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ComCiência

On-line version ISSN 1519-7654

ComCiência  no.151 Campinas Sept. 2013

 

REPORTAGEM

 

Ru’dos que nascem nas ruas e ecoam pelo pa’s

 

 

Por Giselle Soares

 

 

Milhares de pessoas tomaram as ruas do Brasil recentemente em uma sŽrie de atos que surpreenderam n‹o apenas a popula‹o, mas a pol’cia, os pol’ticos e a grande m’dia. As manifesta›es comearam sob iniciativa do Movimento Passe Livre (MPL) em S‹o Paulo, e rapidamente a premissa do aumento de vinte centavos na tarifa de ™nibus ganhou causas mœltiplas, formando um coro de reivindica›es que alardeou a insatisfa‹o com o poder pœblico. Vozes dissonantes tomaram as ruas de diferentes cidades e regi›es, em uma polifonia que ecoou Brasil afora.

Parodiando a afirma‹o de Mao TsŽ-Tung de que uma fagulha pode incendiar uma pradaria, a professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP Raquel Rolnik explica, na apresenta‹o do livro Cidades rebeldes: passe livre e as manifesta›es que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo Editorial, 2013), que "a 'fagulha' das manifesta›es de junho n‹o surgiu do nada: foram anos de constitui‹o de uma nova gera‹o de movimentos urbanos - o MPL, a resistncia urbana, os movimentos sem-teto, os movimentos estudantis - que entre 'catracaos', ocupa›es e manifesta›es foram se articulando em redes mais amplasÓ.

Para o professor Renato Janine Ribeiro, da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas USP, ainda n‹o Ž poss’vel explicar o que levou os protestos de 2013 a se alastrarem por diversas cidades t‹o rapidamente. Estabelecendo conex›es entre os atos deste ano e o movimento Maio de 68, na Frana, Ribeiro afirma que o grande descontentamento com a qualidade dos servios pœblicos foi o respons‡vel, em um primeiro momento, pela eclos‹o das manifesta›es, que ganhou simpatia da popula‹o ap—s a violenta repress‹o policial.

Ainda de acordo com Ribeiro, o Brasil vivencia um per’odo not‡vel. ÒSomos um pa’s de pouca mobiliza‹o pol’tica e pouca cultura pol’tica. O momento foi muito forte do ponto de vista da mobiliza‹o, mas a cultura pol’tica n‹o avanou. Voc pode tomar posse da rua, isso tem uma utilidade imediata e Ž bom, mas ainda Ž pouco. Falta as pessoas dizerem sobre o que est‹o protestando. H‡ quem, por exemplo, culpe a prefeitura pelos problemas do metr™ de S‹o Paulo, que Ž estadual. Isso acaba limitando bastante os projetosÓ, afirma o pesquisador, que aponta como um dos poss’veis resultados a mŽdio prazo a inclus‹o da qualidade dos servios pœblicos na agenda pol’tica. ÒA presidenta, os governadores e os prefeitos ter‹o que prestar mais aten‹o a isso. Ser‡ uma mudana a mŽdio prazoÓ, indica o professor.

O argumento Ž semelhante ao apresentado pelo professor da PUC-SP e coordenador da ONG Rep—rter Brasil, Leonardo Sakamoto, no texto "Em S‹o Paulo, o Facebook e o Twitter foram ˆs ruas", tambŽm publicado no livro Cidades rebeldes. "H‡ um dŽficit de democracia participativa que precisa ser resolvido. S— votar e esperar quatro anos n‹o adianta mais. Uma reforma pol’tica que se concentre em ferramentas de participa‹o popular pode ser a sa’da", afirmou.

 

A pluraliza‹o dos atos

Em artigo publicado no mesmo livro o MPL de S‹o Paulo enfatiza que as mobiliza›es sempre foram abrangentes. ÒAs lutas por transporte no Brasil formam um todo muito maior do que o MPL. Contudo, a tomada direta e descentralizada das ruas, a radicalidade das a›es e a centralidade dos aumentos tarif‡rios d‡ a t™nica dessas lutas... Em S‹o Paulo, as manifesta›es que explodiram de norte a sul, leste a oeste, superaram qualquer possibilidade de controle, ao mesmo tempo que transformaram a cidade como um todo em um caldeir‹o de experincias sociais aut™nomasÓ.

A premissa ampliou-se (Òn‹o Ž s— por 20 centavosÓ) e abraou reivindica›es mœltiplas que refletiam uma insatisfa‹o generalizada com servios e gastos pœblicos em todo o pa’s. Nesse sentido, Ž poss’vel mencionar o exemplo de Fortaleza, onde os atos n‹o tiveram rela‹o com o servio de transporte pœblico.

Cerca de oitenta mil pessoas, segundo a Pol’cia Rodovi‡ria Federal, tomaram as ruas da capital cearense em 19 de junho para participar do protesto Ò+ P‹o - Circo - Copa para Quem?Ó, organizado por meio do Facebook. Os manifestantes se reuniram no entorno da Arena Castel‹o para contestar os gastos com as competi›es desportivas, tendo em vista que Fortaleza ser‡ uma das sedes da Copa do Mundo de 2014.

Ainda no Cear‡, h‡ quase dois meses manifestantes ocupam o Parque do Coc— em uma tentativa de impedir a constru‹o de viadutos pela prefeitura, que implicaria na derrubada de ‡rvores de uma das poucas ‡reas verdes da cidade. Concomitantemente, no Rio de Janeiro, outros tantos protestos prosseguem ocupando prŽdios pœblicos. Clamores distintos em cidades diversas refletem a vontade da popula‹o de ser ouvida.

