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ComCiência

On-line version ISSN 1519-7654

ComCiência  no.154 Campinas Dec. 2013

 

ENTREVISTA

 

Ana Maria Machado

 

 

Cristiane Delfina

 

 

Autora de mais de 100 livros entre textos infantis, infantojuvenis e adultos publicados no Brasil e em mais de 18 países, acadêmica e jornalista, Ana Maria Machado é um nome presente em diferentes culturas. Títulos como Menina bonita do laço de fita (1986), Bisa Bia, Bisa Bel (1981) e adaptações de contos de história oral e folclores alimentaram a imaginação de muitos leitores. Essa vasta produção, somada à sua trajetória profissional e pessoal levaram-na a ser a segunda mulher a ocupar a presidência da Academia Brasileira de Letras (ABL). Muito antes do fim impresso no papel está o processo de construção das histórias e, como são muitos os alimentos para as ideias, é reveladora a importância da leitura para quem escreve.

Em seu discurso de posse na presidência da Academia Brasileira de Letras, em 2012, você traça suas heranças de amor pela literatura, mencionando a avó contadora de histórias, o avô amante dos livros, encontros com autores como Manoel Bandeira e proximidade com seu antecessor Evandro Lins e Silva. Sua vida traz experiências de militância, exílio, dificuldades e realizações acadêmicas importantes. Tudo sempre costurado ou talvez alimentado pela literatura. Dito isso, o que são as letras para você?

São parte intrínseca de minha vida, como enxergar, caminhar, ouvir. Desde que tenho memória, leio e escrevo. Não consigo me imaginar sem isso.

No mesmo discurso, menciona os primeiros ocupantes da presidência da Academia: Luís Murat e Adelino Fontoura, e os caracteriza, respectivamente, como o ousado e o jovem, qualidades originais da ABL, porém "que, em geral, não ficaram associadas à sua imagem pública corrente, preferencialmente pintada como um rochedo conservador inabalável. O que é a ABL hoje e qual seu papel para a cultura brasileira?

A ABL é uma instituição cultural mais do que centenária, e que ocupa um papel privilegiado no imaginário brasileiro. Estou apenas constatando, não analisando. Quem primeiro me chamou a atenção para isso foi o saudoso acadêmico Celso Furtado, mal eu fui eleita. Logo pude comprovar que era verdade, até mesmo na maneira carinhosamente orgulhosa como um feirante ou motorista de táxi passava a me reconhecer como um de seus membros. Talvez por sermos um país muito novo, onde nada dura muito, o fato de ela continuar a ter esse papel desde o século XIX, com os mesmos estatutos, contribui para sua mítica. Uma cultura se faz de um jogo dinâmico e dialético entre vários componentes. É preciso haver tradição e antitradição, memória e invenção, cânone e contestação. A ABL reflete isso e será forte enquanto – mesmo aparentando representar mais a tradição, a memória e o cânone –, seja capaz de se fazer espaçosa para também receber e consagrar os exemplos da antitradição, da invenção e da contestação, seja por meio dos prêmios que concede, dos eventos culturais que apresenta ou do acolhimento a criadores iconoclastas.

Quais são os desafios de ser escritora no Brasil? Quais são as dinâmicas do mercado editorial aqui e qual é o reconhecimento da literatura brasileira fora do país?

O reconhecimento da literatura brasileira fora do país está ligado ao reconhecimento do Brasil como um todo, e de sua cultura, como um lugar que vá além de um paraíso tropical de natureza exuberante e seja uma nação capaz de produzir obras respeitáveis que consigam ir além da cultura do corpo (samba, futebol, dança em geral, capoeira, gente bronzeada nas praias, caipirinha etc). É um processo de lenta construção. Além disso, precisa ser consolidado por políticas de sustentação, como o apoio a traduções (que existe há anos, mas melhorou muito, recentemente) e o estímulo ao estudo de nossos autores em universidades estrangeiras (que existiu razoavelmente bem durante algum tempo por meio dos leitorados mas foi descontinuado na última década).

As plataformas digitais para leitura e compra de livros afetou sua produção, reconhecimento e/ou ganhos financeiros?

As plataformas digitais não tem nada a ver com a produção, da mesma forma que o tipo de papel em que o livro é impresso não muda a minha maneira de escrever. Pode ter alguma influência nas vendas, não sei, não há como medir isso, nem saber se é para mais ou para menos. O reconhecimento, sim, pode ter sentido alguma influência, com a quantidade de blogs e manifestações de leitores. Mas é difícil saber em que medida isso não ocorre também devido à idade e à consolidação de uma obra que está sendo lida ininterruptamente há mais de quarenta anos.

Como se dá seu processo de escrita e de onde vem seus principais estímulos e influências?

