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ComCiência

On-line version ISSN 1519-7654

ComCiência  no.155 Campinas Feb. 2014

 

REPORTAGEM

 

O encanto pela vida alheia

 

 

Fernanda Domiciano; Kátia Kishi

 

 

Não é difícil perceber o fascínio que as pessoas têm por biografias. Basta olhar a lista dos livros de não-ficção mais vendidos em 2013. Segundo a listagem da Publish News, oito biografias estão entre os 20 livros mais vendidos. Os dois primeiros do topo da lista, inclusive, são obras biográficas: Nada a perder volumes 1 e 2, sobre a vida do pastor Edir Macedo. Em quarto lugar no ranking está Casagrande e seus demônios, seguido pelos títulos Carlos Wizard – sonhos não têm limite (9º), Kardec (13º), Dirceu (14º), Demi Lovato: 365 dias do ano – staying strong (15º) e Eu sou Malala (16º).

Para o professor de jornalismo da PUC-Campinas, mestre em divulgação científica e cultural pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Fabiano Ormaneze, a valorização da biografia não é um fenômeno novo, já que as obras sempre tiveram destaque entre os leitores. Segundo ele, a valorização do gênero está relacionada ao interesse crescente pela vida privada, reflexo da sociedade do espetáculo. "Dá para dizer que são motivos semelhantes àqueles que levam as pessoas a assistirem reality shows, terem perfis em redes sociais, passarem horas observando fotos e postagem dos outros no Facebook. São marcas do biográfico na contemporaneidade", afirma.

Desde a Antiguidade, há notícias de textos biográficos, considerados até como as primeiras formas de registro da história. Destaca-se desde esse período a retratação de figuras que, segundo os então biógrafos, mereciam notoriedade social. Alguns desses pioneiros são os romanos Marco Terêncio Varrão (116 - 27 a.C.) e Cornélio Nepos (100 - 25 a.C.) com as primeiras coletâneas de biografados muito mescladas com história geral. No entanto, de acordo com a historiografia antiga estudada pelo historiador italiano Arnaldo Momigliano, os primeiros relatos autobiográficos já estão presentes na Inscrição de Bihistun, na Pérsia (atual Irã), onde o rei Dário I (550 - 486 a.C.) escreveu sobre si mesmo com objetivo de se autoglorificar.

O aperfeiçoamento desse gênero literário começou a se desenvolver com o grego Plutarco (46 - 120 d.C.) – que tornou-se cidadão romano e adotou o nome Lucius Mestrius Plutarchus –, com a obra Vidas paralelas, que registrou duplas de relevância moral na Grécia e em Roma. O objetivo de seus relatos era retratar os valores a serem seguidos pelas outras pessoas. Assim, Plutarco escreveu textos de duplas como Teseu e Rômulo (fundador político de Atenas e mitológico de Roma, respectivamente), Demóstenes e Cícero (que consolidaram a oratória) e Alexandre e César (príncipes que forjaram impérios), por exemplo.

Outro renomado biógrafo da Antiguidade é o romano Suetônio – Caius Suetonius Tranquillus (69 - 141 d.C.) –, com as obras Sobre os homens ilustres, que trata da vida de poetas como Horácio e Virgílio, e A Vida dos doze césares, seu texto mais conhecido, que trata dos imperadores romanos desde Júlio César até Domiciano. Suetônio tinha acesso à vida dos imperadores, pois se dedicou aos serviços públicos, cuidando das bibliotecas imperiais e das correspondências. O tom humorístico é característica marcante na sua obra e o diferencia dos autores das laudationes funebres, elogios póstumos, biografias comuns em Roma, feitas para preservar a imagem de ancestrais, na maioria das vezes, com notável participação política. Entre os autores de laudationes, pode-se mencionar o historiador Públio Cornélio Tácito (55-120 d.C.) que escreveu elogios ao seu sogro em Sobre a vida e o caratér de Júlio Agrícola, general que conquistou a Britânia durante o reinado de Domiciano.

