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ComCiência

On-line version ISSN 1519-7654

ComCiência  no.144 Campinas Dec. 2012

 

REPORTAGEM

 

O combate à insônia e os prejuízos que ela traz para metade da população mundial

 

 

Gil Cária; Renata Nascimento

 

 

O tic-tac do relógio profetiza uma noite que nunca acaba. O surdo gotejar de uma torneira à distância se transforma no som de uma martelada na cabeça. As luzes das ruas e os barulhos dos carros vão aumentando de volume. Os problemas do dia sendo revisitados e remoídos a todo instante. Essa foi a realidade de Vera Yetyma, 47 anos, vivida por mais de 15 noites seguidas, em julho deste ano. Promotora de eventos em Campinas (SP), ela convive com o problema desde maio, após uma sequência de incidentes trágicos, como a morte de seu pai e o adoecimento de sua mãe. Assim como Yetyma, cerca da metade dos habitantes deste planeta vão sofrer de alguma queixa de insônia em determinado período da vida, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Dormir mal ou não conseguir dormir é um problema que vem crescendo com o passar dos anos, tanto pelo aumento de estímulos visuais e mentais da vida moderna quanto por problemas de ordem biológica ou psicológica. Em 2002, o I Consenso Brasileiro de Insônia, elaborado pela Sociedade Brasileira do Sono, apontou prevalência de 30% a 50% desse distúrbio do sono nas populações. Atualmente, a OMS calcula que 40% dos brasileiros sofram de algum tipo de insônia. Já a insônia crônica, aquela que persiste há pelo menos três meses, chega a atingir 15% da população do país, o que representa 28,6 milhões de pessoas, população maior que a de estados como Minas Gerais ou Rio de Janeiro.

Esses números incentivam ainda mais a produção de pesquisas sobre insônia, seja na avaliação de como ela afeta a rotina e a saúde da população, seja na descoberta de fatores que causam, minimizam ou aumentam a insônia enquanto sintoma - já que ela pode estar associada a outras doenças - ou ainda no seu combate pela produção de medicamentos para indução e melhora na qualidade do sono. (Veja mais no box ao final do texto)

De acordo com Yara Fleury, bióloga e doutoranda em insônia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) na área de neuro-sono, algumas pessoas dormem de quatro a cinco horas por noite e não reclamam de cansaço. "Elas são a minoria. A maioria necessita entre sete e oito horas de sono. Há ainda aquelas que necessitam entre dez e 12 horas de sono para se sentirem descansadas", esclarece.

Além do tempo, a qualidade também influencia. O sono noturno evolui do estágio 1, no qual o indivíduo que está dormindo pode ser acordado facilmente, ao estágio REM (do termo inglês rapid eye movements, que significa rápido movimento dos olhos), quando ocorrem os sonhos. A função exata e o significado do sono no estágio REM ainda não foram claramente explicados pela medicina. "Contudo, há evidências de que ele seja importante na reorganização sináptica cerebral (responsável pela transmissão de impulsos nervosos) e para o equilíbrio em áreas cerebrais relacionadas especialmente com a consolidação da memória, o aprendizado e funções psíquicas", explica Tânia Marchiori de Oliveira Cardoso, neurofisiologista especializada em medicina do sono e docente do Departamento de Neurologia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM/Unicamp).

 

A primeira noite sem sono

A história de Érika - usamos aqui apenas seu primeiro nome para preservar sua identidade - é um típico caso de insônia crônica relacionada a problemas psicológicos. Ela não conhece uma noite de sono longa e tranquila desde a infância, fase em que sofreu abusos sexuais e rejeição materna. Dos seis aos 12 anos, tomava litros de chá para dormir. Hoje, na vida adulta, o quadro se agravou. "Passo a noite acordada, muitas vezes vou dormir às 8h da manhã e acordo às 10h30. Na maioria das vezes, fico deitada vendo filmes ou jogando", diz.

"Para o diagnóstico de insônia crônica, é preciso que haja queixa de, no mínimo, três a seis meses do sintoma. Existem alguns fatores de predisposição, como obesidade, e outros desencadeantes como estresse, dores crônicas ou depressão", afirma Dalva Poyares, doutora em neurociências com especialização pela Sleep Medicine Board, da American Association of Sleep Medicine, nos Estados Unidos, e pesquisadora-docente da Associação Fundo de Incentivo à Psicofarmacologia da Unifesp.

Além de ficar atento aos sinais que podem desencadear a insônia, é preciso verificar se existem fatores perpetuadores que ajudam a manter esse quadro, como separações de casais, nascimentos de filhos, perdas de familiares, doenças e mudanças profissionais ou econômicas. "Isso acaba por levar a mudanças comportamentais e cognitivas e à ativação fisiológica do organismo, com pensamentos inadequados, preocupações excessivas, foco da atenção na dificuldade para dormir, permanecendo sempre em estado de alerta", avalia Marchiori, da Unicamp.

