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ComCiência

On-line version ISSN 1519-7654

ComCiência  no.132 Campinas  2011

 

ARTIGO

 

Lei de responsabilidade educacional?

 

 

Luiz Carlos de Freitas

 

 

Nada parece mais razoável do que ter uma lei que responsabilize gestores pelo não cumprimento do desenvolvimento da educação de um povo. A educação é um direito e um bem público, deve ser organizada pelo Estado e, portanto, quem não o faz prejudica gerações inteiras e deve pagar por isso. De certa forma, está 400 anos atrasada. As camadas populares foram, historicamente, as mais prejudicadas nesse processo, quando o desenvolvimento econômico não necessitava de um nível de qualidade educacional maior. Agora, que se impõe o acesso à educação básica como forma de aumentar a produtividade e o consumo, os empresários e seus reformadores educacionais não saem da mídia argumentando a favor da qualidade da educação. Mas qual qualidade?

Ninguém discorda da ideia de que o poder público tenha que se responsabilizar pela educação. É um direito. Mas a maneira de se "garantir" esse direito concedido historicamente a conta-gotas e suas consequências precisam ser devidamente consideradas. Não são poucos os relatos indicando que as atuais reformas educacionais empresariais em aplicação pelo mundo tenham gerado mais segregação e desigualdade acadêmica do que a "cantada" equidade (Ravitch, 2010). Se, honestamente, o que se quer é garantir o direito à educação, tais evidências não podem ser desconsideradas.

A qualquer crítica de suas teses de responsabilização, os reformadores empresariais da educação reagem contrapondo a ela a desresponsabilização, a qual seria defendida por aqueles que não querem sua solução. Não é o caso. A questão é que por trás desta simples dicotomia existem outros problemas que estão encobertos.

A ideia de responsabilizar os gestores educacionais pela qualidade da educação vem de longa data, mas no Brasil, em termos legais, começa a ganhar forma nesta década. Vários projetos de lei foram produzidos e se encontram em tramitação no Congresso Nacional tentando criar a base legal para a responsabilização. Recentemente, foram reunidos em um só e, atualmente, o projeto carro-chefe ao qual se encontram apensadas a maioria das iniciativas é o PL 7420/2006 de autoria da deputada Raquel Teixeira, do PSDB. Abaixo mostro seus últimos passos neste ano:

 

 

Pela informação existente no sistema de controle de projetos da Câmara dos Deputados, acima, vê-se que a questão se encontra em mãos de uma Comissão Especial e tramita neste momento paralelamente a outra lei, a do Plano Nacional de Educação.

Não temos um texto público da lei de responsabilidade educacional que possa ser tomado como pauta para exame, pois a Comissão Especial encontra-se em constituição. O texto original do PL 7420, de 2006, certamente será profundamente alterado, portanto, não serve de base. Mas já há na presente versão posicionamentos que propõem a responsabilização como um processo que envolve a fiscalização da obtenção de metas de progressão acadêmica pela escola, medidas a partir de testes padronizados. Ou seja, não é apenas o gestor ou a destinação e aplicação de recursos que está em jogo, mas o cumprimento de certas metas de aprendizagem que não dependem, apenas da disponibilidade ou não de dinheiro.

A ideia de que a qualidade da educação possa ser controlada por uma lei já indica certa inclinação para o mote da "qualidade por decreto". Pode-se responsabilizar os gestores pela gerência de recursos e condições adequadas à implementação da qualidade, mas a lei dificilmente vai parar por aí.

O exemplo mais próximo é a lei de responsabilidade educacional americana conhecida como "No child left behind" ("Nenhuma criança deixada para trás"). Essa lei fixou o ano de 2014 como referência para que todas as crianças americanas de todas as escolas fossem proficientes em leitura e matemática. Tarefa impossível em 2001, quando foi aprovada por unanimidade por democratas e republicanos, foi oficialmente declarada impossível no começo deste ano quando Arne Duncan, secretário da Educação dos Estados Unidos, declarou que 80% das escolas não terão condições de cumprir tal meta.

Mas não é tudo. A lei americana, ao responsabilizar os gestores pela qualidade da educação a partir de metas medidas em testes, abriu as portas aos processos de privatização da educação americana, além de ir bater no andar de baixo – os professores e alunos. Os gestores transferiram a responsabilização para a ponta. O sistema está congestionado de múltiplas avaliações (até na educação infantil) e os professores são permanentemente expostos, juntamente com as escolas, à execração pública em ranqueamentos sucessivos. Até mesmo seus salários, contrariando a elite séria de estatísticos americanos, estão sendo calculados com base no desempenho dos alunos, em testes padronizados para definir bônus, erodindo salários adequados. A conta está sendo paga pelos professores e pelos alunos. Essa situação levou à destruição do sistema público de educação norte-americano (Ravitch, 2010).

A despeito de termos nomes respeitáveis na presente Comissão Especial que examinará a matéria, poderá haver uma inclinação – inclusive pela tradição autoritária brasileira de resolver tudo pela lei – a reproduzir a situação dos Estados Unidos.

No caso da lei norte-americana, as escolas que não demonstravam estar ano a ano avançando em sua qualidade, estavam sujeitas a sanções que incluíam até mesmo o seu fechamento e conversão em escolas privatizadas por administração de contratos de gestão (escolas charters) via ONGs e fundações privadas. Sabe-se, hoje, que tais escolas, em seu conjunto, não são melhores do que as públicas nos Estados Unidos, mas o processo de destruição já está feito (Credo, 2009; 2010).