 

Rede, pulveriza‹o e agrega‹o

O professor do programa de p—s-gradua‹o em comunica‹o da Universidade Metodista, Walter Teixeira Lima Jœnior, destaca o papel da internet como fator que contribuiu para a r‡pida dissemina‹o das manifesta›es: "Sou da gera‹o que fez parte das Diretas J‡, fui para a rua quando n‹o existiam redes como a internet e o Brasil foi mobilizado pela propaganda boca a boca e por telefone. Na Žpoca, as pessoas estabeleciam a pr—pria rede e o movimento foi ganhando fora. A velocidade da informa‹o n‹o era semelhante aos dias atuais. Hoje voc tem a internet, que Ž considerada por alguns estudiosos como um sistema complexo, que elege coisas: acontece algum fato catalisador e todo mundo vai olhar. Rapidamente, as manifesta›es de junho tomaram uma propor‹o enorme, diferente das Diretas J‡. A internet alastrou a informa‹o de forma exponencial", exp›e o pesquisador.

Quando indagado se a internet teria colaborado para a pulveriza‹o do movimento em causas mœltiplas ainda n‹o muito bem compreendidas, Teixeira respondeu que as pessoas foram para as ruas em movimentos fragmentados que refletiam a insatisfa‹o latente com o poder pœblico. "H‡ quem pense que para ir ˆs ruas Ž necess‡rio ler todos os fil—sofos alem‹es, vestir determinado tipo de roupa etc. O povo vai para a rua por ser um espao pœblico de confronto. A rede catalisou o sentimento de insatisfa‹o. A rua reflete a sociedade que est‡ na rede", disse. 

 

A motiva‹o dos manifestantes

O que teria levado tantos jovens ˆs ruas, surpreendendo a popula‹o, os grandes conglomerados midi‡ticos e o governo? Buscando responder a essa quest‹o no ‰mbito de Fortaleza, o Coletivo NigŽria acompanhou as manifesta›es e o processo resultou no document‡rio Com vandalismo, com registros de depoimentos e cenas dos protestos. A ideia dos realizadores foi estar na linha de frente para registrar os confrontos e entrevistar os manifestantes para mostrar as motiva›es dos atos.

Um dos participantes do ato "+ P‹o - Circo - Copa para Quem?Ó no Cear‡ foi o ge—grafo e professor Samuel Miranda. Ele explica que sempre gostou de estar envolvido nos movimentos sociais e que viu uma oportunidade de lutar coletivamente por bandeiras comuns a muitos. "Senti orgulho de ver os atos em todo o Brasil e quis fazer a minha parte. Vivemos em uma Žpoca de muito individualismo. Eu n‹o queria apenas ver as coisas acontecerem, quis fazer parte delas", relata Miranda, ressaltando, tambŽm, a solidariedade da popula‹o com os manifestantes: "Vi um esp’rito de solidariedade que nunca havia presenciado. Antes de sair, no supermercado, a caixa disse algo que muito me marcou. Que esperava que o pa’s mudasse, que ela queria ir, mas estava no trabalho e n‹o podia. No caminho atŽ o est‡dio, muitos nos carros e ™nibus animavam os que iam a pŽ e, na travessia pelo Lagamar, um bairro da cidade considerado violento, uma viatura da pol’cia nos acompanhou a maior parte do tempo em uma espŽcie de escolta. Ë medida que mais gente ia se juntando, mas o esp’rito de solidariedade crescia", lembra.

Assim como Miranda, a estudante de doutorado em comunica‹o da Universidade Federal Fluminense (UFF) M™nica Mour‹o relata que a proximidade com os movimentos sociais contribuiu para sua presena em atos na capital e em Niter—i. Segundo ela, que integra o Intervozes - Coletivo Brasil de Comunica‹o Social, a sensa‹o de empoderamento e a possibilidade de fazer algo de forma efetiva fez com que muitos de seus amigos sem rela‹o com os movimentos sociais participassem das manifesta›es. "Ao perceber as arbitrariedades que ocorrem no servio pœblico brasileiro, voc pensa Ôn‹o posso deixar de ir'", afirma Mour‹o, lembrando que resultados imediatos j‡ podem ser percebidos, como a redu‹o do preo da passagem e, no caso espec’fico do Rio, a revoga‹o da remo‹o de equipamentos do Museu do êndio. "Agora as pessoas querem mais e Ž muito dif’cil dizer o que Ž esse mais. Existe uma insatisfa‹o geral com as formas de governo n‹o-participativas, sem di‡logo, coisas que est‹o previstas na Constitui‹o", finaliza a estudante.

Motivado pela necessidade de a‹o em S‹o Paulo, epicentro das manifesta›es, Renato Salgado, aluno do doutorado em teoria e hist—ria liter‡ria da Unicamp, participou de trs atos, dois deles na capital e um em Campinas. Para ele, a possibilidade de ocupa‹o efetiva do espao urbano chamou aten‹o. "As bandeiras n‹o eram as mesmas, mas n‹o se tratava de uma disputa, era um debate. Isso Ž algo importante: trazer a pol’tica para a rua e pens‡-la como espao de se fazer pol’tica. O ato de rua n‹o Ž mais um ato isolado que eclode em um momento limite, virou um espao de a‹o pol’tica mais pr—xima do poss’vel. A a‹o na rua era vista como vandalismo, como violncia ao patrim™nio. Agora, as pessoas est‹o mais abertas a isso", afirma Salgado.