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ComCiência

versión On-line ISSN 1519-7654

ComCiência  no.145 Campinas feb. 2013

 

REPORTAGEM

 

A fisiologia da obesidade: bases genéticas, ambientais e sua relação com o diabetes

 

 

Ricardo Schinaider de Aguiar; Ricardo Manini

 

 

Diferente do que muitos possam pensar, a obesidade não é apenas uma simples condição de quem ingere mais calorias do que gasta, acumulando o excesso em seu corpo. A obesidade é uma doença inflamatória, grave e complexa, e é hoje uma epidemia global fora de controle. Porém qual é a principal causa deste fenômeno? Os maus hábitos alimentares das últimas décadas conseguiriam explicar o aumento das taxas mundiais de obesidade ou haveria também fatores genéticos? Poderiam os fatores comportamentais interferir em nossos genes?

O debate sobre qual dos fatores seria o mais importante ora tendia a apontar para nossas mudanças de hábitos, ora para nossa informação genética, e a conclusão que podemos chegar é a de que ambos exercem papéis fundamentais. Por este motivo, a obesidade é classificada como uma doença multifatorial. O nutricionista e pesquisador da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Dennys Cintra, classifica as causas da obesidade em dois macrofatores: os genéticos e os ambientais, e explica os mecanismos de cada um.

"Os fatores de origem genética estão associados principalmente à relação entre genes responsáveis por poupar energia e genes responsáveis por sintetizar energia", diz Cintra. Os genes poupadores foram essenciais para a sobrevivência e perpetuação da raça humana quando a disponibilidade de alimento era escassa. Há milhares de anos, quando a caça era o principal meio de obtenção de alimento, não havia meios de preservar a comida e talvez fosse preciso sobreviver longos períodos sem a ingestão de alimentos após uma refeição.

Os genes poupadores enviavam, então, sinais para o organismo acumular o máximo de energia possível para a sobrevivência em tempos de escassez. Contudo, com o surgimento de métodos de preservação de alimentos, principalmente com a invenção da geladeira, o ser humano passou a ter um estoque de comida disponível. Os genes poupadores, entretanto, continuaram a exercer sua função de acúmulo de energia, mesmo sendo desnecessário, muitas vezes levando a um excesso de gordura no corpo e à obesidade. Esses genes também são os responsáveis pelo rápido ganho de peso após um período de dietas severas, quando uma pessoa volta a seus hábitos normais, ocasionando o chamado "efeito sanfona". Durante a dieta, sinais de alerta são emitidos para o organismo, avisando que o alimento está escasso e ativando os genes poupadores. Deste modo, ao retornar aos seus hábitos normais, essa ativação irá resultar em um maior acúmulo de energia, em forma de gordura.

Mas também há fatores genéticos relacionados à defesa do organismo contra a obesidade. O próprio tecido adiposo, formado pelo excesso de gordura, produz uma substância chamada leptina. Esse hormônio inicia uma cascata de sinalizações celulares no cérebro, que controla o apetite e faz com que a pessoa pare de comer. Em outras palavras, ela desencadeia um "efeito dominó" de comunicação entre neurônios. O tecido adiposo, porém, produz também proteínas inflamatórias que interferem na sinalização celular, interrompendo esse efeito dominó e impedindo que o sinal chegue ao seu destino corretamente. Assim, quanto mais obesa for a pessoa, mais tecido adiposo ela terá, mais proteínas inflamatórias ela produzirá e pior será o controle do seu apetite pelo cérebro, gerando um ciclo vicioso que a levará a comer e engordar cada vez mais.

