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ComCiência

On-line version ISSN 1519-7654

ComCiência  no.133 Campinas  2011

 

ARTIGO

 

Conflitos pela terra na Amazônia: o caso da região sudeste do Pará

 

 

Ricardo Sampaio DagninoI; Samira El SaifiII

IGeógrafo, doutorando em demografia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), bolsista do CNPq
IISocióloga, mestre em ciência política, doutoranda em ciências sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), bolsista do CNPq

 

 

A Amazônia brasileira é reconhecida não apenas como a maior reserva de recursos naturais do planeta, mas também como uma região em constante disputa política, econômica, ambiental e social. Em particular, o sudeste do Pará (que abrange os municípios de Altamira, São Félix do Xingu, Marabá e Anapu dentre outros) tem chamado sistematicamente a atenção pelo rápido avanço na demarcação de unidades de conservação por um lado, mas por outro, pelos conflitos violentos decorrentes do processo de ocupação e exploração da terra.

Projetos voltados para essa porção do Pará, tais como a construção da hidrelétrica de Belo Monte (Rio Xingu), abertura de novas estradas, pavimentação da BR-163 (Cuiabá-Santarém), crescimento da criação de gado, entre outros fatores, têm acelerado o processo de ocupação e movimentado novas fronteiras econômicas. Em decorrência desse processo de reativação da fronteira, há aceleração da expropriação e exploração do território, resultando em desmatamento e muita violência (assassinatos, escravidão, ameaças de morte, expulsões do campo) envolvendo populações indígenas, agricultores e residentes em Unidades de Conservação (UCs).

Por causa dessa situação a região ficou conhecida como "terra sem lei". A violência é reflexo dos conflitos decorrentes da disputa de interesses, da sobreposição de territórios destinados a diferentes usos dos recursos, da concentração fundiária e da precariedade no ordenamento territorial. Além desses fatores, as tensões sociais tendem a ter um desfecho violento também pela presença insatisfatória do poder público, principalmente, aquele poder legítimo e não corrompido pelos grandes interesses econômicos.

De acordo com o Atlas da Questão Agrária Brasileira elaborado pelo geógrafo Eduardo Girardi (Unesp/Presidente Prudente)1, os municípios com maior índice de violência contra a pessoa do campo no período 1996-2006 estão localizados no sudeste do Pará. Dentro dessa região, destacam-se os municípios de São Félix do Xingu e Santana do Araguaia, com os mais altos índices, seguidos por Cumaru do Norte e Marabá, numa categoria inferior. Um pouco mais abaixo, no ranking, estão os municípios de Altamira e Anapu, onde foi assassinada a irmã Dorothy em 2005.

Para tratar desse tema da violência é fundamental mencionar a grilagem de terras, que se caracteriza pela apropriação irregular ou ilegal de terras públicas. A privatização ilegal ou irregular de terras públicas, geralmente a partir de documentos fraudados, está presente desde a formação da estrutura rural e fundiária brasileira. Ela é identificada como a origem dos principais conflitos por terra no país. A privatização irregular da terra ocasiona a privatização dos recursos naturais dentro da área e possibilita que o "proprietário" (grileiro) tenha acesso a financiamentos públicos orientados para a exploração da terra (seja pela plantação, criação de gado ou especulação). O ciclo econômico da grilagem, caracterizado pelo desrespeito às leis e aos direitos humanos, tende a se consolidar a medida que o grileiro conquista poder político e se alia a outros interesses econômicos, além dos agropecuários, tais como exploração mineral e energética.

Não é por mero acaso que o estado campeão em grilagem na Amazônia seja também um dos principais focos de criação de novos estados no Brasil. Os processos de criação de novos municípios e de novos estados muitas vezes são motivados por agentes envolvidos diretamente no ciclo econômico da grilagem. Se, por um lado, a criação de um novo município ou estado significa descentralização administrativa visando cumprir metas de políticas públicas; por outro lado, pode favorecer as atividades econômicas de uma minoria que continuará a utilizar as instituições públicas em função de seus interesses privados.

A lógica da grilagem envolve uma rede de corrupção atuante no interior de órgãos fundiários (desde a esfera federal, como o Incra, até os órgãos estaduais, como o Iterpa, na região), que fraudam documentos em cartórios de imóveis com total conivência de políticos do legislativo e do executivo, muitas vezes, atendendo aos seus próprios interesses (lembrando que muitos políticos são também grandes proprietários ou mesmo grileiros de terras). A grilagem está associada à exploração madeireira e a agropecuária que faz uso, não raramente, de práticas de trabalho escravo ou de expulsão de moradores.

Para se ter uma ideia da dimensão da grilagem no Brasil, um relatório elaborado a pedido do Ipam e do Ministério do Meio Ambiente por José Benatti e outros autores2, indicava em 2006 que os grileiros detinham, até aquele momento, aproximadamente 100 milhões de hectares (ou 12% do território nacional), sendo que desses, 30 milhões estavam localizados no estado do Pará.

Segundo a CPI federal sobre ocupação de terras públicas na região amazônica, dentre as finalidades da grilagem, estão: (a) parcelar para depois vender as terras para terceiros; (b) obter financiamentos bancários para projetos agropecuários, oferecendo a terra grilada como garantia; (c) exploração madeireira ou atividade agropastoril; (d) dar a terra grilada como pagamento de dívidas previdenciárias e fiscais; (e) conseguir indenização nas ações desapropriatórias, para fins de reforma agrária ou de criação de áreas protegidas.

