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ComCiência

versão On-line ISSN 1519-7654

ComCiência  no.144 Campinas dez. 2012

 

ARTIGO

 

Neuroimunologia

 

 

Angelina Maria Martins Lino

Neurologista, médica supervisora da Divisão de Clínica Neurológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e médica assistente da Divisão de Clínica Médica do Hospital Universitário da (USP)

 

 

O termo imunidade deriva da palavra latina immunitas, que definia a isenção ou dispensa das atividades civis e proteção contra a instauração de processos legais que eram oferecidos ao senador romano durante o desempenho de seu cargo público. Extrapolada para a área médica, imunidade representava a proteção que o sistema imune exercia contra os processos infecciosos. Imunologia é a disciplina que estuda os eventos moleculares e celulares da resposta imune, associada ou não às infecções, e as doenças que podem ser geradas em consequência dessa ativação imune (doenças imunomediadas). As doenças autoimunes surgem em decorrência do desequilíbrio ou quebra da tolerância imunológica, quando o sistema imune passa a responder contra as células e moléculas que pertencem ao próprio indivíduo. A tolerância imunológica pode ser quebrada em várias situações, como por exemplo, fatores genéticos, vacinações, infecções, entre outros.

A resposta imune pode, grosseiramente, ser comparada a uma peça teatral: há os atores principais e coadjuvantes e todo uma enormidade de participantes não visíveis de imediato que, trabalhando de forma coordenada, fazem com que a apresentação seja um sucesso. Entretanto, a falha de algum membro desse grupo pode comprometer, em maior ou menor grau, o sucesso da peça. O elenco da resposta imune é constituído por diversos tipos celulares (diferentes classes de linfócitos T e B, macrófagos, entre outras) e uma enormidade de moléculas (citocinas, quimiocinas, moléculas de adesão, entre outras) que atuam na resposta imune protetora ou agressora.

O termo "neuroimunologia" surge na literatura médica a partir de 1980 e em sua definição mais ampla é a disciplina que estuda mecanismos imunológicos e doenças cujo órgão deflagrador ou alvo principal da agressão imune é o sistema nervoso. Porém, muitas vezes o termo é utilizado num contexto mais restrito para representar o estudo das doenças autoimunes do sistema nervoso (SN).

 

Histórico

Em medicina, o conceito de imunidade era conhecido pelos antigos chineses que indicavam a inalação de pós que eram obtidos a partir de crostas de lesões cutâneas oriundas de pacientes que se recuperavam da varíola. A primeira menção a essa imunidade como proteção a uma infecção ("praga") é creditada a Thucydides no século V a.C. e o primeiro exemplo claro dessa imunidade protetora foi fornecido por Edward Jenner em 1798 com a vacinação contra a varíola.

Acreditava-se que o SN (central e periférico) era um órgão privilegiado que estava protegido das agressões imunológicas devido à existência de barreiras biológicas (barreiras sangue-nervo e sangue-cérebro) e que era desprovido de células e moléculas capazes de responder imunologicamente. Entretanto, essas crenças começaram a se modificar no século XIX pelos achados patológicos que mostraram inflamação no tecido nervoso em autópsias de pacientes falecidos em decorrência de doença neurológica e com a ocorrência dos "acidentes neuroparalíticos" que eram observados em pacientes que fizeram profilaxia (vacinação) contra a raiva pela técnica de Pasteur, considerados como reações alérgicas contra algum componente neural presente na vacina.

As três mais conhecidas doenças imunomediadas do SN tiveram suas caracterizações clínicas relatadas há muito tempo. Cronologicamente, a miastenia gravis (MG), que se expressa por fraqueza muscular flutuante, teve seu primeiro caso descrito em 1672; e a hipótese de distúrbio imunológico surgiu com Nastuk, em 1959. A teoria imunológica, pela qual o agente deflagrador da resposta imune era o receptor de acetilcolina presente na membrana pós-sináptica da placa mioneural, foi firmada por Simpson em 1960.

A esclerose múltipla (EM) é a doença imunomediada do SN mais divulgada e, por isso, talvez a mais conhecida do público leigo. Na maioria dos casos, afeta jovens em episódios de surto-remissão de disfunções do SN central (cérebro, tronco cerebral, medula espinhal, cerebelo, nervo óptico). O primeiro caso clínico foi relatado por von Frerichs, em 1849, que a nomeou "esclerose cerebral". Porém, a clássica descrição de desmielinização em vários pontos do SN central é atribuída a Charcot, que em 1865 a chamou de "esclerose em placas". O mecanismo imunomediado foi primeiramente suspeitado por Glanzmann em 1927.

A terceira doença desse grupo é a síndrome de Guillain-Barré (SGB), que é uma paralisia flácida aguda por acometimento do SN periférico (raízes nervosas e nervos periféricos) e que na maioria dos pacientes ocorre cerca de 2 semanas após infecção intestinal ou de vias aéreas superiores. Os primeiros cinco pacientes foram descritos em 1859 por Landry. Em 1916, Guillain, Barré e Strhol descreveram dois pacientes com as manifestações neurológicas e alertaram para as clássicas alterações do líquido cefalorraquidiano. A suposição de que o mecanismo imune era a causa da doença surge em 1969, com Asbury e colaboradores.