A ideia de registro de personalidades que serviriam como exemplo humano continuou e ganhou força na Idade Média com a aparição das hagiografias, encarregadas de em modelar valores com o retrato da vida de santidades, heróis e mártires. Para Ormaneze, esse processo de catarse que a leitura das biografias provoca nada mais é que uma busca por identificação. "Lemos as histórias de pessoas que, por algum motivo, nos tocam ou são importantes, porque queremos, de alguma forma, entender o que as fizeram assim e que exemplos podem nos trazer", aponta. O professor da PUC complementa que essa ligação intrínseca entre a leitura e a projeção de vida do biografado é uma forma de humanização, até mesmo dos supostos ídolos, que têm problemas e alegrias como qualquer outra pessoa, transmitindo, assim, ao leitor a sensação de pertencimento de grupo.

No texto biográfico de Alexandre e César, Plutarco relatou que não se pôs a escrever sobre história, mas sim sobre vidas; no entanto, esse conceito foi posto em discussão no decorrer do desenvolvimento do gênero biográfico, já que ele é propício para investigação da memória coletiva, como afirma a professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Verônica Sales Pereira, doutora em sociologia. Pereira, que tem foco de estudo em memória coletiva, também afirma que até mesmo as biografias de pessoas não-famosas têm valor como elemento de conhecimento sobre uma sociedade, cultura ou momento histórico. "A biografia de qualquer pessoa, seja ela anônima ou não, envolve sempre uma experiência partilhada socialmente, na qual se entrecruzam elementos da vida pessoal e da vida pública, da história individual e da história coletiva", explica.

No Brasil, as primeiras biografias de destaque surgiram com a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro durante o século XIX, com o relato da vida de brasileiros considerados ilustres e que também serviriam como exemplo para os leitores, sendo o primeiro texto dedicado ao poeta José Basílio da Gama. Da mesma forma que o gênero se desenvolveu próximo à historiografia na Antiguidade, as primeiras biografias brasileiras não foram diferentes, com a produção de memórias e notícias históricas com intuito de "purificação dos erros" da história nacional.

O desenvolvimento dos textos biográficos continuou avançando entre os brasileiros e estrangeiros e, com ele, também desenvolveu-se uma variação de estilos. Apesar de não se tratar de ficção, para conseguir que os leitores tenham a identificação e interesse pela leitura das obras, a maioria dos autores – que no caso da biografia podem ser jornalistas, historiadores, sociólogos ou escritores – busca dar ao leitor a impressão de estar diante de um romance. A leitura precisa fluir a partir de narração, descrição e diálogo. De acordo com Ormaneze, é necessário que o leitor visualize a cena, os lugares, as pessoas, os sentimentos e as sensações. "Evidentemente, isso só será possível se o biógrafo estiver muito imerso na história de vida do biografado, fizer uma pesquisa aprofundada o suficiente para conseguir construir essa narrativa. Se não fizer isso, perderá muito material e a riqueza de detalhes que um relato sobre alguém merece e pode ter", afirma.

A obra O anjo pornográfico – a vida de Nelson Rodrigues, lançada por Ruy Castro em 1992, é um exemplo de biografia que consegue se aproximar de um romance. Para escrever o livro, Ruy Castro entrevistou 125 pessoas próximas ao dramaturgo, jornalista, romancista, escritor e cronista biografado, além de fontes próximas à sua família. O próprio autor esclarece na obra: "Se a narrativa de O anjo pornográfico lembra às vezes um romance é porque não há outra maneira de contar a história de Nelson Rodrigues e de sua família. Ela é mais trágica e rocambolesca do que qualquer uma de suas histórias, e tão fascinante quanto. É quase inacreditável que o que se vai ler aconteceu de verdade no espaço de uma única vida".

