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ComCiência

versión On-line ISSN 1519-7654

ComCiência  no.153 Campinas nov. 2013

 

ARTIGO

 

(Des)ilusões freudianas

 

 

Por Ramon José Ayres Souza

Psicólogo, psicanalista, doutor em psicologia clínica (IP/USP) e professor titular da Universidade Tiradentes. E-mail: ramon.souza@usp.br

 

 

A proposta de abordar psicanaliticamente a noção de ilusão nos remete diretamente ao escrito freudiano O futuro de uma ilusão, de 1927. Nele encontramos uma definição de ilusão que se distingue do erro e da falsidade. Para Freud, o que interessa na caracterização da ilusão é a presença de um desejo que busca satisfação, ainda que para isso desconsidere a própria relação com a realidade. Nesse percurso, a crença religiosa é tomada como protótipo de ilusão, justamente por abarcar um desejo: a busca por pai capaz de nos proteger contra o sentimento de desamparo. Sentimo-nos crianças diante dos impedimentos civilizatórios e, por isso, criamos os deuses e as religiões.

A religião, no entanto, não é a única produção humana para lidar com o sentimento de desamparo, oriundo do insolúvel conflito entre as forças pulsionais e as barreiras da civilização. Ao longo da obra freudiana – principalmente no escrito de 1930, O malestar na civilização –, nos deparamos com outras formas de enfrentamento da condição trágica humana: a ioga, o isolamento (tentativas de controlar ou aniquilar totalmente as pulsões) ou mesmo a intoxicação que promove, através de prazeres criados quimicamente, uma supressão temporária da angústia e da impotência. Até mesmo a filosofia não escapa do caráter ilusório, uma vez que promete explicar de maneira totalizante "um quadro do universo que seja sem falhas e coerente, embora tal quadro esteja fadado a ruir ante cada novo avanço em nosso conhecimento" (Freud, 1933).

Freud parece só salvar das teias ilusórias a ciência, considerada uma espécie de antiilusão, instrumento de combate e denúncia das ilusões (principalmente religiosas). Ilusão seria buscar em outros territórios aquilo que a ciência não pode oferecer. É evidente que essa concepção freudiana de ciência está distante do modelo positivista. O próprio autor nos alerta dos perigos ilusórios de algumas concepções científicas prometerem felicidade às custas da dominação da natureza. O alvo da crítica freudiana é a própria ideia de progresso como condição para uma verdadeira e plena felicidade, um ideal impossível de ser alcançado.

A felicidade plena também consiste em uma crença ilusória do homem. A própria experiência civilizatória exige uma renegociação, ou seja, o abandono de intensas satisfações diretas, em prol de pequenas satisfações substitutivas. Desse modo, aparentemente só nos restam as ilusões defensivas do sintoma, da droga, da religião e das explicações onipotentes. Só? Não haveria outras possibilidades, menos sintomáticas e mais criativas, de produzir ilusões?

A via de entendimento nos leva ao território da arte. Assim como a religião consiste no protótipo de ilusão defensiva, a criação artística é apresentada na obra freudiana como uma espécie de ilusão criativa. Na arte, diferentemente da religião, o sujeito não está submetido a uma instância onipotente que sequestra o desejo. O desejo está posto em jogo na produção da obra. O artista erotiza a sua criação.

Para compreender melhor o estatuto criação artística na teoria freudiana, é preciso lançar mão da noção de sublimação. Oriunda da química – a transformação do estado sólido diretamente em gasoso, sem passar pelo líquido –, a sublimação também remete à ideia de sublime, de elevado. Por promover satisfações não-sintomáticas, ou seja, sem sucumbir aos efeitos do recalque, a sublimação seria, de acordo com Freud, um destino pulsional pouco acessível. A sublimação "pressupõe a posse de dotes e disposições especiais que, para qualquer fim prático, estão longe de serem comuns" (Freud, 1930). Em suma, somente aqueles que possuem certo "dom", digno dos artistas e cientistas, seriam capazes de sublimar.

