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ComCiência

 ISSN 1519-7654

     

 

ENTREVISTA

 

Newton Canteras e Stevens Rehen

 

 

Vânia Novelli

 

 

Newton Sabino Canteras

Para o neurofisiologista Newton Sabino Canteras, quando uma pesquisa de ponta aqui no Brasil consegue alcançar um patamar interessante, internacionalmente, é uma vitória. "É uma coisa libertária", avalia. Ele é um dos que pode comemorar essa conquista. A pesquisa conduzida por Canteras sobre os diferentes circuitos neurais que atuam frente a diferentes tipos de medo - o inato, o adquirido e o social -, foi capa da edição de setembro deste ano da revista Nature. Antes disto, a literatura científica apontava que todos os medos eram processados na mesma área do cérebro. Mas Canteras provou que não é bem assim. Médico graduado pela Universidade de São Paulo (USP), com doutorado em fisiologia humana, atualmente ele é professor titular do Departamento de Anatomia do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Morfofuncionais. Canteras tem experiência na área de neuroanatomia funcional, com ênfase no estudo das bases neurais dos comportamentos motivados. Nesta entrevista, ele fala à ComCiência um pouco a respeito de suas pesquisas sobre o medo e acerca do que é fazer ciência no Brasil.

O que despertou o interesse do senhor e de sua equipe pelo estudo do medo?

Newton Sabino Canteras - Existe no estado de São Paulo um grupo bem conceituado e já conhecido, liderado pelo professor Frederico Graeff (da USP de Ribeirão Preto), que vem estudando essas questões de ansiedade e medo já há muito tempo. Ele é um líder na área, um pesquisador de alto renome na comunidade e foi, na verdade, inspirado por ele e pelos trabalhos dele que comecei entrar nesta linha (de pesquisa). Eu sou um neuroanatomista, e a partir de um determinado momento eu comecei a fazer estudos de como os circuitos neurais mediavam comportamentos diversos. Aí me pareceu interessante começar a entrar nessa questão de medo, fazer estudos com exposição de cobaias (ratos). Então, foi assim que começou.

Segundo os resultados das pesquisas, nós podemos falar em medos inatos e medos adquiridos?

Canteras - Exatamente, nós temos o medo que o animal aprende e o que ele tem (biologicamente). Se você imaginar um animal na natureza e de repente aparece um predador, ele não tem chance de aprender, ele vai ser comido pelo predador. Então, ele tem que ter medo. Ele tem uma reação para fugir daquilo, uma reação que tem que ter um alto teor motivacional para ele escapar daquela situação, e isso é uma situação de medo inato. Agora ele (o animal) tem também que evitar o local em que encontrou aquele predador, onde antes era um lugar bom. Então, ele tem o medo aprendido, ele vai saber que naquele local não é para ele ficar brincando muito. Tem o medo inato e o medo aprendido.

Nas pesquisas realizadas com ratos, esses medos se processam em circuitos neurais diferentes?

Canteras - O que existia na literatura científica era que todos os tipos de medo eram modulados, ou organizados, por um mesmo circuito neural. E os pesquisadores chegaram a esse circuito neural fazendo a seguinte situação: eles geravam um estímulo físico agressivo, no caso choque nas patas (das cobaias), e pareavam esse estímulo ao ambiente ou a um estímulo neutro, como um som. Depois de alguns pareamentos, quando o rato era exposto só ao estímulo neutro, ele já apresentava medo; então, se chamava medo condicionado. Eles condicionavam aquela situação a uma outra, agressiva, que gerava medo. A partir daí, fizeram todo um estudo para entender como o medo estava organizado e fizeram uma falsa hipótese de que como o animal reage daquele jeito, fica congelado. Esse congelamento que ele apresenta nessa situação é o mesmo que apresenta diante de um predador. Então, esses medos seriam organizados pelos mesmos sistemas, porque o rato está fazendo a mesma coisa. O que nós fizemos foi o seguinte: inspirados nos trabalhos de Graeff, começamos a trabalhar com outro tipo de medo que é a exposição do rato ao gato, que é o medo natural, e nós identificamos que o sistema neural é completamente diferente. O sistema que está relacionado ao medo do rato ao gato é um sistema completamente diferente ao medo que o animal tinha de tomar um choque. E, mais recentemente, nós vimos um terceiro sistema, que é o medo que o animal tem de enfrentar um coespecífico dominante, agressivo, que é o medo social. Então, definimos primariamente um medo social, um medo antipredatório, de perder a vida, e o medo do indivíduo se machucar, de levar choque.

