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ComCiência

versão On-line ISSN 1519-7654

ComCiência  no.135 Campinas fev. 2012

 

ARTIGO

 

Cotas nas universidades: um grande debate público

 

 

Cleber Santos Vieira

Professor do Departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde na Infância e Adolescência da Unifesp

 

 

Em 2001, a Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas1 requereu diagnósticos, desafios e propostas aos países participantes da "III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata", realizada em Durban, África do Sul. No Brasil, foi realizada uma série de discussões que culminaram na realização da Conferência Nacional Contra o Racismo e a Intolerância, realizada no Rio de Janeiro em oito de julho do mesmo ano. Os trabalhos foram organizados em 13 eixos temáticos: Raça e Etnia; Cultura e Comunicação; Religião; Orientação Sexual; Educação, Saúde e Trabalho; Acesso à Justiça e Defesa dos Direitos Humanos; Questão Indígena; Necessidades Especiais; Gênero; Remanescentes de Quilombos; Xenofobia; Migrações Internas e Juventude. A Carta do Rio, como ficou conhecido o documento síntese dessa conferência, tornou-se a base do Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Intolerância, bem como o fio condutor do documento oficial brasileiro apresentado na III Conferência de Durban.

O relatório final do eixo temático "Raça e Etnia" ficou sob a responsabilidade de Edna Roland, a quem caberia também a virtuosa tarefa da relatoria geral em Durban. Ali, encontra-se um amplo leque de reivindicações de diferentes grupos étnicos que compõem a sociedade brasileira, dentre os quais ciganos, índios, negros e judeus. Conforme constatação de pesquisa realizada por Verena Aberti e Almicar Araújo Pereira2, foi no interior do repertório de proposições definido nesse eixo que, pela primeira vez em documento oficial, surgiu a questão das cotas. No documento foram inseridos os seguintes encaminhamentos:

* Que sejam implementadas políticas de ação afirmativa na área de educação como instrumento fundamental de promoção da igualdade.

* Que se estabeleça cotas para negros na universidade.3

Assim, enquanto componente do debate público nacional, a questão das cotas remonta ao contexto de preparação para a III Conferência Contra o Racismo, sobretudo pela iniciativa de integrantes do movimento negro. Ao relembrar os instantes que antecederam a Conferência e aagitada fase de elaboração do relatório a ser apresentado pela delegação brasileira no evento, a relatora Edna Roland afirmou:

Eu não sei quantas páginas o relatório tem, mas tem esta linha, 'cotas para negros nas universidades', que entrou no último minuto, que ele pôs no documento. Quando o governo brasileiro tornou público o relatório para a mídia, tudo o que a mídia queria falar era sobre cotas para negros na universidade. E aí, antes de ir para Durban, quando já tinha sido anunciado que meu nome ia ser indicado, o pessoal da imprensa vinha falar comigo e só queria falar sobre cotas".4

Naquele contexto, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 1999, o índice de negros(as) com mais de 25 anos com ensino superior era de cerca 2,3%, mesmo índice da população parda, enquanto que a população branca, na mesma faixa etária, atingia 9,8% de titulados. Mediante diagnósticos como esses, movimentos sociais e intelectuais a eles vinculados formularam e difundiram propostas acerca da promoção da igualdade racial no ensino superior brasileiro. Deste então, o assunto cotas para negros nas universidades e ações afirmativas ganharam dimensões significativas, não raramente desdobrando-se no delineamento de políticas públicas. Neste percurso, em 2005, o debate foi impulsionado pela apresentação do projeto de lei que instituiu o Estatuto da Igualdade Racial, aprovado pelo Congresso Nacional, em 20 de julho 2010 (Lei 12.288).

Incitada, a comunidade acadêmica não se absteve da discussão. Intelectuais de todas as partes do Brasil dividiram-se entre favoráveis e contrários ao Estatuto e ao sistema de cotas. Manifestos de repercussão nacional e midiáticos foram lançados. Os riscos de se criar um Estado racial ou do comprometimento com a qualidade do ensino superior figurava (e figura) entre os argumentos contrários expostos em documentos como "Todos têm direito iguais na república democrática" (30 de maio de 2006) e "Cidadãos anti-racistas contra as leis raciais" (2008). Por outro lado, os que defenderam (e defendem) os mecanismos de ação afirmativa, articulados aos movimentos sociais, divulgaram, entre outros, o "Manifesto em favor da lei de cotas e do estatuto da igualdade racial" (03 de julho de 2006). Para este grupo, as cotas raciais correspondem ao conjunto de medidas necessárias para que o Estado brasileiro reconheça as injustiças cometidas contra a população afrodescendente no período da escravidão e de sua herança histórica.

Não obstante o legítimo debate entre acadêmicos, nesse mesmo período, as ações afirmativas consolidaram espaço nas universidades públicas. Desde o pioneirismo da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), reservando, ainda em 2001, cotas para negros no acesso aos seus cursos. Neste ano, cerca de 70 universidades públicas (32 estaduais e 38 federais) adotaram algum tipo de ação afirmativa na forma de cotas raciais ou sociais. Em 10 anos, ações afirmativas atenderam 330 mil cotistas, entre os quais 110 mil afrodescendentes! O Programa Universidade Para Todos (Prouni) incluiu outros 440 mil afrodescendentes em universidades privadas ou comunitárias.