Os chamados reformadores empresariais da educação, defensores das teses da responsabilização, meritocracia e privatização, vão pressionar para que a lei de responsabilidade educacional brasileira crie as bases para a privatização do sistema educacional no Brasil, fortalecendo a ideia de pagamento por mérito.

Podem fazer isso diretamente nesta lei, ou caso haja muita dificuldade, criando as bases para que os estados da federação, posteriormente, possam praticar a privatização e a meritocracia, criando legislação própria, facilitada e ancorada na lei de responsabilidade educacional federal. Some-se a isso o fato de que o governo Dilma tem dado indicações de que aceita recorrer à iniciativa privada quando se trata de resolver problemas vultosos – contrariando suas teses de campanha eleitoral.

Para evitarmos o calvário do sistema público educacional norte-americano pós "No child left behind", uma lei brasileira de responsabilização deveria ser exclusivamente voltada para a questão do gerenciamento dos recursos e condições de trabalho. Metas acadêmicas não deveriam ser assunto de lei. É tão absurdo quanto se ter uma lei de "responsabilidade criminal" que fixasse metas anuais para redução de criminalidade nas delegacias de polícia.

Embora saiba-se, como já mencionado, que o texto atual da lei de responsabilidade educacional – originalmente apresentado no PL 7420/2006 – será modificado na Comissão Especial que está em constituição na Câmara, ele já prevê o controle de metas acadêmicas. Diz:

"A cada avaliação nacional realizada, as médias de resultados observadas em cada unidade da federação deverão ser superiores às verificadas na avaliação anterior, devendo para tanto ser desenvolvidas ações específicas, com a necessária alocação de recursos financeiros em volume compatível com os esforços a serem empreendidos em cada sistema e rede pública de ensino."

Essa redação, apesar de não associar consequências explícitas do ponto de vista do não alcance das metas, deixa aberta a porta para que os estados da federação assim o façam em legislações específicas.

Na lei norte-americana, por exemplo, as escolas são acompanhadas através de um plano anual de progresso da escola em cada estado, o qual implementa as consequências para o sucesso ou fracasso do plano. Em vigência desde 2001, a lei não melhorou o desempenho dos alunos norte-americanos nos testes nacionais (NAEP) e nem nos internacionais (Pisa). Os Estados Unidos, antes desta lei, estavam na média do Pisa e, dez anos depois dela, continuam na média do Pisa. Portanto, ter chegado à média do Pisa, não foi produto da lei de responsabilidade educacional norte-americana (Ravitch, 2010).

Temos, no momento, pelo menos duas concepções de responsabilização em pauta. Uma é voltada para a responsabilização de cima para baixo, baseada em leis que regulam não só idoneidade das relações financeiras, mas que incluem o controle de metas nas escolas. A atual lei de responsabilidade educacional brasileira, para alguns, poderá ter a função de criar as condições para que os estados possam produzir legislação específica que fiscalize a obtenção de metas pelas escolas e permita sua associação a consequências (bônus ou demissão, privatização etc.).

A outra concepção está baseada em uma responsabilização participativa e democrática, ancorada no envolvimento de todos os responsáveis pela questão educativa na escola e nos sistemas educacionais. Para esta visão, a lei de responsabilidade educacional não deveria tratar do controle de metas acadêmicas.

A primeira formulação de responsabilização é uma transferência de responsabilidade para a escola, associada a premiações ou punições. Muito conveniente para os governos em todos os níveis. A segunda propõe uma responsabilização que exija de cada ator do sistema educacional sua parcela de responsabilidade, em um processo de negociação bilateral em que a escola, protagonista do processo, tem suas responsabilidades delimitadas, assim como também os responsáveis pela administração do sistema – em especial, na questão da criação das condições adequadas de funcionamento do sistema educacional – carreira, salários, infraestrutura, capacidade administrativa, etc. Nesse caso, o indicador de sucesso não é apenas o desempenho do aluno em um teste padronizado. Este é apenas um dos componentes da avaliação do desempenho da escola e, além disso, há indicadores para os gestores cumprirem também (carreira, tamanho de turma, piso salarial, recursos, infraestrutura, custo-aluno etc.).

Não será apenas uma lei de responsabilidade educacional, entretanto, que poderá alterar positivamente o interior da escola, passando a produzir o sucesso educacional das crianças. É reconhecido que mais de 60% dos fatores que causam o fracasso escolar está fora da escola. Só uma construção coletiva, no interior das escolas, amparada pela ação dos sistemas naquilo que lhes compete poderá implementar metas acadêmicas superiores. O controle externo sem essa legitimação política interna na escola somente produzirá competição, fraudes e destruição das relações internas da escola. A miséria é o maior inimigo do sucesso educacional. Lutar contra ela supõe uma articulação entre esferas do poder público e não apenas uma "solução educacional".

Os educadores deveriam estar tão preocupados com a lei de responsabilidade educacional em tramitação na Câmara, como estão com o Plano Nacional de Educação (PNE) que corre paralelo. Infelizmente, não é assim. Todas as atenções estão concentradas no PNE, enquanto a lei de responsabilidade corre solta.

 

Referências

Brasil. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 7420 de autoria de Raquel Teixeira. 2006.

Credo (2009). Multiple Choice: charter school performance in 16 states. Acesso em 10 de novembro de 2010, disponível em http://credo.stanford.edu/reports/MULTIPLE_CHOICE_CREDO.pdf

Credo (2010). Charter School Performance in New York City. Acesso em 28 de janeiro de 2011, disponível em http://credo.stanford.edu/reports/NYC%202009%20_CREDO.pdf

Ravitch, D. Death and life of the great American School System. New York: Basic Books, 2010

 

 

Luiz Carlos de Freitas é docente da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) http://avaliacaoeducacional.zip.net