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ComCiência

On-line version ISSN 1519-7654

ComCiência  no.143 Campinas Nov. 2012

 

EDITORIAL

 

O fantasma da matemática

 

 

Carlos Vogt

 

 

 

O Brasil melhorou, nos últimos anos, seu desempenho no Pisa (Programa de Avaliação Internacional de Estudantes), ou no nome em inglês, a que corresponde a sigla: Programme for International Student Assessment), mas sua classificação entre os 65 países considerados ainda continua baixa, conforme se pode ver pela edição de 2009 do programa: ocupamos o 53º posto em leitura e ciência e o 57º em matemática.

A média dos países mais desenvolvidos do conjunto considerado foi de 496 pontos e a nossa, de 401 pontos, sendo que em leitura obtivemos 412 pontos contra 393, em 2006, em matemática, 386 contra 370, anteriormente, e em ciências 405 contra 390.

Assim mesmo, ficamos atrás de países como México, Uruguai, Jordânia e Tailândia entre outros que, em princípio, deveríamos superar na classificação geral.

Como o processo de avaliação desse indicador da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) se faz a cada três anos, com ênfase, a cada vez, em uma das três áreas que o integram, e como em 2012 a ênfase será em matemática, já se espera que a posição do Brasil no ranking dos países avaliados não melhore mais do que o já obtido em 2009. O que mostra a situação delicada e preocupante do grau de conhecimento e de desempenho, nessa matéria, dos nossos jovens estudantes do ensino fundamental e médio.

Não é boa a situação, embora traga, como foi dito, promessas de melhoria pelas tendências verificadas, quando se considera a série de avaliações realizadas a partir do ano 2000.

O mundo da matemática é fascinante, porque misterioso e lógico, ao mesmo tempo.

A atração por ele não tem preferência de idade para manifestar-se, embora, em todas as circunstâncias, seja necessário que tenhamos motivação e sejamos orientados, guiados e acompanhados pelos processos educacionais como Dante por Beatriz nos círculos concêntricos da geografia poética da Divina Comédia.

Luiz Alfredo Garcia-Roza, no livro Fantasma, da série de romances que tem o delegado Espinosa como protagonista, oferece ao leitor uma instigante experiência literária das motivações e das fascinações com que podemos ser capturados pela beleza e encantamento da matemática, da lógica e da filosofia.

Logo no início dessa narrativa, cujo título se refere a um objeto ou ser que não existe e cuja formulação lógica da proposição que lhe corresponde poderia ser algo como "Existe um x, tal que x é fantasma, e x não existe", enuncia-se a contradição lógica que acompanhará a aventura do herói e do leitor em busca do desvendamento do mistério que a trama propõe.

Para enfatizar a tensão em que se cruzam realidade, imaginação, fantasia e ficção há uma passagem que, como se ao acaso, faz o registro de uma descoberta afetivo-intelectual do detetive e, com ele, do leitor:

"A pergunta que não o abandonava e que tirara algumas horas de seu sono na noite anterior referia-se ao título de um livro que encontrara num sebo. Tratava-se de uma crítica do filósofo e lógico inglês Bertrand Russell ao livro Sobre a teoria dos objetos inexistentes, do também filósofo e lógico austríaco Alexius Meinong e cujo título considerara fascinante.

Não que o delegado Espinosa tivesse especial interesse pela filosofia ou pela lógica. Pelo menos não a ponto de comprar um livro que discutia questões além de sua compreensão. Comprara porque era um livro publicado em 1910 e custara uma ninharia.

Além do título provocador, uma introdução falava dos tais objetos não apenas como inexistentes (ou não existentes, como ele frisava), mas ainda por cima os dividia em três classes distintas. À primeira, pertencem os objetos cuja não-existência é um fato empírico, caso do centauro, por exemplo. À segunda classe, os objetos cuja existência implica uma contradição, e o exemplo era o círculo quadrado. À terceira, pertencem os objetos que subsistem mas não existem em si mesmos: os números, as relações e as figuras geométricas. Estes últimos, dizia o filósofo austríaco, estão para além do ser e do não-ser. Assim, a redondeza do quadrado redondo, por exemplo, não é afetada pela sua não-existência.

O homem era um louco, pensou Espinosa. "A redondeza do quadrado redondo não é afetada pela sua não-existência"! A frase o encantava, embora fosse uma frase de louco. Caminhava em direção à delegacia, ainda procurando a lógica dessas ideias. Dizer que a redondeza do quadrado redondo não é afetada por sua não-existência é o mesmo que dizer que a fama de Sherlock Holmes não é afetada por sua não-existência... E não é mesmo, concluiu, perplexo. E nesse instante Espinosa decidiu que dedicaria um pouco mais de tempo à estranha teoria dos ainda mais estranhos objetos não existentes*."

No trecho, além da questão da intencionalidade e do nominalismo realista presentes em todas as grandes polêmicas e discussões da lógica, da filosofia da linguagem e dos princípios da matemática, para lembrar o livro fundamental de Bertrand Russell, está a chave do desvendamento do mistério policial que a história do livro enuncia e que, no plano das representações e das figuras de linguagem com que essa história se conta, é também o mistério insolúvel da existência e de suas motivações.

O enunciado "Existe um x, tal que x é fantasma, e x não existe" parece violar as três leis fundamentais da lógica formal, a saber, a lei da identidade, a lei da não contradição e a lei do terceiro excluído.

A primeira lei diz que todo sujeito é seu próprio predicado, isto é, que A=A; a segunda lei, da não contradição, reafirma a primeira sob a forma da negociação, dizendo que A não é um não-A; a terceira diz que duas proposições contraditórias são exclusivas no sentido de que se uma é verdadeira, a outra é necessariamente falsa e vice-versa: se A é B, A não pode, mesmo particularmente não ser B. Assim, se "todo homem é mortal" for verdadeira, "algum homem não é mortal" é obrigatoriamente falsa, e vice-versa, havendo só duas possibilidades que excluem definitivamente uma terceira.

Ainda na passagem citada do livro de Garcia-Roza, o narrador apresenta em resumo as três classes de objetos não existentes do lógico e filósofo austríaco Alexius Meinong, sendo que na terceira encontram-se objetos que subsistem sem existir em si mesmos. São por exemplo, os objetos matemáticos, números, relações e figuras geométricas.

Por aí já se vê o grau de abstração que essas entidades implicam exigindo da mente humana disciplina, estudo, dedicação, treinamento e capacidade de sair da experiência do mundo sensível sem perder a sensibilidade conceitual e científica que os enunciados matemáticos formulam.

Assim como no romance no qual é a existência de um ser não existente ─ o fantasma do título ─ que está em questão e é ele que nos permite, pela ficção, entender e compreender melhor a lógica e os argumentos do mundo dos seres existentes, assim as equações, os números e as figuras geométricas, na medida em que são também, de certa forma, ficções da ciência, sem as quais não é possível formular seus enunciados e, portanto, permitir sua comunicação, são construções ideais da mente humana que permitem ao homem a intenção de significar e de modificar o mundo, a si próprio, ao próprio homem, nas relações de conhecimento que entre eles se estabelecem.

 

 

10/11/2012
* Garcia-Roza, Luiz Alfredo. Fantasma, São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 8-9.