Todavia, muito embora se constitua como realidade no cotidiano do ensino superior brasileiro, o tema é objeto de contestação judicial e encontra-se sob a análise do Superior Tribunal Federal (STF). No sentido de subsidiar o voto dos ministros, o STF convidou diversos segmentos sociais para apresentarem, em audiência pública, os argumentos pró e contra cotas. Assim, nos dias 03, 04 e 05 de março de 2011, participaram representantes de diversos órgãos públicos, movimentos sociais e universidades5.

No último dia do evento, experiências de aplicação de políticas de ação afirmativa foram relatadas por representantes da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior; União Nacional dos Estudantes; Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro; Universidade Estadual de Campinas; Universidade Federal de Juiz de Fora; Universidade Federal de Santa Maria; Universidade do Estado do Amazonas; e Universidade Federal de Santa Catarina. Os estudos apresentados concluem que não há diferenças significativas do ponto de vista do desempenho acadêmico entre cotistas e não cotistas6. Ao mesmo tempo, alertam para a necessidade de programas especiais para assegurar a permanência dos alunos carentes, os cotistas sociais ou raciais na universidade até a conclusão do curso. É ocaso do PNAES (Programa Nacional de Assistência Estudantil)7, lançado em 2007 (Portaria Normativa n. 39, 13/12/2007), que prevê investimentos na construção de moradias estudantis, auxílio alimentação, transportes e outras ferramentas destinadas ao bem-estar dos alunos de universidades públicas federais.

Enquanto o STF não se pronuncia sobre a legalidade ou não das cotas, o IBGE indica mudanças importantes no ensino superior brasileiro. Em 1999, 6,7% da população brasileira com mais de 25 anos concluiu o nível superior. Desses, 9,8% da população branca; 2,3% de negros e 2,3% de pardos. Em 2009, 15% da população branca; 4,7% dos pretos e 5,3% dos pardos. Assim como aumentou o percentual de afrodescendentes nas universidades, também aumentou o número de pessoas que se autodeclaram pretas ou pardas. De tal modo que a população que se declarava preta, que era de 5,4% em 1999, passou para 6,9% em 2009; enquanto os pardos saltaram de 40,0% para 44, 2%; já a população branca, que era de 54% (1999), recuou para 48, 2% (2009). "Provavelmente, um dos fatores para esse crescimento é uma recuperação da identidade racial", explica a Síntese de Indicadores Sociais 2010 do IBGE8. Certamente, o intenso debate provocado pela questão das cotas desde seu lançamento em documento oficial, em 2001, na Carta do Rio, foi decisivo tanto para o aumento de matrículas de afrodescendentes em universidades, quanto para afirmação da entidade dos afrodescendentes. Quiçá, tornou-se o veículo de maior impacto nas discussões sobre a promoção da igualdade racial como fator de direitos humanos.

 

 

1 Sobre a compreensão os vínculos entre ações afirmativas e direitos humanos ver: Piovesam, Flavia. Ações afirmativas sob perspectiva dos direitos humanos. In: Santos, Sales Augusto dos (org.) Ações afirmativas e combate ao racismo na América Latina. Brasília: MEC / Unesco, 2005. pp.35-45.
2 Alberti, V.; Pereira, A.A. A defesa das cotas como estratégia política do movimento negro contemporâneo. In: Estudos Históricos, n.37, jan/jun, p.143-166, 2006.
3 Plano Nacional de Combate ao Racismo. Carta do Rio. Rio de Janeiro, 08 de julho de 2001. http://portal.mj.gov.br/sedh/rndh/Carta%20do%20Rio.pdf.
4 Apud. Alberti, V.; Pereira, A.A. op. cit. p. 147.
5 Procuradoria Geral da República, Ordem dos Advogados do Brasil, Advocacia Geral da União, Secretaria Especial de Políticas de Promoção de Igualdade Racial, Secretaria Especial de Direitos Humanos; Ministério da Educação; Fundação Nacional do Índio; Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2ª Vara Federal de Florianópolis; Conselho Estadual de Desenvolvimento da Comunidade Negra do Governo do Estado de São Paulo; Universidade de Brasília; Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Universidade Federal do Rio de Janeiro; Universidade Federal de Minas Gerais; da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais; Universidade de São Paulo; Instituto de Ensino Superior Brasília; Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Pelas entidades dos movimentos sociais participaram: Anape (Associação de Procuradores de Estado); Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo; da CDH (Conectas Direitos Humanos); Afrobras (Sociedade Afro-Brasileira de Desenvolvimento Sociocultural); Educafro (Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes); Fundo Brasil de Direitos Humanos; Conen (Coordenação Nacional de Entidades Negras); Geledés, Instituto da Mulher Negra de São Paulo; Esquerda Marxista; Movimento Negro Socialista; MPMB (Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro) e da Acra (Associação dos Caboclos e Ribeirinhos da Amazônia).
6 Ver, por ex. Jaccoud, Luciana (org.). A construção de uma política de promoção da igualdade racial. Uma análise dos últimos 20 anos. Brasília: IPEA, 2009; Velloso, Jacques. Cotistas e não-cotistas: rendimento de alunos na Universidade de Brasília. Cadernos de Pesquisa, v.39, nº137, p.621-644, maio/ago, 2009.
7 Ver: http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/portaria_pnaes.pdf e Andifes. Plano Nacional de Assistência Estudantil, 2007.
8 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Síntese de indicadores sociais. Uma análise das condições de vida da sociedade brasileira contemporânea 2010. (Estudos e Pesquisas - Informações demográficas e econômicas, n. 28). Rio de Janeiro: IBGE, 2010.

10/02/2012