 

Do passado recente ao presente

A expansão do conhecimento em "neuroimunologia" foi e continua sento imensa e secundária aos avanços nas técnicas laboratoriais, com melhora na detecção de anticorpos, culturas celulares, utilização das técnicas de recombinação de ácidos nucleicos, bioquímica de proteínas, além da criação de modelos experimentais diversos. Ante todos esses avanços, o que aconteceu com as clássicas doenças acima descritas?

Apesar da MG ter sido a primeira e mais bem investigada doença autoimune do SN e com mecanismo imunológico melhor esclarecido, seu tratamento continua centrado em drogas imunossupressoras que estão presentes no arsenal médico há muitas décadas. Entretanto, a descoberta da associação de anormalidades tímicas fez surgir a timectomia como adjuvante terapêutico específico para essa doença. Certamente os estudos sobre MG foram a base para as recentes descobertas de outras canalopatias autoimunes.

Sem sombra de dúvida, a EM foi alvo de grandes descobertas, pois foram identificados vários possíveis auto-anticorpos contra diferentes constituintes da bainha de mielina central. Dentro do intricado jogo de moléculas inflamatórias e anti-inflamatórias, foram identificados alvos terapêuticos que culminaram com o uso de interferon beta e acetato de glatiramer como primeiras opções terapêuticas para essa doença e, nos dias atuais, já há outras opções (fingolimod, anticorpos monoclonais). Como benefício dessa ampla investigação em EM, outras doenças desmielinizantes do SN central foram melhor definidas, como, por exemplo, a doença de Devic ou neuromielite óptica.

Em relação à SGB, não só as variantes na apresentação clínica foram identificadas, mas também os diversos constituintes da bainha de mielina periférica e uma enormidade de anticorpos. Infelizmente, na maioria deles, não se conseguiu confirmar o papel fisiopatogênico, porém, eles permitem entender o racional da terapêutica inespecífica que é plasmaferese ou imunoglobulina humana intravenosa. Diferentes doenças inflamatórias crônicas do nervo periférico receberam maior atenção médica.

Atualmente, temos observado a descoberta e identificação em número crescente de diferentes anticorpos antineurais associados ou não a tumores. Esses anticorpos reconhecem estruturas da superfície da membrana (proteínas, receptores, canais iônicos) ou do interior celular (proteínas do citoplasma ou núcleo) e que têm permitido o reconhecimento e classificação de muitas doenças que até então eram consideradas como degenerativas. Como exemplo, cita-se a revolução que ocorreu com as encefalites límbicas, síndrome do homem rígido, entre outras.

 

O futuro

Apesar das clássicas doenças acima descritas serem conhecidas há vários séculos e terem apresentado inegáveis avanços tanto em diagnóstico como em compreensão dos mecanismos autoimunes, várias lacunas merecem atenção. Como exemplos, a necessidade de terapêutica mais específica e possivelmente mais eficaz, a busca por marcadores biológicos que permitam diagnóstico precoce ou que permitam o seguimento clínico, entre outros.

As atenções têm se voltado para o estudo das interações entre os sistemas imune, nervoso e endócrino. Apesar das primeiras observações nesse campo terem surgido com a possível influência da função gonadal sobre a celularidade do timo em 1898 e da descoberta, nas décadas de 1960 e 1970, de que as emoções podiam influenciar a saúde, o interesse ressurgiu com os estudos recentes de que a reatividade imune pode ser modificada por manipulações no sistema nervoso autonômico ou no eixo hipotálamo-hipofisário. No futuro, deverão ser esclarecidos os achados de alterações na regulação imune cerebral em cérebros humanos e em modelos animais em doenças psiquiátricas (depressão, esquizofrenia, autismo) e neurodegenerativas (Alzheimer, Parkinson). Possivelmente, estudos serão centrados na heterogeneidade autoimune de uma mesma doença e na investigação sobre de que forma isso influencia a resposta à terapêutica (farmacogenômica).

Em conclusão, os conceitos básicos que regem a neuroimunologia são os mesmos da imunologia geral. Essa área do conhecimento deve ser analisada criticamente, pois certamente as doenças englobadas por essa terminologia vão muito além do que simplesmente EM, doença de Devic, MG ou SGB.

 

Referências bibliográficas

Fipp F, Aktas O. "The brain as a target of inflammation: common pathways link inflammatory and neurodegenerative diseases". Trends Neurosci 2006; 29: 518-27.

Haddad J. J. "On the mechanisms and putative pathways involving neuroimmune interactions". Biochem Biophys Res Commun 2008; 370: 531-5.

Lawrence D.A., Kim D. "Central/peripheral nervous system and immune responses". Toxicology 2000; 142: 189-201.

 

 

10/12/2012