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ComCiência

versão On-line ISSN 1519-7654

ComCiência  no.134 Campinas  2011

 

REPORTAGEM

 

Experimentação animal: o debate na universidade e nos laboratórios de pesquisa

 

 

Michele Gonçalves

 

 

O uso de animais na experimentação científica foi largamente difundido durante o século XVIII, e apenas a partir do final do século passado essa prática passou a ser fortemente questionada. Tais questionamentos obtiveram marcos importantes, como a proibição, na Europa, dos testes de produtos cosméticos acabados e de parte de seus constituintes em cobaias, bem como o banimento de experimentos invasivos em chimpanzés, em 2010, por 27 membros da União Europeia, deixando os EUA e o Gabão como últimas nações a realizar tais experimentos. Este pode ser o início de um movimento que atingirá também outras espécies animais.

A preocupação com o bem-estar animal, entretanto, segundo a antropóloga do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade estadual de Campinas (Unicamp), Nádia Farage, é antiga. “Já em meados do século XIX, em particular na Europa e nos Estados Unidos, consolidavam-se os ideais anti-vivisseccionistas, em meio a movimentos sociais amplos contra o darwinismo social” – o qual se constituiu numa interpretação que extrapolou a teoria da seleção natural de Darwin para as relações humanas, publicada na mesma época. 

Grande parte dos ativistas e cientistas vê a experimentação animal de uma perspectiva dicotômica. Mas segundo Cléo Alcântara Costa Leite, docente e pesquisador em fisiologia comparada da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), essa questão, se posta dessa forma simplória, gera apenas uma discussão maniqueísta e desvirtua o que, de fato, há de importante a se discutir, que é a ética no uso dos animais. “Se a questão gira em torno do contra ou a favor, ocorre, a priori, a divisão das pessoas, e não das ideias”. 

Mas a discussão caminha cada vez menos pela vertente da dicotomia. A maioria dos pensadores dos direitos dos animais, sejam eles ativistas ou cientistas que praticam ou não metodologias experimentais, reconhecem que existiram avanços na legislação, principalmente na última década, mas que muito ainda se necessita avançar e discutir sobre a questão. 

Atualmente, vigora no Brasil a Lei Arouca, publicada em 2008 em revogação à antiga lei de vivissecção, de 1979. Por força dessa lei criou-se o Conselho Nacional de Experimentação Animal (Concea) e as Comissões de Ética no Uso de Animais (Ceuas) para regulamentarem, em território federal, a utilização de animais em experimentos. Cléo Leite considera fundamental o avanço da legislação. Ele aponta que os comitês de ética, nas instituições de ensino e pesquisa, têm papel de extrema importância ao discutir as formas de atuação dos profissionais e corrigi-los, norteando assim os procedimentos para que a atividade de pesquisa seja feita de modo racional e ético. Os comitês, afirma o pesquisador, não tem poder de punição, mas sem seu aval o financiamento para a pesquisa não é aprovado e os dados também não são publicados, já que os periódicos científicos exigem essa aprovação. “O que é monitorado não é a atividade em execução, mas a proposta da atividade. Se, de início, a ideia e o procedimento forem julgados como fora dos padrões éticos, o projeto nem sequer é iniciado”. Os comitês são multidisciplinares, explica, incorporando profissionais de diversas áreas do conhecimento com o intuito de que todos os projetos sejam avaliados com o mesmo rigor, independentemente do grupo animal ao qual se relacionem e das especificidades conceituais, estatísticas e metodológicas de cada um. 

Mas de acordo com Vânia Rall Daró, especialista em direito constitucional e pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre a Intolerância (LEI), da Universidade de São Paulo (USP), a Lei Arouca ainda mostra-se pouco benéfica aos animais, justamente por favorecer a experimentação tanto para fins didáticos quanto para fins de pesquisa, e conceder grande poder e autoridade às comissões de ética. Ela argumenta que os animais têm direito à vida, à integridade física e psíquica, e à liberdade, direitos estes que ela acredita serem desrespeitados durante sua submissão a experimentos (leia mais sobre direito animal).