 

Influência do ambiente

Os fatores ambientais, por sua vez, estão relacionados à alimentação e ao sedentarismo. Uma dieta rica em açúcares e gorduras contribuirá para a obesidade, assim como a falta de exercícios físicos para gastar o excesso de energia. Estudos recentes, porém, denominados de epigenéticos, demonstram que os fatores ambientais podem influenciar nos fatores genéticos, e antes mesmo do nascimento. "A alimentação de uma gestante, por exemplo, pode fazer com que seu filho tenha uma maior propensão à obesidade, mesmo que seus pais sejam magros", afirma Cintra. Um bebê pode ter um conjunto de genes de uma pessoa sem tendência para a obesidade, mas uma dieta rica em gorduras durante seu período fetal, por parte da mãe, pode fazer com que esses genes, apesar de presentes, não exerçam sua função do modo como deveriam. Assim como uma dieta gordurosa, a desnutrição durante a gestação também pode levar o bebê à obesidade, ou logo na infância, ou na vida adulta.

O fator ambiental, diferente do fator genético, pode ser reversível. Um dia de má alimentação, por exemplo, causará a produção de proteínas inflamatórias, mas o organismo se restabelecerá após poucos dias com uma dieta saudável. Porém, caso a má alimentação se torne um hábito e persista durante anos, os fatores ambientais também podem se tornar irreversíveis. As proteínas inflamatórias produzidas pelo tecido adiposo, além de interferirem na comunicação entre células, também podem levar à morte celular de neurônios do hipotálamo, região do cérebro responsável pelo controle da fome. A obesidade então se torna um quadro clínico muito difícil de ser revertido, mesmo com mudanças de hábitos alimentares e prática de exercícios físicos.

Atualmente, não há medicamentos eficazes para se controlar a obesidade. As mais modernas drogas que estão em desenvolvimento visam à destruição das proteínas inflamatórias, mas são caríssimas e ainda estão em fase experimental. O único tratamento médico é cirúrgico, porém precisa ser acompanhado de mudanças de hábitos alimentares, pois a cirurgia não removerá as proteínas inflamatórias do organismo. O operado poderá voltar a ganhar peso caso apenas a quantidade de comida ingerida diminua, mas a qualidade não melhore.

A obesidade ainda pode trazer outras graves consequências para o organismo. Entre elas estão hipertensão, aterosclerose (entupimento de veias e artérias) e até mesmo o aumento da probabilidade de desenvolvimento de diversos tipos de câncer. Uma das principais doenças associadas à obesidade, porém, está relacionada à resistência que o organismo desenvolve à insulina: o diabetes.

 

Obesidade e diabetes

Caso clássico na literatura médica, os índios Pima, que viviam no que é hoje o Arizona central, nos EUA, representam um exemplo da enorme relação entre obesidade e diabetes. Antes de ter contato com outros povos, havia entre os Pima cerca de 10% de diabéticos. O contato com dietas não nativas, trazidas por europeus e americanos no fim do século XIX e início do século XX, ocasionaram um substantivo aumento no peso dessa população. Isso fez com que a quantidade de indivíduos Pima com diabetes saltasse para mais de 50%.

"Os Pima já tinham uma predisposição genética em relação ao diabetes", afirma Paulo Lotufo, professor da Faculdade de Medicina da USP com livre docência na área de diabetes, "mas representam um exemplo inequívoco de que a obesidade está intimamente relacionada à doença", indica.

Para Marcelo Lima, endocrinologista e pesquisador do Laboratório de Investigação em Metabolismo e Diabetes (Limed), da Unicamp, existe uma relação clara entre o diabetes tipo 2 e a obesidade. "Cerca de 80% a 90% dos indivíduos que desenvolvem o diabetes tipo 2 são obesos", aponta. "O diabetes tipo 2 representa cerca de 90% dos diabéticos. Os demais são do tipo 1, que não tem nenhuma relação especial com a obesidade", explica.

Hoje, de acordo com dados do Ministério da Saúde, mais de 5% da população brasileira adulta confirma ser portadora da doença. Esse percentual corresponde a pouco mais de 7 milhões de indivíduos. Entretanto, estima-se que esse índice seja maior, uma vez que muitos indivíduos não têm consciência de que portam diabetes. "Cerca de 30% dos diabéticos não sabem que têm a doença", afirma Lima. O aumento da obesidade que é observado atualmente na população deve fazer com que esse número cresça nos próximos anos.