Qual é a implicação da descoberta de que o medo se processa em diferentes circuitos neurais?

Canteras - É a seguinte: se eu tenho o medo de ir ao dentista porque vou sentir dor, - antes se sentia, porque agora não se sente mais -, então evito. Agora, eu tenho o medo de ser assaltado, porque quando estou sendo assaltado, é um risco de vida que estou correndo, é um outro medo, muito mais forte. Eu tenho medo do risco de perder minha vida. É o mesmo caso se o sujeito estiver, por exemplo, num campo de batalha, ele tem medo de perder a vida. Nós observamos que o medo, numa situação agressiva, tem um papel importante de evitação, mas o medo de perder a vida é que dá o grande trauma. Nós vimos que essas duas circunstâncias são organizadas por sistemas diferentes e, sabendo disso, a gente consegue entender como é que está organizado o estresse pós-traumático. O estresse pós-traumático é um medo aprendido numa situação em que se ia perder a vida. O sujeito, por exemplo, que estava em um campo de batalha, sente cheiro de diesel. Depois de um tempo, ele está na rua e, de repente, passa um jipe. Ele sente cheiro de diesel e tem uma fobia, um medo tremendo, que é o estresse pós-traumático, uma situação muito complicada para os veteranos de guerra. Se eu entender qual é o sistema que rege essa situação, eu vou ser capaz, no futuro, de abordar essa situação melhor do ponto de vista terapêutico.

O senhor acredita que o processo terapêutico sem medicamentos seria capaz de reverter esse estresse pós-traumático?

Canteras - Não é minha área, não opino sobre isso, porque estaria falando sobre uma coisa que não sei.

E na terapêutica com medicamentos, esse conhecimento dos diferentes sistemas neurais envolvidos no processamento dos medos pode ajudar no desenvolvimento de tratamentos mais específicos?

Canteras - Isso vai favorecer o uso de determinados medicamentos, você melhora a forma de abordagem.

Hoje em dia, a síndrome do pânico cresce bastante entre a população e, às vezes, nem chegou a acontecer uma situação traumática com a pessoa.

Canteras - A síndrome do pânico é uma outra coisa, diferente do estresse pós-traumático. É uma outra patologia, uma disfunção.

A síndrome do pânico não tem relação com suas pesquisas sobre medo inato, social ou apreendido?

Canteras - Não tem relação. É uma disfunção de um medo inato, mas no caso, um medo inato que eu não estudo. Você tem uma coisa na síndrome do pânico que é o sistema de alarme ao sufocamento, e parece que esse sistema é que está desregulado. Isso é uma outra forma de medo.

O que é necessário para essa pesquisa sobre os diferentes tipos de medo, realizada com ratos, ser desenvolvida com seres humanos?

Canteras - Na verdade, com humanos é eticamente muito complicado fazer isso, porque uma das coisas que deveria ser feita com humanos seria causar o medo de uma situação que ameaça o sujeito. Tem gente já fazendo isso. Expõem, por exemplo, o sujeito à seguinte situação: num PET Scan (aparelho de tomografia por emissão de pósitrons), o indivíduo vê uma tarântula, como se a ela fosse mordê-lo; é um jogo de espelhos, na verdade, mas o indivíduo vê e parece que a tarântula está em cima do seu pé e começa a entrar numa situação de medo. Eticamente, é muito complicado. Você não vai chegar com um revólver na pessoa e dizer "eu vou te matar". Não, você não pode fazer isso, é óbvio. Mas essa história da tarântula já foi feita nos Estados Unidos. E aí o pesquisador faz um estudo para ver que áreas do cérebro humano estão ativadas. Também se pode analisar pessoas que têm estresse pós-traumático numa situação que desencadeia o estresse, e tentar estudar qual é o tipo de circuito, de região que está funcionando e, assim, vai-se ampliando esse estudo para o ser humano.