Para proteger o sudeste do Pará do avanço dos grileiros foram criadas na última década diversas áreas protegidas (terras indígenas e unidades de conservação ambiental). Dentre elas destaca-se um grupo de Unidades de Conservação (UCs) que formam o mosaico da Terra do Meio (nos municípios de Altamira e São Félix do Xingu), que foi criado com o propósito de restringir o avanço da grilagem e dos criadores de gado e do desmatamento nas áreas de floresta.

Localização do Mosaico de áreas protegidas da Terra do Meio (Sudeste do Pará/Brasil).

 

Figura 1

 

A criação de UCs pressupõe presença estatal, em decorrência da "federalização" de um território que antes era administrado pelo estado ou município, e serve de espaço para atuação de ONGs, auxiliando a formação de uma rede de suporte e apoio às populações residentes das UCs, o que também contribui para proteger e organizar a população local. Na medida em que há aumento no raio de alcance das denúncias de ameaças, isso confere maior visibilidade à situação das populações locais, tirando-as do anonimato nacional e internacional, o que faz com que o Estado seja pressionado a atuar na região protegendo os moradores ameaçados.

Entretanto, após uma relativa trégua nos casos de violência e assassinatos de lideranças sociais na região, o ano de 2011 voltou a registrar diversos casos, sendo o mais recente o ocorrido em fins de outubro, com João Chupel Primo. Liderança da Reserva Extrativista (Resex) Riozinho do Anfrísio, localizada em Altamira (Pará), ele denunciava a grilagem de terras na região e a extração ilegal de madeira, e foi assassinado em seu local de trabalho, no município de Itaituba, próximo de Altamira. João Chupel Primo era também um dos líderes que, ao lado de outro morador da Resex, Raimundo Belmiro, vinha sendo perseguido por denunciar grupos que utilizam as vias de acesso pela BR 163 (Cuiabá-Santarém) e BR 230 (Transamazônica) para extrair madeira ilegalmente de dentro do Mosaico de Unidades de Conservação da Terra do Meio, principalmente a Resex Riozinho do Anfrísio e Floresta Nacional (Flona) Trairão. Raimundo, que já obteve proteção policial em outros momentos, passou a ser protegido novamente após a morte de seu companheiro de luta.

O assassinato ganhou repercussão internacional e a Fundação Internacional de proteção aos defensores dos direitos humanos - Front Line Defenders3, sediada em Bruxelas, escreveu documento solicitando às autoridades brasileiras que: (1) assegure uma investigação completa para que os responsáveis sejam julgados de acordo com os padrões internacionais; (2) tome medidas para garantir a integridade física e psicológica da família da vítima; (3) garanta que os defensores dos direitos humanos no Brasil sejam capazes de executar suas atividades, sem medo de represálias e livre de qualquer restrição.

Além de cobrar posturas do governo brasileiro com relação a esse assassinato, o Front Line Defenders aponta que as recentes mudanças propostas no Código Florestal poderão acirrar os conflitos pela terra na medida em que os responsáveis por desmatar no passado podem receber anistia e ficarem, assim, isentos de procedimentos penais. Nesse sentido, a revisão do Código Florestal pode aumentar o clima de impunidade para crimes cometidos contra defensores dos direitos humanos trabalhando em causas ambientais.

Para que os defensores dos direitos humanos e defensores da floresta como Raimundo e outros sobreviventes dos conflitos agrários na Amazônia possam atuar sem sofrer violência é necessário que o poder público ofereça proteção mais eficiente e que combata não só os agressores, mas também a situação de instabilidade social na região. Nesse sentido, a fiscalização do desmatamento dentro de uma Unidade de Conservação não pode ser responsabilidade dos moradores (embora se espere isso deles). Como afirma o pesquisador e morador da região Paulo Amorim4, o papel de fiscalização de forma direta deve estar a cargo dos órgãos federais (ICMBio e Ibama), porém pouco é feito por esses órgãos de controle. De acordo com ele, o melhor seria capacitar as lideranças, conselhos de gestão das UCs e abrir canais de comunicação direta entre as comunidades afetadas e os órgãos de justiça, imprensa e sociedade civil, pois quanto mais organizados, menos temerosos e vulneráveis eles ficam.

Finalmente, considera-se que as políticas para alcançar a estabilidade social e o fim da violência no campo devem ser orientadas pela melhoria nas condições de vida das populações locais. As ações voltadas para isso devem ter prioridade na agenda política daqueles que querem debater o desenvolvimento da região, seja no âmbito dos grandes projetos econômicos, sendo a hidrelétrica Belo Monte o principal deles, ou no âmbito dos grandes projetos territoriais, como a divisão do estado do Pará, com a criação do estado do Carajás e/ou do Tapajós. Se por um lado, um projeto como Belo Monte pode não resultar em melhorias consideráveis para a população, de outro, a simples divisão do território do Pará não significa que ocorrerão melhorias: os novos estados poderão repetir as mesmas práticas excludentes.

 

 

1 Girardi, E. P. "Proposição teórico metodológica de uma cartografia geográfica crítica e sua aplicação no desenvolvimento do Atlas da Questão Agrária Brasileira". Tese (doutorado) em geografia. Presidente Prudente: Unesp, 2008.

2 Benatti, J. H.; Santos, R. A.; Pena da Gama, A.S. A grilagem de terras públicas na Amazônia brasileira. Ipam - Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia. Série Estudos 8. Brasília: MMA, 2006.

3 O documento do Front Line Defenders "Assassinato do defensor de direitos ambientais João Chupel Primo" (27/10/2011) pode ser consultado em http://www.frontlinedefenders.org

4 Agradecemos à colaboração do pesquisador Paulo Amorim que, por email, prestou essas informações.