Apesar do agravamento do quadro, Érika não procurou auxílio profissional. Para Marchiori, essa não é a melhor conduta. "A insônia primária (sem causa definida) está em apenas 25% dos pacientes com insônia crônica. Nos outros 75% está a insônia comórbida, que ocorre junto a outro problema ou doenças, em diferentes condições psiquiátricas, neurológicas ou comportamentais", relata (veja mais no box ao final).

 

Quando procurar ajuda

Apenas 5% dos brasileiros que sofrem de insônia procuram o especialista adequado, segundo a OMS. De acordo com cada caso, o tratamento pode iniciar com mudanças de comportamento no dia a dia e evoluir para terapias e/ou a utilização de remédios.

Os medicamentos disponíveis no mercado atuam com o mesmo objetivo: fazer dormir. No entanto, agem em sítios (regiões do cérebro) diferentes e são classificados em três grupos: hipnóticos, benzodiazepínicos e anti-histamínicos.

Os hipnóticos (sedativos, tranquilizantes menores, drogas ansiolíticas) são os mais comuns. Eles atuam em receptores chamados de "gaba" - responsáveis por mediar os efeitos do ácido gama-aminobutírico - para inibir a transmissão de sinais elétricos no cérebro, diminuindo sua atividade e provocando o sono. A maioria é bastante segura, mas pode perder a eficácia quando o indivíduo habitua-se ao seu uso, além de causar sintomas de abstinência quando ele é interrompido.

Já os benzodiazepínicos têm capacidade ansiolítica ou tranquilizante, criando falsa sensação de sono, o que diminui o tempo que a pessoa demora para começar a dormir. A longo prazo, podem causar dependência, e a curto prazo, déficit de memória. Em 2004, um estudo feito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) em parceria com a Unifesp constatou que 61% das pessoas que compraram benzodiazepínicos faziam uso da medicação a mais de um ano. Dessas, 94% tiveram insucesso ao tentar cortar o uso da substância.

Um exemplo desse grupo é o bromazepam, um dos medicamentos mais prescritos no Brasil, também indicado para quem sofre de distúrbios emocionais, tensão nervosa, ansiedade, agitação. Ele é o segundo da lista de princípios ativos de maior consumo no país do Boletim do Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados, publicado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 2011. Só em 2010, foram mais de 4,4 milhões de unidades vendidas. Atualmente, exigências da Anvisa, como a obrigatoriedade de apresentar a receita médica (que fica retida na farmácia) no ato da compra, visam inibir a automedicação.

Os anti-histamínicos, por sua vez, são utilizados por seu potencial sedativo e em casos de insônia leve. No entanto, alerta Marchiori, "não há dados científicos sobre eficácia e tolerância, para a recomendação dessas substâncias no tratamento das insônias. Há também possibilidade de efeitos colaterais indesejáveis, como sonolência diurna, alterações psicomotoras, entre outros".

Para Poyares, da Unifesp, a pesquisa e a produção de drogas para acabar com a insônia têm avançado muito em efetividade e qualidade. "Nos últimos 20 anos, houve um desenvolvimento de medicações mais seguras, já que são utilizadas por um longo prazo (superior a três semanas), para evitar a dependência".

 

Novos medicamentos

Ainda estão em andamento pesquisas para a produção de remédios à base de hipocretinas. Essa substância produzida no hipotálamo, responsável por deixar o indivíduo acordado, foi descrita pela primeira vez no artigo "The hypocretins: hypothalamus-specific peptides with neuroexcitatory activity", publicado no Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, em janeiro de 1998. Após a descoberta, foi possível inaugurar uma linha inédita de pesquisas de remédios para dormir. Neurologistas brasileiros, do Hospital das Clínicas de São Paulo, também estudam a substância para produção de novas drogas.

Centros de pesquisas americanos, europeus e israelenses trabalham na criação de um composto que diminua a atuação dessa substância, especialmente na fase de indução de sono. As primeiras experiências com moléculas anti-hipocretinas mostraram que ela tem o poder de aumentar o tempo de sono e melhorar sua qualidade. Os resultados foram publicados na revista Nature, em 2007.

Outro novo medicamento, aprovado apenas nos Estados Unidos, tem se mostrado eficiente no tratamento da insônia. A droga tem como princípio ativo a quinase cálcio, uma substância produzida pelo corpo humano responsável pelo despertar. Quando essa substância está em excesso no organismo, o cérebro não consegue adormecer. No entanto, a droga que controla o nível da substância pode causar efeitos secundários graves e gerar dependência. A associação entre essa substância e o sono foi verificada em um estudo realizado por pesquisadores da Universidade de Boston, publicado no The Journal of Neurosciense, em 2004.