Podemos dizer que quem mora em bairros muito violentos nas cidades está com a saúde mental vulnerável, ou que saber de um assassinato próximo de casa vai gerar um estresse?

Canteras - Aí é que está. Quantas pessoas vão para a guerra? Muitas. E quantas voltam com estresse pós-traumático? Uma parcela relativamente pequena.

Então, algumas pessoas são mais suscetíveis a ter estresse pós-traumático?

Canteras - Você pode ter estresse pós-traumático vivendo no Jardim América. O indivíduo sofre um assalto e depois daquilo fica com um estresse pós-traumático.

Como é fazer pesquisa em neurociências no Brasil?

Canteras - Na verdade, a gente tem um apoio muito grande, não posso reclamar. Nem de dinheiro, nem de lugar, nem de apoio, nem de pessoal, nada.

E quais são os maiores apoiadores?

Canteras - A Fapesp, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, é o grande apoiador. O CNPq dá um apoio relativo. A USP, de um modo geral, dá um incentivo muito grande, dá espaço.

E quais são os principais empecilhos à pesquisa no Brasil?

Canteras - A importação. Esse é o grande empecilho, o problema de importação. O problema burocrático é horroroso.

Importação de aparelhos?

Canteras - De drogas, principalmente. Se você quer fazer uma permuta, não consegue. Eu já perdi parcerias na Austrália, porque eu não pude trocar substâncias (fármacos) com eles. Os australianos tinham acabado de isolar um peptídio e eu queria ver o efeito dele no sistema nervoso, mas eles não tinham como me mandar, porque é um entrave absurdo e eu perdi a parceria. E isso acontece com muita gente. Nós estamos isolados do resto do mundo. A Austrália tem uma vantagem (em relação ao Brasil): lá eles falam inglês. A gente tem uma barreira geográfica e uma barreira de língua grande. Com o tempo, ela vai diminuindo, mas para escrever um texto, a gente nunca é um nativo. Então, nosso texto sempre vai ter que, de alguma maneira, ser revisto, a menos que o indivíduo (o pesquisador) tenha morado nos Estados Unidos ou tenha uma fluência muito grande na língua.

Atualmente, aumentou a divulgação de pesquisas de neurociências para o público leigo, inclusive em periódicos de maior circulação.

Canteras - Existe uma parte da divulgação científica que está começando a aparecer mais agora. E, no nosso meio, as pessoas estão fazendo mais pesquisas, de maneira profissional, no Brasil, do que quando eu comecei. A inserção dos grupos brasileiros lá fora é maior. Eu sou de uma época em que, como eu, muitos saíam do país para fazer pós-doutorado. Hoje, meus alunos de doutorado já saíram do Brasil diversas vezes, eles têm uma exposição muito maior a tudo.

Como se fazer uma divulgação científica que faça sentido para o leigo sobre conhecimentos tão avançados e complexos, como o estudo do cérebro?

Canteras - Esta é uma grande pergunta. Eu não tenho resposta para isso.

O senhor acha relevante divulgar pesquisas relacionadas a doenças, distúrbios e transtornos?

Canteras - Não, não é interessante, porque você dá falsas esperanças. No caso da esclerose múltipla, alguém chega na televisão e fala: "com o meu conhecimento, eu melhoro os sintomas da esclerose múltipla, eu fiz isso em ratos e as lesões diminuem e os ratos voltam a andar etc". Aí você tem o sujeito (espectador) com um filho que tem esclerose múltipla. Quando ele vê aquilo, sente esperança, mas o filho dele vai continuar com esclerose múltipla. É muito complicado. Por isso, eu não sei (o que deve ser divulgado para o público leigo). Eu sou médico. No final da minha residência médica, eu estava cuidando de um paciente que tinha exatamente a mesma idade que eu e que tinha esclerose múltipla, e esse sujeito já bem debilitado tinha uma empatia comigo. Por eu ter a idade dele, ele achava que eu ia curá-lo. Eu não ia curá-lo. Fiquei muito desesperado de ver que eu não podia fazer nada por ele. Isso foi uma coisa muito marcante na minha decisão de carreira. Quando você vai dar uma informação desse tipo (sobre resultados de pesquisas relacionadas a doenças), você tem que tomar muito cuidado com o que fala.