Procuro escrever com método e disciplina, todos os dias, ainda que isso não signifique que aproveito sempre o resultado dessa escrita cotidiana. Os estímulos podem vir de qualquer lugar, tudo pode detonar a escrita. Mas creio que, basicamente, é uma mescla de três linhas. A primeira vem do passado – é a memória do que vivi, ouvi, vi, li. A segunda olha o presente, e desenvolvi muito a observação do que está em volta quando fui jornalista. A terceira não é do presente nem do passado porque nunca existiu – é a imaginação, a capacidade de fingir que é real aquilo que nunca existiu.

No momento de transformar tudo isso em história, como lida com as questões culturais, políticas e sociais em seu trabalho? Essas questões se refletem em suas produções e existe alguma cobrança "conteudista" ou moralista sobre sua criação?

Não me preocupo a mínima com isso em meu trabalho. O que sair, saiu. Mas é evidente que, como cidadã e como ser humano, me preocupo, e muito, com tudo o que me cerca. Leio jornais diariamente, converso com amigos e conhecidos sobre tudo, tomo partido diante de tudo, prezo valores éticos no convívio, talvez até de modo excessivamente rigoroso, como frequentemente sou acusada de fazê-lo. Então, tudo isso se reflete no que escrevo. É inevitável, mas não é intencional.

Quem são seus leitores? Existe interação com eles, troca de reações e interpretações?

Não sei quem é meu público leitor. Nunca tive conhecimento de nenhuma pesquisa a respeito. Sei apenas que é variadíssimo, de todas as idades, classes sociais e regiões do país, pois os leitores com esses diferentes perfis se manifestam o tempo todo. Não apenas das formas mais evidentes, como seria de se esperar: blogues, comentários na internet, emails e cartas aos editores, conversas em feiras, bienais e visitas a colégios ou universidades. Mas sempre também de formas surpreendentes. Alguém que me aborda na rua, um vendedor numa loja, alguém sentado a meu lado no avião (semana passada mesmo aconteceu), alguém que reconhece meu nome por telefone (liguei para uma empresa buscando informações ontem e a atendente me identificou como autora de um livro que amou), um jornalista que vem me entrevistar e confessa que aprendeu a ler num livro meu, um técnico de laboratório que enquanto tira meu sangue comenta sobre um de meus personagens, a atendente no check-in do aeroporto que vai falando sobre um romance meu enquanto emite o cartão de embarque... Enfim, de tudo um pouco.

Certa vez em uma entrevista você afirmou que os professores brasileiros possuem pouca formação em arte, o que prejudica o espírito crítico e o reconhecimento da "boa literatura". O que considera a " boa literatura"?

Há livros e livros sobre isso, ninguém consegue definir. Mas gosto de dois enfoques sobre o tema. O primeiro, de um menino de uns dez anos numa escola, que me perguntou sobre o que eu considerava um bom livro. Eu lhe devolvi a pergunta e ele explicou: "É um livro que tem surpresas, mesmo quando a gente já conhece a história e está relendo. Porque pode ser surpresa no jeito de escrever e nas coisas que a gente pensa depois de ler".

O outro é do sociólogo Roger Chartier quando diz que em todas as tentativas de definição do que seria literatura, ele vê um ponto em comum: a capacidade que um texto pode apresentar, de que nele as palavras sejam usadas de forma a permitir reapropriações múltiplas. Ou seja, que leituras diferentes encontrem coisas diferentes, mesmo se forem feitas pela mesma pessoa em ocasiões diferentes.

Pesquisas realizadas por psicólogos e neurologistas têm apontado a leitura de ficção como agente positivo nos processos cognitivos e afetivos da mente e revelam as adaptações do cérebro como o despertar da capacidade de perceber diferenças sutis e de memorizar informações. Como estimular a leitura num país com realidades tão diversas como o Brasil?

Se houvesse uma receita, já estaria sendo divulgada e aplicada por todos, em toda parte. Mas acho que já avançamos muito nos últimos vinte anos, em um aspecto que representava um obstáculo enorme e hoje já não é mais tão difícil: o acesso aos livros. Não só há mais gente na escola, sendo alfabetizada, como hoje há programas governamentais em todos os níveis (federal, estadual e municipal), além de iniciativas privadas, que levam livros a todo canto no Brasil. Quem quer ler tem hoje muito mais probabilidade de encontrar uma biblioteca, escolar ou não, e nela escolher livros. O que nos falta é valorização da leitura de prazer (e não apenas utilitária, de dever ou para fazer prova) e intimidade com os livros. Faltam exemplos de pessoas lendo e falando de livros, que estejam perto do cidadão comum ou na mídia a seu alcance. Falta que, entre os formuladores de políticas de leitura, haja muita gente que goste de ler literatura – ficção, poesia, teatro, ensaios. Gente que tenha paixão por esse tipo de leitura e entenda que todos têm direito a ela, que ler esse tipo de livro não é perder tempo.