Nádia Farage avalia que a atual legislação retrocede em relação à lei de 1979 na medida em que reintroduz os testes sem anestesia em casos em que a medida do sofrimento seja fator relevante à pesquisa. Vânia e Laerte Levai, promotor público e especialista em bioética pela USP, contudo, ressaltam a importância do artigo 32 da Lei nº 9.606/1998 (lei de crimes ambientais), que pune a realização de experimentação animal no caso da existência de um método alternativo disponível. 

Artigo de Gabriela Santos Rodrigues, Aline Sanders e Anamaria Gonçalves dos Santos Feijó, na revista Bioética (Vol. 19, nºo 2), ressalta que o termo “alternativo”, embora não tenha sido definido de forma específica em nenhum documento oficial relacionado ao uso de animais, pode significar, para pesquisadores, professores e pessoas envolvidas no manuseio de animais, desde métodos que resultam na redução do número de animais utilizados, que exijam desenho estatístico prévio da pesquisa proposta ou que incorporem refinamento nos procedimentos envolvendo animais; até métodos que preveem a substituição dos mesmos por partes do corpo ou por modelos não vivos ou computadorizados, compreensão essa influenciada pela teoria dos três Rs (reduzir, refinar e substituir), de William Russel e Rex Burch. As autoras afirmam, contudo, que muitos pesquisadores discordam dessa visão, argumentando que o termo “alternativo” deva referir-se tão somente ao “terceiro R”, a substituição (replacement, em inglês).

Dentre as possibilidades de substituição ao uso de animais em experiências, as autoras do artigo apontam a pesquisa através do uso de culturas de células e tecidos, simulações computacionais e bioinformática, tecnologia de DNA recombinante e nanotecnologia; e a adoção de didáticas que fizessem uso de programas computadorizados, realidade virtual, vídeos interativos ou demonstrativos, manequins específicos e investigação in vitro. Elas inferem que a lentidão na substituição da experimentação por métodos alternativos deve-se à falta de conhecimento sobre essas opções, uma vez que a maioria dos respondentes da amostra de sua pesquisa (pesquisadores e docentes das áreas médica e biológica de uma universidade do Rio Grande do Sul) posicionou-se a favor da substituição. As autoras concluem ser necessário o interesse, por parte das instituições, em buscar e oferecer o acesso de seus profissionais aos métodos alternativos disponíveis, bem como fomentar a criação de novos recursos didático-pedagógicos como, por exemplo, um banco institucional de métodos alternativos. 

 

Alguns pontos em debate

A regulamentação dos comitês de ética deu ênfase à discussão da experimentação também dentro dos laboratórios de pesquisa e da universidade, em particular no que diz respeito às etapas pré-clínicas de testes de medicamentos e cosméticos, com tradição no uso de animais (e aqui se incluem todos os produtos que atendem às necessidades tanto de saúde e higiene quanto estéticas). De acordo com o fisiologista Leite, não há produto de uso humano, ou medicamento comercializado de forma legal, que não tenha passado por uma bateria grande de testes biológicos em organismos animais. Se o produto final não foi testado, todos os seus componentes constituintes e os efeitos de suas combinações o foram. O pesquisador acredita que atualmente "não há alternativa para tais testes dentro da legalidade e da prudência". 

As condições políticas também são fundamentais nessa discussão, enfatiza Nádia Farage. Citando Machado de Assis, em Conto Alexandrino, a pesquisadora aponta que a mesma matriz conceitual que permite o experimento em animais poderia se aplicar a humanos se essas condições a isso favorecessem. Para Vânia Rall, a não experimentação em animais traria a necessidade da busca de outros critérios e métodos de pesquisa, que muito provavelmente se revelariam mais eficazes dos que os atuais. Ela enfatiza que Claude Bernard, médico e fisiologista francês que instituiu, no século XIX (leia artigo sobre história da experimentação), a atual medicina experimental, já reconhecia que o modelo experimental ideal para o ser humano seria seu semelhante, e não o animal. Na Europa, a legislação prevê que os testes de constituintes de produtos cosméticos sejam progressivamente substituídos por métodos alternativos de experimentação até 2013. No Brasil, embora não haja regulamentação específica, algumas empresas já deixaram de testar em animais a maior parte de seus produtos acabados e de seus constituintes.