Mas se não divulgarmos o conhecimento científico para o público em geral, ele vai ficar restrito à comunidade de pesquisadores?

Canteras - Na verdade, eu acho que o conhecimento científico tem que ser divulgado, mas estou falando que é difícil fazer isso. E estou falando que não é para qualquer um. E, de novo vou falar, também não é minha área (risos). Eu reconheço a importância, mas não tenho a menor ideia de como se faça.

Para vencermos o abismo cultural entre a comunidade científica e o público leigo, a qualidade da educação faz toda a diferença. É na escola que começa a divulgação científica?

Canteras - 100%! É na escola que a divulgação científica deveria estar começando e de uma maneira palatável aos indivíduos, de uma maneira real e consequente, no sentido de ele saber que um dia vai poder se apropriar daquele conhecimento, que vai poder entrar numa universidade e ser até ele próprio um gerador de conhecimento.

 

 

Camila Neumam

 

 

Stevens Rehen

Um dos neurocientistas mais respeitados do Brasil, Stevens Kastrup Rehen, professor titular de ciências biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sabe como é difícil fazer pesquisa de ponta no país. Mesmo assim, conseguiu a façanha de transformar o Laboratório Nacional de Células-tronco Embrionárias do Rio de Janeiro (Lance-RJ) responsável por 50% das pesquisas brasileiras com células-tronco de pluripotência induzida, conhecidas como iPS. São células adultas reprogramadas para se rejuvenescerem e recuperarem as propriedades das células-tronco embrionárias, capazes de dar origem a todos os tipos de células e de se desenvolverem em todos os tecidos do corpo. Com as iPS, a equipe de Rehen busca um tratamento para pacientes com esquizofrenia. Ao colherem células da pele desses pacientes e transformá-las em neurônios, eles identificaram que suas células nervosas produziam mais radicais livres. Além de pesquisador incansável, o neurocientista se engaja politicamente para diminuir a burocracia na hora de importar insumos. Nesta entrevista à ComCiência, Rehen fala da descoberta terapêutica com células-tronco que pode acabar com o retardo mental dos portadores de síndrome de Down e dos avanços em uma possível terapia para acabar com um tipo de cegueira

O que as descobertas dos vencedores do Nobel de medicina de 2012 (o inglês Gurdon e o japonês Yamanaka) trouxeram de avanços nas pesquisas de reprogramação celular e o que devem trazer de benefício nos dias de hoje?

Stevens Rehen - Em termos de benefícios para a medicina, o potencial é impressionante. Estamos falando de uma célula originada de um fragmento de pele, do sangue ou mesmo da urina, e que pode ser transformada em qualquer tecido do corpo. Dessa forma, o potencial terapêutico dessas células é bastante robusto. Podemos, por exemplo, pegar uma célula da minha pele e transformar em células do coração que vão ser equivalentes, do ponto de vista do genoma, ao meu próprio coração, e estudar quais seriam os medicamentos mais adequados de forma personalizada.

As células reprogramadas se transformarão em órgãos no futuro?

Rehen - A partir do momento em que uma célula-tronco de pluripotência induzida tem a capacidade de uma célula-tronco embrionária, ela pode se transformar em qualquer célula do corpo. Vislumbra-se aí a criação de órgãos, estruturas e partes de órgãos a partir dessas células. Estudos realizados em animais são promissores, mas é preciso muito trabalho para se confirmar uma aplicação terapêutica para essas células em pacientes.