 

Tratamento não farmacológico

Em alguns casos, a terapia cognitiva comportamental oferece bons resultados, pois propõe uma reprogramação do cérebro para que ele reaprenda a desligar. "É feito um trabalho sobre hábitos, formas de pensar e características de cada pessoa, além de acompanhamento diário de sono para modificá-lo. Relaxamento, respiração profunda e treinamento com imagens mentais são dados como lição de casa", informa Fleury, da Unifesp. A terapia pode ser utilizada com ou sem o tratamento medicamentoso.

Outras formas de tratamento são terapia de redução de estímulos, restrição de sono e tempo na cama, além da higiene do sono, uma série de alterações na rotina antes de deitar para voltar a ter uma noite tranquila. O tratamento não medicamentoso é uma possibilidade (em algumas situações) para indivíduos que não desejam tomar remédios, porém exige dedicação e disciplina do paciente. "Seus efeitos vêm gradativamente e, às vezes, o paciente desiste. Entretanto, em longo prazo, ele é mais eficaz, pois com a mudança de hábitos, a pessoa consegue dormir melhor", explica Fleury.

 

Figura 1

 

Saúde prejudicada

O insone pode ter prejuízos que se refletem no dia a dia. As perdas vão desde sonolência no dia seguinte, faltas no trabalho até aumento de risco de acidentes e de doenças. O estudo "Impacto dos transtornos do sono sobre o funcionamento diário e a qualidade de vida", de autoria de Mônica Rocha Muller e Suely Sales Guimarães, publicado em Estudos de Psicologia, revista da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, em 2007, agrupa as consequências em três níveis.

O primeiro, mais imediato, com alterações como cansaço, falhas de memória, dificuldade de atenção e concentração e alterações de humor. No segundo estágio, são incluídas as variáveis funcionais, observadas em médio prazo, como ausência no trabalho, aumento de risco de acidentes, problemas de relacionamento e cochilos no volante. No terceiro nível, estão as variáveis extensivas, observadas em longo prazo, como perda de emprego, sequelas de acidentes, rompimento de relações e agravamento de problemas de saúde.

Outra pesquisa, realizada em 2011, com 12 mil adultos avaliou o quanto um sono ruim prejudica a saúde e a qualidade de vida. O estudo foi encomendado por uma indústria de travesseiros, e desenvolvido por Colin Espie, professor de psicologia clínica do Centro do Sono do Instituto Sackler de Pesquisa Psicobiológica da Universidade de Glasgow, na Escócia. Segundo a pesquisa, as mulheres são as maiores vítimas: 75% delas relataram problemas para adormecer. Dos analisados, 93% reportaram como consequência da insônia falta de energia, 83% tinham problemas de humor, 77% disseram ter a concentração afetada, 64% produziam menos no trabalho e 55% tinham dificuldade de relacionamento.

 

Queda de imunidade

As dificuldades para ter um sono reparador prejudicam a saúde de modo geral, aumentando o risco de contrair doenças ou dificultando a cura, quando o corpo já está enfermo. A constatação foi de um estudo com três grupos de voluntários saudáveis, realizado no Instituto do Sono, do Centro de Pesquisa, Diagnóstico e Tratamento da Associação Fundo de Incentivo à Pesquisa, em São Paulo. Ao primeiro grupo, de controle, foi permitido dormir normalmente. O segundo foi submetido à privação seletiva de sono e os integrantes foram acordados sempre que estavam próximos da fase REM. O último grupo foi privado totalmente de sono.

O grupo de controle não apresentou alterações no perfil imunológico. O terceiro teve elevação do número de leucócitos (células que respondem à maioria das infecções) e linfócitos T CD4, responsáveis pela imunidade adaptativa. Estes últimos não voltaram ao nível normal mesmo após três noites de recuperação de sono. Já no segundo grupo, houve diminuição da imunoglobulina A (IgA) circulante no sangue, que permaneceu em baixo nível após o mesmo período.

Os resultados foram publicados na revista Innate Immunity e apresentados na 23ª Reunião Anual da Associated Professional Sleep Societies, realizada nos Estados Unidos em 2009. O estudo foi premiado pela European Federation of Immunological Societies durante o 2º European Congress of Immunology, na Alemanha, naquele mesmo ano.

Na segunda fase, pesquisadores do Instituto do Sono investigaram os efeitos da privação de sono no desenvolvimento de resposta específica a um desafio imunológico. O estudo foi realizado com camundongos e constatou-se que o número de células de defesa diminui. A pesquisa continua numa terceira etapa, para avaliar por que a privação de sono diminui a expressão de MHC2 e a proliferação de linfócitos.

 

Figura 2

 

10/12/2012