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ComCiência

versão On-line ISSN 1519-7654

ComCiência  no.151 Campinas set. 2013

 

RESENHAS

 

Silêncio e sentido: extrapolando o formalismo na linguagem

 

 

Cintia Cavalcanti

 

 

Livro propõe uma reflexão sobre as diferentes formas e significações do silêncio a partir de uma perspectiva discursiva

Seria o silêncio redutível  à ausência de palavras, a um mero acidente da linguagem?Poderíamos  apreender  sua  significação  mais  profunda,  tomando-o  pelo  sentido "passivo" e "negativo" que lhe foi atribuído nas formas sociais de nossa cultura? Apesar do silêncio ter sido relegado a uma posição secundária como excrescência, como "resto" da linguagem, a partir da perspectiva discursiva apresentada pela linguista Eni Orlandi em As formas do silêncio, ele pode ser visto de uma maneira diametralmente oposta, como o cerne do funcionamento da linguagem.

Nessa obra, a autora se coloca o desafio de tomar o silêncio como objeto de reflexão, fazendo com que o leitor caminhe na relação entre o dizível  e o indizível, a partir da exploração  dos  entremeios  tanto  das  disciplinas  como  das  diferentes  teorias  da linguagem,  a  fim de  atribuir-lhe  significação,  demonstrando  sua  multiplicidade  de sentidos. Cabe, no entanto, ressaltar que, para ela, não se trata de atribuir ao silêncio um sentido metafórico em sua relação com o dizer,  ou seja,  traduzir  o silêncio em palavras, mas antes conhecer os processos de significação que ele põe em jogo.

Orlandi mostra a dificuldade e o desafio que se impõem aos métodos formais para tratar de  um  objeto  empiricamente  intangível  e  não  representável,  o  que  os  torna padoxalmente limitados para sua análise,  fazendo necessário deslocá-la "do domínio dos produtos para o dos processos de produção dos sentidos". Em um esforço contra a hegemonia do formalismo,  a autora reflete sobre o silêncio através  de um método histórico,  fazendo apelo à interdiscursividade,  trabalhando assim,  "os entremeios, os reflexos indiretos, os efeitos do silêncio". Para isso, evidencia duas categorizações que considera fundamentais das formas de silêncio: o silêncio fundante ou fundador e a política do silêncio ou silenciamento.  Na primeira,  o silêncio pode ser  percebido ao atravessar palavras, se estabelecer entre elas ou indicar que o sentido pode ser outro, ou que o mais importante nunca é dito.  Na política do silêncio,  admitindo-se que o sentido é sempre produzido em algum lugar, a partir de uma "posição do sujeito", ao se dizer algo, deixa-se de dizer outros sentidos possíveis, na tentativa de silenciá-los.

Em seu caráter fundador, podemos vislumbrar que a existência do silêncio precede a da linguagem, enquanto ato da fala. Este consiste em separar e distinguir; a fala disciplina o  significar  na  tentativa  de  sedentarizar  o  sentido.  Ou  seja,  a  fala  estabiliza  o movimento  dos  sentidos,  ao  passo  que  no  silêncio,  "sentido  e  sujeito  se  movem largamente".  Sob essa ótica, torna-se presumível  que,  se as palavras são múltiplas, maior multiplicidade de sentidos poderá haver no silêncio.

Para uma análise mais aprofundada acerca do silêncio, a linguista apela à história das palavras, através da qual apresenta ao leitor a etimologia de silentium, palavra que por sua  vez  remete  a sileo,  usada  na  Antiguidade  clássica  para  designar  ausência  de movimento ou ruído, empregada particularmente para falar de pessoas, do vento, da noite e do mar. Orlandi usa a metáfora do silentium como mar profundo, a partir desse impulso etimológico, ilustrando que no silêncio das profundezas das águas está o real sentido, enquanto as ondas são apenas o ruído, suas bordas, seu movimento periférico, as  palavras.  Entretanto,  na  sociedade  contemporânea,  a  ideologia  da  comunicação destinou ao silêncio um lugar subalterno,  na tentativa de apagá-lo,  esperando que a todo tempo sejam produzidos signos audíveis e visíveis continuamente. É justamente nesse contexto que, ao invés de se pensar o silêncio como falta, a autora propõe pensar a linguagem como excesso.

Voltando-se para a dimensão política do silêncio, assentada sob o pressuposto de sua dimensão fundadora ou constitutiva - uma vez  que  o silêncio faz  parte de todo o processo de significação, ou, ainda na palavras de Orlandi, "é a matéria significativa por excelência" -,  podemos verificar  sua emergência quando o dizer  oculta o não dito, apagando  possíveis,  porém  indesejáveis  outros  sentidos. Orlandi  examina  em profundidade  a  manifestação  mais  visível  dessa  política:  a  interdição  do  dizer, claramente expressa e exemplificável  através da censura,  na qual  se proíbem certas palavras para se proibirem determinados sentidos.

As formas do silêncio mostra a fluidez do funcionamento da linguagem, que consegue tirar proveito da matéria mesma da redução dos sentidos para produzir sua expansão, fazendo da censura o terreno fértil para deslocamentos, desdobramentos e bifurcações de sentidos, simulando o senso comum, o consenso e o estereótipo para dizer o que é proibido, dando espaço às manifestações de resistência. Assim, a autora apresenta uma reflexão acerca dos mecanismos da linguagem de resistência, mostrando que "há uma relação  sentido/discurso  social,  sob  a  censura,  que  se  estabelece  de  forma  que signifique o que é preciso não dizer" (p.113). A mobilidade da identidade e dos sentidos faz com que sempre seja possível a ambos encontrar suas formas de se manifestar.

Partindo da reflexão sobre a censura e o silenciamento,  Orlandi  analisa também o

mecanismo de apagamento de autoria, muito comum nos meios acadêmicos, mostrando como a censura pode se dar entre iguais, não exercida necessariamente de cima para baixo.  Ela  aponta  como  esse  mecanismo  de  silenciamento  do  autor  não  consegue produzir  "o  movimento  de  sua  contemporaneidade"  (p.141),  fazendo  com que  as palavras apropriadas, ao se fingirem de novas,  soem muito velhas. Nesse ínterim,  a autora demonstra a importância da citação no discurso científico para além da questão moral, evidenciando seu aspecto funcional.

Orlandi, a partir de uma perspectiva discursiva, consegue demonstrar a multiplicidade do silêncio, evidenciando o movimento de sentidos e mostrando que para compreender um discurso, devemos sistematicamente perguntar o que ele "cala".

As formas do silêncio
Eni Puccinelli Orlandi
Editora Unicamp
2007
181 p.

 

 

10/09/2013