Sua equipe produziu neurônios iguais aos de pacientes com esquizofrenia, a partir da reprogramação celular, usando um fragmento de pele de pacientes com esse transtorno. Foi possível identificar alguma alteração nesses neurônios que levem à descoberta de remédios mais potentes ou a uma possível cura da desordem mental?

Rehen - O que talvez seja mais importante nessa pesquisa é que descobrimos que os neurônios de pacientes esquizofrênicos produzem mais radicais livres do que neurônios de pessoas comuns. E esses radicais livres podem estar envolvidos com algumas das alterações celulares que acabam levando aos sintomas da esquizofrenia. A partir dessa observação no laboratório, poderemos identificar medicamentos que consigam reverter esse aumento do estresse oxidativo, que é marcante em pacientes com esquizofrenia. É uma característica dessa doença mental. A partir do momento em que temos um marcador in vitro, podemos buscar formas de revertê-la.

Terapias que já utilizam células-tronco hematopoéticas (extraídas do sangue do próprio paciente) em doentes com diabetes tipo 1, lúpus e artrite reumatoide devem ser consideradas um passo a mais na remissão dessas doenças autoimunes ou devem ainda ser consideradas exceções terapêuticas?

Rehen - Esses casos estão ainda em fase de testes clínicos, alguns com resultados interessantes. Mas, para evitar que sejam tratados como exceções, você tem que aumentar o número de pacientes para que os pesquisadores que estejam envolvidos confirmem ou não a eficácia terapêutica. Quem está fazendo isso muito bem aqui no Brasil é o hemocentro do Hospital das Clínicas (da USP) de Ribeirão Preto.

O senhor se mostrou entusiasmado com uma pesquisa recente da Universidade de Washington, nos Estados Unidos, que apontou a possibilidade de um transplante celular excluir a principal característica da síndrome de Down: o retardamento mental. Em que ponto a ciência está hoje para que isso aconteça?

Rehen - Os pesquisadores conseguiram retirar o terceiro cromossomo 21 de células retiradas de pessoas com síndrome de Down e criaram células "normais", com duas cópias, como todos nós temos. Esse achado sugere a possibilidade, no futuro, de utilização de células trissômicas "consertadas" no laboratório, reinseridas nos próprios pacientes.

Já existe alguma terapia de reprogramação celular que está próxima de ser tão eficaz como o transplante de medula óssea? Em quanto tempo a sociedade poderá usufruir dela?

Rehen - Ainda não existe nenhum tratamento com células reprogramadas. O que há são algumas evidências experimentais que justificam sua utilização em testes clínicos, como, por exemplo, para um tipo de cegueira chamada degeneração macular. A ideia é gerar o chamado epitélio pigmentar a partir de células reprogramadas, que, quando transplantado, poderá evitar a degeneração de fotorreceptores no interior dos olhos de pacientes que estão perdendo a visão. Já há testes clínicos para essa doença em andamento, com células embrionárias.

O Laboratório Nacional de Células-tronco Embrionárias do Rio de Janeiro (Lance-RJ) é responsável por mais de 50% de todos os estudos com células-tronco pluripotentes do país. A que se atribui tal êxito e ao mesmo tempo a pouca divisão dessa fatia de pesquisa no país?

Rehen - Apesar de estarmos respondendo por mais de 50% das pesquisas com células-tronco pluripotentes, ou seja as embrionárias e as reprogramadas, isso significa que publicamos nos últimos anos 25 artigos científicos, o que é pouca coisa. Existe pouca gente trabalhando com o tema. E isso não é motivo para celebrar, precisamos de mais gente. Eu não gostaria que mantivéssemos essa marca. Preferiria que tivéssemos publicado 50 trabalhos, e outros, publicando cem. A nossa comunidade científica que trabalha com células pluripotentes ainda é muito pequena. Dito isso, acho que o nosso sucesso, apesar de tímido, reflete o foco do grupo. E, claro, recebemos um financiamento bastante importante nos últimos anos, tanto do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) quanto da Faperj (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro), que possibilitaram as conquistas do Lance desde sua inauguração em 2009.

