SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 issue152A ciência aos olhos da sociologiaRegistro author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Article

Indicators

  • Have no cited articlesCited by SciELO

Related links

  • Have no similar articlesSimilars in SciELO

Bookmark

ComCiência

On-line version ISSN 1519-7654

ComCiência  no.152 Campinas Oct. 2013

 

ENTREVISTA

 

As configurações da controvérsia científica no contexto da globalização

 

 

Maria Marta Avancini

 

 

Debate público mais amplo influencia as pesquisas, assim como o lucro das empresas, o controle exercido pelos governos e o interesse de alguns grupos

No mundo globalizado, as controvérsias científicas assumem contornos próprios, diferentes do que ocorreu ao longo da história da ciência: o maior acesso à informação, decorrente da difusão dos meios de comunicação, acarreta a multiplicação dos pontos de vista e dos atores envolvidos no debate.

Esta é uma das ideias defendidas pelo professor Brian Martin, que leciona ciências sociais na Universidade de Wollong, na Austrália. Autor de 13 livros e vários artigos sobre controvérsia científica, comunicação e democracia, dentre outros temas, Martin acredita que, no mundo contemporâneo, os contornos assumidos pela ciência e seus impactos na sociedade dependem da correlação de forças entre o poder da ciência e o poder da sociedade na arena do debate público.

Leia, a seguir, a entrevista que o professor Martin concedeu à ComCiência.

Qual a diferença entre controvérsia, debate e revolução científica?
Controvérsia e debate têm significados muito próximos, basicamente traduzem uma discordância aberta em relação a um aspecto de uma teoria ou de um resultado.

Já a revolução científica diz respeito a uma mudança de um determinado paradigma de compreensão. O exemplo clássico vem da física, com a teoria quântica. Mas não temos visto revoluções como essas há algum tempo, elas não são tão frequentes.

Do ponto de vista da história da ciência, as controvérsias sempre existiram ou elas surgiram numa determinada época?
Acredito que as controvérsias sempre existiram, pois sempre houve discussões sobre como descrever e explicar o mundo. Nessa perspectiva, podemos remontar a 2 mil anos.

Há diferentes visões sobre a natureza da realidade e, portanto, também há diferenças entre as explicações científicas dessa realidade. Isso ocorria antes mesmo de surgir a ciência empírica moderna.

O que pode ser caracterizado como controvérsia, então?
Existem vários tipos de controvérsia na ciência, porque as pessoas discordam em relação às descobertas. Na ciência em si, há debates a respeito das teorias, tais como a origem da Lua, questões geológicas como o movimento dos continentes. Esse tipo de controvérsia é interessante, mas as que mais me interessam são aquelas que envolvem a dimensão pública, aquelas que combinam a dimensão pública, social, com a científica.

Por que as controvérsias que têm impacto social são mais interessantes, a seu ver?
Porque essas questões afetam muitas pessoas, diferentemente dos debates que se dão apenas no âmbito científico e que, geralmente, afetam o conhecimento científico e os cientistas, embora colaborem para o avanço da ciência.

Além disso, atualmente, no contexto da globalização, é comum que as controvérsias científicas sejam, frequentemente, entremeadas por controvérsias sociais, influenciando inclusive o resultado da controvérsia, dependendo da relação de forças entre o poder da ciência e o poder social.

Então, a configuração da controvérsia pode mudar de um país para outro, mesmo que um tema esteja sendo discutido em várias partes do planeta. O debate sobre aquecimento global ilustra o que quero dizer.

É possível dizer que existe um consenso científico amplo em relação ao impacto da atividade humana nas mudanças climáticas e que os céticos (aqueles que defendem que a aumento da temperatura da Terra resulta de causas naturais) têm pouca credibilidade no campo da ciência.

Apesar disso, nos Estados Unidos, há muito debate público sobre as mudanças climáticas e, apesar do descrédito de que os céticos gozam no meio científico, eles recebem muita atenção na mídia. Nos Estados Unidos, o governo foi contra a adoção de medidas efetivas contra a emissão de gases de efeito estufa.

Já em outros países, o argumento dos céticos não tem tanta repercussão na sociedade e a configuração política também foi diferente.

Por que, em sua opinião, as controvérsias são um meio de produzir o avanço da ciência?
O público, em geral, tende a acreditar que a ciência é feita com base em fatos, observação direta, mas ao se analisar o que de fato acontece na ciência, constata-se que há sempre incertezas e disputas a respeito da interpretação das evidências.

Há também abordagens consagradas, que as pessoas não querem abandonar, então há situações em que as pessoas ajustam suas teorias ou ignoram determinadas evidências, a fim de sustentar essas abordagens que querem sustentar.

Nesse sentido, a ciência é tanto um processo dogmático, quanto uma investigação aberta. Esse fato está relacionado com as questões associadas às controvérsias que envolvem dimensão pública, que afetam muitas pessoas, como agrotóxicos, energia nuclear, mudanças climáticas, que têm grandes impactos na vida humana, muitas vezes.

Os cientistas se interessam por essas questões, mas não-cientistas se interessam por elas também.

Hoje em dia, o senhor diria que o conceito de controvérsia mudou em relação ao passado? E o impacto mudou?
Existem pontos em comum, mas também diferenças entre o que acontece hoje e o passado. Uma diferença importante é que atualmente há muito mais cientistas na ativa e a comunicação é mais fácil, então há mais pessoas envolvidas nos debates. No passado, poucas pessoas tinham acesso a livros e compreendiam as questões, então os debates eram mais restritos. Agora, qualquer pessoa pode ler sobre um assunto na Wikipedia, há uma variedade de fontes de informação, existem os blogs.

A comunidade científica em si é muito maior, há mais recursos, então há mais pessoas debatendo.

O senhor vê mais atores e ideologias nos debates acerca das questões que perpassam o debate público, como mudanças climáticas e energia nuclear?
Certamente, há pontos de vista políticos, religiosos e econômicos envolvidos nos debates.

Na verdade, se você olhar para esses debates, os cientistas estão preocupados principalmente com as questões científicas, mas também há cientistas que podem ter alguma ligação profissional com uma empresa, o que pode trazer um viés econômico ao debate, ou gerar impactos políticos. Além disso, há pontos de vista religiosos e políticos que podem ser incorporados ao debate, à controvérsia, dependendo do lugar a partir do qual os sujeitos falam – direita, esquerda, por exemplo. Há todo tipo de perspectiva.

Nem sempre esses atores estão preocupados com as questões e controvérsias científicas propriamente ditas, mas são pontos de vista que se tornam relevantes para o debate.

Em sua obra, o senhor discute o impacto das controvérsias e dos debates sobre o avanço da ciência. De que maneira isso se dá?

O debate no campo da ciência nem sempre se configura como uma controvérsia. No caso das mudanças climáticas, por exemplo, a maior parte das pesquisas sustenta a visão do IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas], mas também existem os céticos, aqueles que discordam dessa visão.

Estes acabam desempenhando um papel importante, porque levam os outros pesquisadores, aqueles ligados à visão majoritária, a olhar para aspectos que talvez eles não levassem em conta sem os argumentos e críticas dos céticos.

Mas é preciso avaliar caso a caso, não é possível fazer generalizações sobre o impacto dos debates sobre a ciência.

De qualquer forma, a existência do debate público mais amplo sempre influencia as pesquisas que são realizadas, assim como os lucros das empresas, os controles exercidos pelos governos, os interesses de alguns grupos e também os interesses políticos.