Esse envolvimento com a vida do personagem pode acarretar em um perigo ao biógrafo: fugir da composição de uma identidade e transformar o personagem em um mito. Ou como já disse o presidente dos Estados Unidos, Jonh Keneddy, "o grande inimigo da verdade muitas vezes não é a mentira, deliberada, artificial e desonesta, mas o mito, este sim persistente, persuasivo e irrealista". Para evitar esse erro, de acordo com Pereira, o biógrafo deve ter "filtros" de tempo, espaço e subjetividade para reconstruir o passado, sem sofrer tanto com as omissões, esquecimentos ou censuras de fatos, que se agravam mais se o biografado for vivo. Nesses casos, a professora da Unesp orienta que quem relata histórias deve aprender a interpretar as subjetividades nas pesquisas ao invés de limitar a biografia. "Aí, entra a ética e sensibilidade do biógrafo, a fim de construir uma 'imparcialidade' – que é sempre relativa – calcada na pesquisa de elementos considerados mais 'objetivos' (fotos, vídeos, documentos, entrevistas etc.)", avalia.

Em relação à imparcialidade, Ormaneze acrescenta que o autor deve ouvir o maior número possível de pessoas, principalmente aquelas que, sabidamente, terão algo de ruim para falar sobre o retratado. "Às vezes, a biografia cresce muito mais em humanização quando se fala com um desafeto do personagem do que quando se está do lado daqueles que o amam, o respeitam", explica.

 

Biografia x perfil

A biografia é um gênero híbrido entre jornalismo, história e literatura. Sua proposta é contar uma versão da história de vida de uma pessoa, reconstruindo a trajetória de um personagem do começo ao fim, ou então do começo até o presente, caso o personagem esteja vivo, e conciliando com o contexto histórico coletivo, privado e com percepções de outras pessoas para compor a obra.

Já o perfil é um gênero eminentemente jornalístico, que é produzido a partir da metodologia do jornalismo literário, com preocupação estética e construção narrativa semelhante à da literatura. O texto é geralmente mais curto, produzido, para ser publicado em revista, jornal, site ou televisão e com enfoque no personagem retratado e não tanto no seu panorama de vida ou de seus conhecidos.

"A perspectiva do perfil é mostrar o presente do personagem, mostrar quem ele é hoje. Evidentemente, há de se recorrer à história, mas apenas na medida em que seja preciso para explicar o presente. Não há o mesmo aprofundamento na caracterização das pessoas e na descrição do passado como numa biografia", explica o professor da PUC-Campinas.

Outra diferença é que os perfis são produzidos com pessoas vivas, com o objetivo de apresentar ao público quem é aquela pessoa. "A biografia pode ser feita com pessoas vivas ou mortas, embora a maioria dos biógrafos prefira os já falecidos para evitar as reviravoltas e as influências", afirma Ormaneze.

Com o passar dos séculos, as biografias se modificaram muito em relação às pioneiras, tanto em estilo como nos focos de narração. Mesmo quando tratam de um mesmo biografado, obras de diferentes autores têm traços distintos, com pesquisas e "filtros" próprios adotados por cada um, como destaca Pereira. Seja como perfis ou textos mais detalhados sobre a vida de alguém, cada biógrafo deve "buscar interpretar as idiossincrasias, lacunas, censuras, desmentidos que surgem na biografia, não como algo a ser descartado como insuficiência desse tipo de narrativa, mas para entender os seus sentidos, a sua produção, a sua relação com os consensos e verdades estabelecidas na experiência do indivíduo e o que elas nos dizem a respeito da sociedade em que ele vive", afirma a socióloga.

Assim, os textos biográficos continuam despertando o interesse do público na busca constante de inspiração nos ídolos, identificação social e compreensão dos fatos históricos e contemporâneos, mesmo quando se trata de um trabalho sobre a vida de desconhecidos, heróis, santidades ou dos amigos nas redes sociais. Como ressalta Ormaneze, cada um, na sua particularidade, contribui para uma compreensão da memória individual e coletiva sobre a constante sociedade do espetáculo.