O senhor se mostra favorável a uma mudança na legislação que deverá reduzir a burocracia na compra de insumos importados usados por pesquisadores, e ao projeto de lei do deputado federal Romário (PSB-RJ) que trata do assunto. Qual é a atual situação dos cientistas brasileiros nesse sentido e o que uma mudança de padrão traria de benefício para a pesquisa com células-tronco no país?

Rehen - Tem um levantamento nosso que mostra os impactos negativos da burocracia sobre a pesquisa brasileira, sobre linhas de pesquisa nas quais o cientista deixa de trabalhar porque sabe que não vai conseguir importar os reagentes no tempo necessário, e que aponta que mais de 76% dos grupos de pesquisa já tiveram que esperar meses por reagentes. É um impacto real. É mais grave, no meu ponto de vista, você não conseguir comprar os reagentes com agilidade do que a falta de recursos, que também é muito grave. Você ter recursos e não conseguir comprar ou comprar com valores três vezes mais caros do que são os cobrados lá fora é um grande problema. Acho que um dos maiores gargalos da ciência brasileira hoje em dia é essa dificuldade que temos de importar material para a pesquisa. É um problema que os dirigentes e o Ministério (da Ciência, Tecnologia e Inovação) sabem, mas é histórico e relacionado com a burocracia no país. Eu não consigo importar algumas células e vários materiais e até hoje e eu fico sem poder desenvolver uma pesquisa na velocidade e de uma forma muito mais competitiva do que eu poderia por causa disso. Felizmente tem o projeto de lei (do deputado Romário) e vamos ver como ele avança.

Apesar da burocracia e do parco investimento do governo brasileiro em ciência (1,1% do PIB), a nova situação econômica do país poderá ajudar a futura geração de cientistas?

Rehen - Existe um total desconhecimento por parte do Congresso sobre o impacto, sobre a importância de se investir nessas áreas. A gente tem recursos que não são aplicados como deveriam ser. Apesar de ter melhorado bastante, houve uma redução de 30% do orçamento para Ciência, Tecnologia e Inovação nos últimos anos. Aplica-se timidamente, de uma forma cujo impacto vai ser muito menor na sociedade do que poderia ser.

Como biólogo molecular, o que o levou a pesquisar as células-tronco embrionárias?

Rehen - A ideia de estudar as células–tronco embrionárias foi uma consequência das perguntas que eu fazia quando comecei a estudá-las. Eu não procurei as células-tronco, elas que me procuraram, porque eram a melhor ferramenta para responder às questões. Eu trabalhava tentando estudar por que os nossos cérebros são tão complexos. Com a hipótese de que isso era consequência de alterações no genoma nas células de cada indivíduo, então a célula-tronco embrionária era a melhor ferramenta, porque se poderia virar um neurônio, poderia também virar um coração. E eu queria saber o que poderia acontecer com uma célula na hora em que ela virasse um neurônio. Eu uso a célula-tronco embrionária como uma forma de entender o cérebro.

O senhor escreve em sites, participa de programas de TV, tem um blog e é assíduo no Twitter. Como o senhor descreve a importância da internet e da mídia na divulgação científica nos dias atuais?

Rehen - Tem total importância. Acho que é obrigação minha, como cidadão, professor universitário e cientista, divulgar, prestar contas do que eu faço, já que eu recebo a partir dos impostos que são pagos pela sociedade. Eu, como cientista de uma universidade pública, devo satisfações a todo mundo, tenho que explicar o que eu fiz com os recursos que me foram dados. Além disso, a sociedade tem que ser nossa parceira, porque se o público entende a importância da pesquisa, vai reclamar quando houver cortes para a ciência. Quando o público não entende, acha que o que a gente faz não tem uma aplicação, ninguém vai ajudar a comunidade científica a receber seus recursos. É uma mão dupla. Espero que a partir do momento em que conseguimos divulgar o que fazemos, a sociedade perceba a importância da ciência para ela própria.

 

 

10/12/2012