 

Alternativas nas aulas práticas

Segundo Leite, em se tratando de fins didáticos, a substituição deve ser aplicada sempre que ela melhorar ou, pelo menos, não afetar a formação profissional dos alunos. Ele diz que, de forma geral, aulas práticas ilustrativas podem ser substituídas por modelos e simulações sem prejuízo, e que esses modelos inclusive tornam a aula mais fácil de se montar, planejar e ajustar. O pesquisador comenta que substituições de vários tipos têm sido feitas em algumas universidades do Brasil, e Vânia exemplifica que a Faculdade de Medicina Veterinária da USP, utiliza-se, já há algum tempo, do Líquido de Larssen, que possibilita a reutilização de cadáveres de animais mortos de forma natural. 

Enquanto as alternativas ainda são incipientes, alguns pesquisadores defendem a evocação, por parte dos alunos, da objeção de consciência, um direito previsto na Constituição Federal e que, segundo Vânia Rall, “assegura a qualquer cidadão o direito de não praticar atos que firam os ditames da consciência”. Laerte Levai informa que a objeção de consciência pode ser exercida de forma individual, por exemplo, pelo estudante que não quiser praticar da experimentação, mesmo que esse procedimento conste de sua grade curricular. A base legal para a evocação desse direito, segundo ele, é o artigo 5º incisos VI (liberdade de consciência) e VIII (convicção filosófica), conjugado com o artigo 225 par. 1º, inciso VII da Constituição Federal (vedação à submissão de animais a atos cruéis), bem como o artigo 39 da Lei estadual paulista 11.977/05 (Código de Bem-Estar Animal).  

Existem poucos casos de evocação desse direito no âmbito da experimentação animal, e muitos dos casos evocados já foram negados. A estudante de farmácia Paola Coelho, entretanto, conseguiu o direito no terceiro semestre de sua graduação. Ela diz que não se sentiu em defasagem em relação a seus colegas, pois conseguiu substituir as aulas experimentais por métodos alternativos de aprendizagem. Segundo ela, repensar a profissão – o que muitos pesquisadores acreditam ser o ideal, já que as competências associadas ao currículo desta são imprescindíveis para a atuação do profissional – nunca foi uma opção. Ela comenta que sabia que sua escolha profissional acarretaria em conflitos com algumas condutas dessa área de estudo, mas diz que a área da saúde precisa de pessoas que se preocupem com as animais para, inclusive, tentar mudar as metodologias atuais. 

 

Dor e sofrimento

Talvez o maior argumento limitador ao uso de animais na experimentação esteja no fator “dor e sofrimento”. Essa discussão é interessante, afirma o fisiologista Leite, exatamente porque “as decisões tomadas para tornar os procedimentos éticos e garantir o bem-estar dos animais, seja dentro do laboratório ou em seu ambiente natural, passam pelo conhecimento gerado por pesquisas com esses animais”. Já Vânia, embora reconheça ser muito difícil provar o grau de dor e de sofrimento de um ser vivo, por serem essas experiências muito subjetivas, acredita que podemos, de forma sensata, imaginar que o que causa dor e sofrimento para nós, humanos, muito provavelmente deve causar também aos animais, sobretudo aos mamíferos. Neste caso, a advogada pensa ser fundamental aplicarmos, aos animais, o benefício da dúvida – ou seja, se houver dúvida quanto à possibilidade de sofrimento do animal a ser submetido ao experimento, o melhor é não submetê-lo ao mesmo. 

Nádia considera que o sofrimento se situa no campo do direito e da ética, desvencilhando-se das projeções biológicas quanto à natureza e o mundo social. Ela diz que essa é uma questão capciosa e pode não ser politicamente confiável, pois identificar-se ou não com o sofrimento de outrem pauta uma espécie de “guerra da piedade”. A antropóloga pontua que a discussão ética deve se voltar também para o próprio modelo experimental e o poder de intervenção sobre os corpos de outrem, sejam eles humanos ou não-humanos. 

A complexidade do tema não permite que a experimentação animal seja abolida subitamente, no entanto, as discussões evoluem em prol de uma conscientização crescente, sobretudo daqueles que praticam a experimentação, e contribuem para tornar mais palpável para a sociedade conceber os animais não-humanos como seres que também pensam, sentem e produzem cultura. 

 

Para saber mais: