pela primeira vez o método biográfico em sociologia, utilizado para descrever a forma de composição social do grupo de poloneses na nova sociedade.

A retomada mais veemente e sistemática das histórias de vida nas ciências sociais vai ocorrer nos anos 1960 e na retomada contra-hegemônica frente aos métodos quantitativos fortemente ligados, de um forma ou outra, à sociologia estruturalfuncionalista de Parsons, Lazarsfeld e Merton. Seja o interacionismo simbólico nos EUA, seja a perspectiva marxista de Wright Mills, buscava-se reencontrar o sujeito histórico além da avalanche dos números e dos surveys, assumidos como fim e não como meio de pesquisa.

Wright Mills foi um dos poucos pesquisadores a manter uma visão crítica em relação a todo um conjunto de técnicas e metodologias hegemônicas na sociologia do pósguerra. Ao intenso uso de surveys e da proeminência do funcionalismo, o autor propôs um retorno à sociologia artesanal, na qual se conjugassem as implicações pessoais do pesquisador e as demandas societárias estruturais. A proposta era de mediação pela imaginação sociológica, um misto de sensibilidade pessoal, formação profissional e espírito crítico, levando-se em conta a situação do conjunto social. Para Mills, "a ciência social trata de problemas de biografia, de história e de seus contatos dentro das estruturas sociais".

Herdeiro do interacionismo simbólico de George Mead e fino leitor dos trabalhos da década de 1920 da Escola de Chicago, Howard Becker propõe a empreitada científica realizada por acúmulos parciais e sucessivos e localizados em torno de objetos macrossociais e sociais. Ele propõe uma miríade de estudos em torno de um mesmo conglomerado social, o mosaico científico: programa de pesquisas voltado a um domínio específico do mundo social, composto por meio de camadas sucessivas de generalizações parciais e complexas obtidas por meio de análises sistemáticas, cujo resultado final seria a obtenção de um motivo principal. Para ele, a contribuição maior dos estudos biográficos, baseados na restituição fiel da experiência do sujeito e de sua interpretação do mundo onde ele vive, seria o enriquecimento do conhecimento sobre as sociedades, dando uma visão mais apurada dos processos históricos e sociais.

Com a chamada crise dos paradigmas nas ciências do homem, um progressivo enfraquecimento do funcionalismo anglo-saxão e do estruturalismo de origem francesa, essas propostas de valorização das biografias ganham plena significação com o chamado retorno e valorização do sujeito e a explosão, nas ciências humanas, de novos objetos e abordagens. A par desse movimento teórico, houve o enorme ponto de inflexão cujo vórtice foram os movimentos estudantis de maio de 1968, epicentro de movimentos utópicos mundiais.

A tentativa central dessa abordagem é a valorização do mundo subjetivo e das histórias individuais. Daniel Bertaux propõe um mergulho nas experiências humanas e no vivido pelas pessoas em seus mundos cotidianos. Dessa forma, a experiência humana se esforça para se elevar do particular ao geral, a teoria sociológica partiria do geral e histórico para analisar as formas concretas de atualização das práticas das pessoas e dos grupos sociais. O princípio aqui seria que a experiência humana não ultrapassa os limites locais e quase pessoais, pois ela sempre é mediada pela história da própria sociedade.

Essa abordagem biográfica buscaria a união entre níveis de análise comumente tomados separadamente, o socioestrutural (macro, objetivo) e o sociossimbólico (micro, subjetivo): a proposta é de se esforçar por reunir o pensamento do estrutural e do simbólico, e os superar para atingir um pensamento da práxis humana, considerando a dinâmica entre estruturas sociais e cultura.

Franco Ferrarotti defende a história de vida como material primário essencial das ciências sociais, pois acredita que elas possuem a propriedade de portarem invariantes estruturais, "convergências que emergem tematicamente nas histórias de vida singulares no interior de um horizonte histórico dado". Assim, a história faz do ser social um ser histórico, e por meio dela estamos todos unidos. Não uma história tradicional das elites, mas a famosa história "vinda de baixo", história que é "memória coletiva do cotidiano", do que é moeda corrente entre os grupos humanos concretos, pequenos, anônimos, efêmeros.

Ferrarotti assinalou as maneiras até então tradicionais de lidar com as informações obtidas, seja o uso das biografias como material ilustrativo de um conhecimento prévio, seja como estudo de casos e análises qualitativas ligadas e posteriores a dados quantitativos, sendo os últimos os responsáveis pelo estabelecimento de hipóteses entre as relações causais centrais. No entanto, nenhuma proposta discutida até aqui resolve satisfatoriamente o problema. As histórias individuais em si mesmas trazem inúmeras possibilidades de análise e sua representatividade é sempre um ponto de discussão. Ferrarotti defende a ideia da biografia de um "grupo primário" como solução a esse problema.

 

Trajetórias

Diversas propostas surgiram nas últimas décadas, sobretudo a partir dos anos 1970, com a intenção de valorizar esses materiais. Em geral, Bourdieu nelas condenou a ilusão biográfica de um relato ou de uma história de vida, aquela responsável por projetar sobre todo o caminho percorrido pelo sujeito, sobre seus atos, decisões e atitudes, uma teleologia e um sentido obtido por meio de sua situação presente, seja ela valorizada socialmente, seja fracassada em termos de valores sociais dominantes.

A construção de um conhecimento que rompa com o senso comum, escapando das explicações espontâneas e previamente construídas do mundo vivido, possuídas pelos sujeitos, corresponde a um pressuposto de base de quase toda a ciência humana desde os seus primórdios. O conhecimento do vivido não significa necessariamente a compreensão do real, dos fatores fundamentais do universo social. Desta maneira, a abordagem por meio das histórias de vida deve precaver-se da ilusão de transparência do mundo real.

Como assinalaram Bourdieu e Passeron, as relações sociais não podem se reduzir a ligações entre subjetividades animadas por intenções ou motivações porque elas se estabelecem entre condições e posições sociais e transcendem a subjetividade dos sujeitos que elas ligam entre si. Em suma, as realidades subjetivas não compreendem a totalidade social, ainda que nela estejam imersas. Assim, devemos precaver-nos contra a criação da ilusão biográfica, situando claramente os agentes sociais em seu grupo social, procurando narrar e delinear claramente a construção no tempo histórico da trajetória dos grupos nos diversos campos sociais.

Bourdieu aponta que uma trajetória é a objetivação das relações entre os agentes e as forças presentes em qualquer campo social. Isto é, as vontades humanas, em seu embate contra as realidades sociais (escolas, instituições, outros agente sociais dotados de poder) acabam por se expressar de forma objetiva (textos, documentos, discursos, obras artísticas, ações históricas). Essa objetivação resulta em uma trajetória constatável, passível de estudo. As trajetórias são o resultado construído de um sistema dos traços pertinentes (para estudo) de uma biografia individual ou de um grupo de biografias.

O sentido ou sentidos dados por cada agente ou grupo social só ganha solidez científica quando relacionados à estrutura social como um todo. Assim, toda trajetória social deve ser compreendida como uma maneira singular de percorrer o espaço social no tempo, cuja reconstituição parte do ponto de vista externo ao biografado, parte do ângulo de visão de quem reconstitui a sociedade na qual essa biografia se delineia.

Descrever uma biografia, como fez Bourdieu em seu último livro Esboço para uma autoanálise, significa o último e mais sensível passo na empreitada sociológica, pois essa biografia seria uma construção realizada a despeito das intenções pessoais (individuais) e o sentido das ações realizadas pelos agentes em um campo. Vale dizer, a biografia independe do indivíduo, está ligada ao conceito de agente operando em um campo de forças, muitas vezes sem atinar para o sentido real de sua ação, em um conjunto mais vasto de caminhos possíveis à sua geração. Os acontecimentos biográficos são eventos em um fluxo social mais vasto, correspondem a abalos parciais cujo epicentro escapa ao ângulo de mirada do próprio agente.

Em suma, perseguir uma trajetória significa acompanhar o desenrolar histórico de grupos sociais concretos em um espaço social definido por esses mesmos grupos em suas batalhas pela definição dos limites e da legitimidade dentro do campo em que se inserem. Seguramente a origem social é um holofote poderoso na elucidação dessas trajetórias, pois o habitus primário, devido ao ambiente familiar, é uma primeira e profunda impressão social sobre o indivíduo, que sofrerá outras sedimentações ao longo da vida.

Nessa definição de trajetória de vida, no lugar da ideia comum de biografia, toda descrição de uma vida será não autorizada, será à revelia do sujeito. Isso porque o ponto de vista do biografado nunca será soberano, nem único. A biografia deverá ser incorporada no movimento mais amplo da sociedade, no momento histórico correspondente ao do biografado, mas que vai além do que aquele agente pode compreender de sua época. Olhar uma fotografia biográfica sem contextualizar o sujeito social seria como analisar a moda, os trajes, as expressões das pessoas sem considerar a passagem do tempo e o momento histórico, isto é, seria uma análise completamente anacrônica, como é a sensação ao olharmos nossas fotos antigas. Seria olhar as fotos como os retratos de Diego Velázquez. O trabalho das ciências humanas e sociais é de ir além da foto em si, e considerar os elementos ali encontrados no conjunto tendencial da sociedade daquela época, traçando trajetórias sociais e não biografias individuais. Poder-se-ia então pensar nas pinturas de coletivos de Hieronymus Bosch ou Pieter Brueghel.