O diabetes tipo 2 é um distúrbio metabólico que tem na resistência à ação de insulina o seu principal fator. Os mecanismos que levam da obesidade para o diabetes são múltiplos e complexos. Mesmo dentro da comunidade médica permanecem dúvidas e controvérsias a respeito de como a obesidade provoca a doença. "A medicina ainda não é capaz de explicar totalmente como a obesidade leva ao diabetes, mas já tem como certo alguns mecanismos responsáveis por essa relação", indica Lotufo.

Sabe-se, por exemplo, que o indivíduo obeso apresenta um tecido adiposo aumentado e que, nesse estado, esse tecido produz uma série de substâncias que diminuem a capacidade do organismo captar a glicose, produzida após a ingestão de alimentos, e transformá-la em energia. A captação de glicose pelas células é fundamental para que o indivíduo produza energia. Sem essa produção não há vida.

Em indivíduos saudáveis o organismo tende a manter o nível de glicose no sangue estável. Para isso, quando existe um nível de glicose na corrente sanguínea acima do normal, células localizadas em uma estrutura especial do pâncreas (as ilhotas de Langerhans) são incentivadas a produzir insulina.

Um dos papéis da insulina é contribuir para que as moléculas de glicose entrem nas células. Ao ligar-se a receptores na superfície celular, a insulina produz sinais dentro da célula que, entre outras funções, facilitam o transporte da glicose da superfície da célula para seu interior.

O indivíduo obeso, porém, apresenta dificuldades em realizar esse processo de sinalização da insulina, ou seja, há resistência à insulina, o que reduz a possibilidade de a glicose entrar na célula. Para compensar essa dificuldade, as células pancreáticas produzem mais insulina, levando à hiperinsulinemia, ou seja, excesso de insulina no sangue.

"Além disso, no caso do diabetes tipo II, existe um desequilíbrio entre a produção de insulina pelas células pancreáticas e a produção de glicose", afirma Lima. "Podemos dizer, nesse caso, que mesmo que haja níveis normais ou elevados de insulina no sangue, a produção insulínica é insuficiente para que a quantidade de glicose no sangue se normalize", explica.

Em relação ao diabetes, a gordura mais perigosa é a localizada no abdômen. No corpo humano, a gordura é distribuída na região subcutânea ou na região visceral. Em geral, com algumas poucas exceções, os obesos apresentam aumento de gordura próximo às vísceras. A gordura visceral tem características metabólicas diferentes da gordura subcutânea, as quais favorecem a instalação do quadro de resistência à insulina.

"O excesso de tecido adiposo localizado principalmente no abdômen produz substâncias que interferem negativamente na sinalização intracelular da insulina, o que favorece o aparecimento do diabetes", diz Lima.

O diabetes tipo 2 já foi considerado como uma doença de adultos. No entanto, atualmente está relacionado também com crianças e adolescentes. Uma criança ou um adolescente que apresente predisposição genética pode desde cedo apresentar certa resistência à insulina, que é agravada pela obesidade.

"Para se prevenir, o melhor a fazer é realizar exercícios físicos com regularidade", indica Lotufo. Segundo o professor da USP, mesmo que a pessoa não perca peso, irá melhorar a captação de glicose pelas células, o que diminui a chance de apresentar diabetes. Para Lima, outra medida fundamental é diminuir o consumo de alimentos ricos em gordura.

Para a endocrinologista Olímpia Araújo, autora de trabalho acadêmico sobre o diabetes, um dos grandes problemas relacionados à doença, atualmente, não é a quantidade de informação existente, mas se esse conhecimento atinge os pacientes em risco, como parte da população obesa. "Além disso, não basta apenas se informar - a atitude do indivíduo no enfrentamento de sua condição tem um peso importante na aplicação do conhecimento adquirido", afirma.

 

 

10/02/2013