É certo que a noção freudiana de sublimação é paradoxal. Ao mesmo tempo em que é ressaltado esse caráter especial do processo sublimatório, também é mencionado, ao longo da obra, um caráter constitutivo. A sublimação, ao promover a dessexualização, faria parte do desenvolvimento de cada indivíduo e teria como momento inaugural o período de latência sexual da infância – período pós-edípico, em que a criança redireciona a libido para novos objetos: as atividades escolares e as amizades, por exemplo. Esse redirecionamento seria efetivado através do processo de sublimação, o que escancara a imprecisão e a ambiguidade conceituais.

Deixando um pouco de lado os paradoxos que circundam a temática da sublimação, cabe ressaltar que a noção nos interessa na medida em que evoca a sua relação com a ilusão e, de modo mais particular, com a realidade. Assim, segundo Freud (1930), na sublimação, "a distensão do vínculo com a realidade vai mais longe; a satisfação é obtida através de ilusões, reconhecidas como tais". Chamo atenção aqui para a ideia de que a sublimação consiste, ela própria, em uma ilusão. Uma ilusão, contudo, que se reconhece como tal.

O ponto fundamental que começa a se impor na tentativa de compreender as nuances entre o processo sublimatório e o ilusório, é a lucidez. Aquilo que chamamos inicialmente de ilusão criativa pode ser entendido como uma ilusão que possui uma reflexividade, ou melhor, uma lucidez de se reconhecer como ilusão e não como uma verdade (como acontece com a religião). A única verdade admitida é a verdade do desejo.

A arte não é a única via possível em direção a uma ilusão criativa, reflexiva e sublimatória. Em 1927, mesmo ano de publicação de O futuro de uma ilusão, Freud publica um pequeno, porém fértil, texto sobre a criação humorística. De imediato cabe evocar a afirmativa freudiana de que no humor há um repúdio da realidade por parte do superego, que se coloca a serviço de uma ilusão: a de triunfar narcisicamente diante das "provocações da realidade". O Ego se recusa a sofrer, produzindo prazer das mesmas fontes de sofrimento. Não se trata simplesmente de um afastamento defensivo da realidade, mas de uma transformação dessa realidade em prazer compartilhado, como na piada. Desse modo, a constatação da tragicidade como uma condição inerente ao humano é, juntamente com a lucidez, aquilo que distingue as ilusões defensivas das ilusões criativas ou sublimatórias.

Além da arte e do humor, podemos enumerar uma terceira forma de pensar a ilusão criativa na teoria freudiana: o brincar. No texto de 1908, intitulado Escritores criativos e devaneios, Freud compara o brincar infantil à criação literária. Para ele, tanto a criança quanto o escritor criam um mundo de fantasia no qual investem uma grande quantidade de emoção, enquanto mantêm uma separação nítida entre o mesmo e a realidade. Assim, como no humor, o brincar infantil também transforma as fontes penosas em prazer. O desamparo é experienciado através do jogo, o que nos permite associar o brincar ao campo ilusório trágico-criativo.

Diante do exposto, imaginamos que o chamado desilusionamento parece não consistir no abandono ou destruição em si das ilusões (o que talvez seja da ordem do impossível), mas em seu reconhecimento. Em outros termos, o desilusionamento em Freud estaria mais próximo de uma ilusão criativa que se reconhece como tal, como encontramos na sublimação.

 

Referências

Freud, S. (1908[1907]). Escritores criativos e devaneios. In: Edição Standard Brasileira das obras completas de Sigmund Freud (E.S.B.), v. IX, Rio de Janeiro: Imago.

_________. (1915). Pulsões e destinos da pulsão. In: Obras psicológicas de Sigmund Freud. v. 1. Rio de Janeiro: Imago.

_________. (1920). Além do princípio do prazer. In: Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (E.S.B.). v. XVIII. Rio de Janeiro: Imago.

_________. (1927a). O futuro de uma ilusão. In: Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (E.S.B.). v. XXI. Rio de Janeiro: Imago.

_________. (1927b). O humor. In: Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (E.S.B.). v. XXI Rio de Janeiro: Imago.

________.(1930). Mal-estar na civilização. In: Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (E.S.B.). v. XXI. Rio de Janeiro: Imago.

________. (1933[1932]). Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise: Conferência XXXV: a questão de uma Weltanschauung. In: Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (E.S.B.). v. XXII. Rio de Janeiro: Imago.